Blog da Ana Maria Bahiana

Categoria : Estreias

É meia noite na Paris de Woody Allen: onde estão seus desejos?
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Ana Maria Bahiana

É uma boa coisa que Meia Noite em Paris (Midnight in Paris, Woody Allen, 2011) tenha sido escolhido para abrir o Festival de Cannes, semana passada: poucos filmes que eu me lembre realizam tão bem a visão do encontro entre cinemão e cineminha, entre Estados Unidos e França. É delicioso, leve, altamente digerível mas bem acabado, bem articulado, bem resolvido _ coisa que nem sempre os últimos trabalhos de Woody Allen tem sido, especialmente quando ele se deixa possuir por rancor, amargura e cinismo.

Estamos bem longe disso nesta meia noite numa Paris da imaginação. O clima é A Rosa Púrpura do Cairo e não Celebridade: um bombom, talvez um suspiro, e não uma poção de arsênico.

Pena que, para presevar a delícia do filme, eu não possa dizer quase nada sobre ele _ é um desses que quanto menos se sabe antes de sentar na cadeira, melhor.

O que posso dizer: um escritor frustrado (Owen Wilson, escolha mais que certa para o papel) vai com sua noiva (Rachel McAdams, ótima) e a familia dela para Paris. O pretexto é uma viagem de negócios do futuro sogrão (Kurt Fuller) _ republicano roxo, produto típico da era Bush . A viagem  deveria ser também uma excursão de compras para a nova casa dos noivinhos (que ainda não existe) guiada pela futura sogra ,o tipo de pessoa que acha uma cadeira de dezenas de milhares de euros  “uma pechincha”. No meio do caminho haverá o encontro com o ex-namorado da moça (Michael Sheen) um sujeito pomposo que gosta de dar palestras espontâneas sobre qualquer assunto, de vinhos a história da arte, mesmo que ninguém queira ouvir.

Gil, o escritor, é um roteirista de sucesso mas intui, como muitos antes dele, que ser apenas “super procurado pelos estúdios “ (palavras da  noiva) não é o suficiente para saciar sua fome de algo mais, a busca de uma felicidade sem nome que ele, talvez por falta de opções, coloca no passado, na Paris dos anos 1920, onde modernismo, cubismo e surrealismo estavam sendo criados e uma geração de  autores e artistas norte-americanos, alegremente auto-exilados, se reinventava. “Nostalgia é medo do futuro”, pontifica o ex-namorado, e ele tem mais que um pouco de razão (o que não o torna menos irritante.)

E então, numa bela noite, Gil tem uma epifania mágica…

Como em tantos outros  de seus filmes, Gil é um alter–ego de Allen.  Ou melhor, uma faceta de sua alma, aquela que, no outono da vida, reavalia uma carreira de sucesso e pensa se isso é ou não o bastante. A decisão de abordar esse dilema com generosidade e lirismo – e não com ressentimento e sarcasmo – é o que faz Meia Noite em Paris a delícia que é, indo além dos dez minutos de cartão postal da abertura para uma visão gloriosa da Paris dos sonhos, das possibilidades, repositório das aspirações  de gente criativa e contra a corrente de todas as épocas.

Allen está no topo de sua forma como dialoguista e desenhista de personagens _ em poucos traços, sabemos exatamente quem são esses americanos exilados em Paris e o que cada um espera da Cidade Luz (que, na visão de Woody, retribui exatamente na medida do desejo de cada um, cidade-fada-madrinha dos sonhos alheios). A escolha do elenco é perfeita, a fotografia é linda e o gosto de Allen pelo jazz dos Roaring  Twenties casa-se perfeitamente com o clima do filme.

Meia Noite em Paris estreia nos EUA sexta dia 20 e no Brasil dia 17 de junho.

 


Com Werner Herzog no ventre da Terra, sonhando no escuro
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Ana Maria Bahiana

Do chão de um vinhedo no sul da França, a câmera alça vôo. Em breve estamos sobre uma paisagem profundamente bela: um rio faz curvas sinuosas sob um imenso arco de pedra calcárea, branco contra o céu azul; ao fundo erguem-se montanhas igualmente brancas, encerrando rio e vinhedos num elegante vale em semicírculo.

E no entanto a maior beleza ainda está invisível. Com sua voz de professor meio doidão, meio sinistro, Werner Herzog nos guia até uma estranha porta de aço, como a de um caixa forte, encravada na encosta da montanha. Escuridão, silêncio. A beleza mais extraordinária começa agora.

Na primavera europeia de 2010, Werner Herzog recebeu uma permissão especial do Ministério da Cultura francês para visitar e filmar um dos maiores patrimônios da humanidade: as cavernas de Chauvet, na região do Ardéche, no sul do país. Selado por uma avalanche em algum ponto de sua longa história, o complexo de cavernas guarda em suas paredes a mais antiga coleção de obras de arte do mundo: gravuras e pinturas que datam de pelo menos 32 mil  anos.

A necessidade de preservar a integridade do local gerou condições extremas de filmagem: uma equipe de quatro pessoas, períodos de apenas quatro horas diárias de visita, roupas especiais e restrições de movimentação. Nada disso, contudo, interferiu no excepcional poder das imagens de Cave of Forgotten Dreams, o documentário que resultou da visita e que estreou neste fim de semana nos Estados Unidos (e já se tornou a maior bilheteria de abertura para um filme de Herzog).

Pelo contrário: a luz hesitante, capaz de iluminar apenas alguns trechos durante algum tempo, ajuda o espectador a ver as imagens quase com os olhos de seus autores e contemporâneos; o fato da equipe e seus guias estarem frequentemente no quadro nos conduz facilmente pelo labirinto, entre escuridão completa e flashes de imagens emergindo da pedra, e nos dá a dimensão da intimidade e majestade das cavernas. “Depois de algum tempo é como se os primeiros ocupantes destas cavernas ainda estivessem aqui”, Herzog diz, na narração em off. “Muitos pesquisadores me relataram a mesma sensação. Como se os olhos destes pintores nos acompanhassem, no escuro.”

Herzog, que não é um entusiasta do 3D – só viu Avatar, e se confessou “perdido” pela enxurrada de informações visuais – converteu-se temporariamente à técnica para Cave. Casamento perfeito _ os artistas de Chauvet usaram as saliências e depressões da rocha para dar profundidade e movimento a seus cavalos, bisões, leões e ursos; agora, o 3D recria a experiência- cá estamos nós temporariamente na luz rarefeita da caverna, cavalos , bisões, leões e ursos dançando em nossa direção “como uma espécie de proto-cinema”, diz Herzog, deliciado ao notar as repetições de detalhe, as oito patas e múltiplas cabeças que os artistas criaram para reproduzir movimento em suas obras.

Porque Herzog é Herzog, Cave tem desvios e um bizarro ps envolvendo uma usina nuclear e jacarés albinos. Um dos arqueólogos revela ter sido acrobata de circo. Outro, apresentado como “arqueólogo experimental”, chama-se Wulf, veste-se de peles e toca o hino nacional norte americano numa réplica de flauta pré-histórica. Há tambem um “mestre perfumista” que cheira a montanha em busca de novas cavernas.

Herzog, a flauta e Wulf

Mas desta vez estas idiossincrasias herzoguianas perdem o fôlego diante do imenso poder do que está nas paredes de Chauvet. Ali, auxiliado pela excepcional trilha de Ernst Reijseger, Herzog enuncia com clareza sua visão para o doc: Chauvet mostra por que somos humanos_ porque somos capazes de sonhar, aspirar, intuir o divino, abracá-lo, convidá-lo. Um arqueólogo diz que “homo sapiens” , o homem que pensa, não é a melhor definição de nossa espécie; “homo spiritualis” seria mais exato.

No final, Herzog nos deixa com a mais poderosa das infinitamente poderosas imagens de seu filme: a impressão da palma da mão de um dos pintores de Chauvet, assinando sua obra. Sim, estivemos aqui. Milhões de anos atrás, no ventre da Terra, sonhando no escuro.

 

 


A melhor coisa de Água para Elefantes é …o elefante
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Ana Maria Bahiana

Ah! O romance do circo de idos tempos! A vida na estrada! Os personagens estranhos, complicados, fascinantes! A emoção do espetáculo debaixo da grande tenda! O perigo das acrobacias arriscadas! O choque de personalidades complexas!

Se você quiser ter essa experiência, alugue A Estrada da Vida, de Fellini, O Maior Espetáculo da Terra, de Cecil B. de Mille ou mesmo a excelente série Carnivale, da HBO. Mas evite Água para Elefantes, a adaptação do best seller de Sara Gruen sobre um circo itinerante dos anos 1930, estrelada por Robert Pattinson e Reese Whiterspoon (estréia neste fim de semana nos EUA, dia 29 de abril no Brasil).

Mas se, pelo contrário, você é fã de Robert ou Reese, gosta de um romance de época bem comportado onde tudo é bonito, até mesmo a sujeira e a privação, e todas as vidas parecem ter sido passadas a limpo e organizadas como um desses dramas biográfico-esportivos que a Disney sabe tão bem fazer, então vá correndo ver Água para Elefantes.

Transparência: não li o livro. Mas fontes acreditáveis me garantem que o filme é fiel ao texto original, com o roteiro de Richard LaGravenese tomando liberdades mínimas para condensar a narrativa. De todo modo, sou das que acreditam que filme e livro são criaturas diferentes, com vida própria e diferenciada, e dessa forma devem ser apreciados.

E o que Água para Elefantes nos oferece é uma história completamente previsível, contada da maneira prosaica, sem nada que possa nos trazer para dentro do mundo dos personagens – e nada nesse mundo que nos faça querer ficar lá.

Com uma exceção _  a maravilhosa elefanta Tai no papel de Rosie, a catalista do drama que envolve o estudante de veterinária Jacob (Robert Pattison), a estrela do circo Benzini (Reese Whiterspoon) e o dono  da trupe, August (Christoph Waltz).  É muito mais fácil envolver-se emocionalmente com Tai do que com seus companheiros humanos de tela, que parecem estar atuando em filmes separados, com zero química entre eles. Para piorar as coisas só um pouquinho, Waltz está basicamente repetindo seu personagem de Bastardos Inglórios, com menos sotaque, mais histrionismo e, em vez de um uniforme nazista, um traje de mestre de cerimônias circense.

A fotografia e a direção de arte são bonitas, e a trilha vale pela inclusão da deliciosamente lasciva “Sugar in My Bowl”, de Bessie Smith.

Sinto pena por  Francis Lawrence, um diretor que promete, e de cujo Eu Sou a Lenda gosto muito, exatamente por tudo o que falta em Água – o mergulho na profundidade da história. Torcendo para que ele faça melhor no próximo.

 


Voando para o ‘Rio’: por que o filme de Carlos Saldanha é muito importante
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Ana Maria Bahiana

 

Toda vez que alguém me faz a pergunta clássica – quais as chances do cinema brasileiro no mercado internacional? – eu respondo, com certa dose de cautela: as mesmas de qualquer país que produza cinema regularmente e, assim, dê oportunidades para o aparecimento e desenvolvimento de seus talentos.

E – eu acrescento, sempre- me parece que na animação estão, hoje, as maiores chances.

Em primeiro lugar, porque a quantidade de brasileiros que já estão, hoje, trabalhando em praticamente todas as produtoras de animação, da Disney à Klaaski Csupo, da Dreamworks à Pixar, é imensa. Em segundo lugar, porque animação tem enorme facilidade de transpor fronteiras, reduzir grandes temas a uma experiencia comum a diferentes culturas, idiomas, idades. Uma grande parte da animação é como o cinema mudo – transmite ideias sem palavras. O cérebro humano adora isso: é assim que sonhamos, que nos recordamos, que construimos nosso repertório pessoal.

Disney sempre compreendeu isso. No passado, quando Walt era vivo, seus personagens visitaram a América Latina e deram a partida na “aproximação cultural” que se fazia necessária durante a Segunda Guerra Mundial. Em anos mais recentes, longas da Disney flertaram com a China (Mulan), o Oriente Medio (Aladim),  a África e o público de origem africana (Rei Leão, A Princesa e o Sapo), a América hispânica (A Nova Onda do Imperador).

Era uma questão de tempo até que a confluência dessas duas tendências – a presença de brasileiros no setor e a sua tradição internacionalista – chegasse ao Brasil.

Sergio Mendes, produtor da trilha, e Carlos Saldanha (dir) na premiere de Rio, domingo, em Los Angeles

Teria sido sensacional se a maturidade desse movimento se desse através de uma produção brasileira. Em teoria, temos todos os elementos para isso. Mas a prática é sempre muito mais complicada.

Mas vamos comemorar – Rio, produção norte-americana (Blue Sky Studios, braço de animação da Fox), é exatamente o tipo de filme que concretiza essa aproximação cinematográfica entre o Brasil e o mundo. A Fox  pagou as contas e, com certeza, exigiu a presença de talento local : Jesse Eisenberg, Anne Hathaway, Jamie Foxx, etc (o que é uma coisa boa – garante muito melhor o livre trãnsito internacional). Mas sua concepção, seu desenho de base e todo o controle de sua narrativa são de um brasileiro que faz parte dessa vasta migração de talento: Carlos Saldanha, que pensou, com carinho, em elementos de nossa cultura e paisagem.

É o perfeito produto de exportação: padrão de qualidade e astros de calibre internacional, marketing global com toda força de um grande estudio, e um coração integralmente brasileiro, sem aquela visão forçada, de fora para dentro, que estamos tão acostumados a ver.

E é lindo.

Voar é uma dessas experiencias impossíveis que o cinema reproduz bem e que o cinema de animação recria espetacularmente. Ao colocar pássaros brasileiros como protagonistas de sua história, Carlos Saldanha deu a seu filme uma ferramenta excepcional para envolver as plateias e mostrar o Rio de Janeiro de um dos melhores pontos de vista possíveis. Nada como a perspectiva do alto, em movimento, para captar em toda grandeza a espetacular paisagem de blocos gigantescos de granito, massas de verde, curvas de azul.

Aprecio sobretudo a honestidade de não ignorar os problemas – a pobreza, as favelas, o menino de rua, os contrabandistas de animais silvestres- combinada com a delicadeza de saber como mostra-los para plateias infantis .

É uma fantasia com raízes na realidade, um bilhete de amor com a generosidade para envolver quem não conhece o começo do romance.

E, estrategicamente, é importantíssimo. Rio é o campeão de bilheteria nos mercados internacionais, e estou muito curiosa para ver como se portará aqui (a premiere foi neste domingo, e o filme entra em cartaz nesta sexta nos Estados Unidos, em contra-programação a Scream 4). Antecipo enorme sucesso.

Mas mesmo sem isso, Rio já abre portas de par em par para temática e talento brasileiros que estejam dispostos a realmente dialogar com a indústria e com plateias do mundo todo.

E, sinceramente, acho que mais gente vai resolver visitar o Rio de Janeiro depois de ver este filme do que com todas as campanhas oficiais que foram feitas nos últimos anos…

 


Primavera de sangue: paixão, crime, ambição e poder na nova temporada da TV
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Ana Maria Bahiana

Nem só de Mildred Pierce vive a safra 2011 da TV. Alguns destaques do que está no ar nesta primavera norte-americana:

The Borgias (Showtime, no ar nos EUA desde 3 de abril) – O sucesso de The Tudors animou a Showtime a investir nas séries de época, e o canal pago parece ter um xodó especial por linhagens poderosíssimas, cruéis e sexy –  uma combinação irresistível.  Os Borgias, a família de origem espanhola que se apossou de Roma no final do século 15 e se tornou sinônimo tanto de desmedida ambição quando de especial cuidado com as artes, são  sucessores mais que dignos das tramóias de Henrique VIII. Crédito especial para Neil Jordan, que escreveu e dirigiu os dois primeiros episódios, dando o tom para série como um estudo sobre a ambição e a banalidade do mal. Michael Hirst, que se tornou uma espécie de faz-tudo do drama histórico na TV (Tudors, Camelot) e no cinema (Elizabeth, Elizabeth: A era de ouro), segue no mesmo tom, mas o grande, enorme prazer da série é ver Jeremy Irons como o Papa Alexandre, com suas amantes, filhos, altos esquemas políticos, seduções de confessionário e limitada paciência com a mediocridade alheia.

The Killing (AMC, no ar no EUA desde 3 de abril) – Chove o tempo todo. Há florestas silenciosas e enevoadas, e um carro suspenso em câmera lenta, ao entardecer, do fundo de um lago, lindo e terrível. O clima é totalmente Twin Peaks nesta adaptação da mini-série dinamarquesa Fobrydelsen ( 2007), filmada em Vancouver mas teoricamente situada na vizinha Seattle.  Mireille Enos, que vem de vários pequenos papéis em filmes e séries e um desempenho mais substancial em Big Love, é a detetive de homicídios Sarah Linden, que, no último dia de trabalho (ela vai se casar e se mudar para a ensolarada Sonoma, California) tem que resolver o desaparecimento de uma adolescente. Cada episodio é um dia da investigação, e o clima não tem a exposição desenfreada e a necessidade de arrumar e explicar tudo dos CSIs da vida. A AMC apanhou muito com uma outra série cerebral como esta, Rubicon, mas The Killing, embaixo de seu verniz gelado, pulsa de emoção e humanidade.

Camelot (Starz, no ar desde 25 de fevereiro). O mito do Rei Artur é uma especie de template onde cada década e realizador coloca sua marca, ideologia, ponto de vista. Acho que poucas histórias podem ser contadas de tantos modos diferentes e permanecer, essencialmente, a mesma história: a do garoto que não queria ser rei mas acaba criando um país. Na estreia da GK TV – braço televisivo da produtora de Graham King, o melhor amigo de Martin Scorsese – Arthur (Jamie Campbell Bower) é um adolescente meio bobão, um peão no jogo pelo poder articulado por Merlin (Joseph Fiennes) , que se parece menos mago e mais um consiglieri da Mafia se a Mafia existisse nas ilhas britânicas do começo da idade media. A narrativa é meio gaga,  os figurinos são metidos a modernosos, e há diálogos irritantemente contemporâneos, cheios de “ok” e “fantastic”, mas Eva Green como uma linda, poderosa e astuta Morgan compensa quase tudo.

Game of Thrones (HBO, estreia 17 de abril) A HBO entra no território da fantasia jogando alto com esta ambiciosa adaptação do primeiro volume da cultuada saga A Song of Ice and Fire , de George R.R. Martin. Martin, que foi roteirista de TV  (Além da Imaginação, entre outros) antes de se dedicar aos livros, fez basicamente uma variação da história européia dos séculos 13 a 14, quando linhagens e reinos se matavam pelo controle de terras que, muitas vezes, mal eram países. Colocando suas intermináveis disputas num continente ficticio, Westeros, onde invernos e verões podem durar décadas, Martin permitiu que a história, transformada em lenda, pudesse ressaltar não os feitos heróicos, mas as fraquezas e os dramas de ser humano. David Benioff e Dan Weiss, roteiristas e escritores de ficção, fazem um trabalho monumental e perfeito adaptando o texto de Martin, e um grupo sólido de atores britânicos, liderados por Sean Bean como Lord Ned Stark, dá completa credibilidade a esta história de paixões e traições. Algumas perucas podiam ser melhores, mas a trama é tão boa que a gente releva.


Em Mildred Pierce, todo o poder da vida de uma mulher
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Ana Maria Bahiana

Poucos dias atrás vi um filme que se parecia em tudo com a produção comercial norte-americana dos anos 1940 e 50, exceto no essencial – o toque de gênio que frequentemente estava escondido (mas não muito) debaixo dos clichês exigidos pelos estúdios.

Mildred Pierce, a mini-série da HBO que está no ar aqui e que vocês começaram a ver ontem, é o oposto disso. Baseia-se em um livro de 1941, referencia (e reverencia) o estilo de grandes da época, especialmente Douglas Sirk, grã mestre do melodrama. Mas é uma obra moderna, cuidadosamente pensada e dirigida por um diretor sem medo de ousar _ Todd Haynes, que já nos deu Não Estou Lá, Longe do Paraíso e Velvet Goldmine.

Fã do filme de Michael Curtiz, de 1945 (que rendeu um Oscar para Joan Crawford) Haynes escolheu voltar ao texto original do livro de James Cain e mergulhar, com ele, num estudo de personagem incomum na filmografia de hoje: a vida de uma mulher, em todas as suas facetas, não como acessório à narrativa de algum outro herói, mas inteira em si mesma.

Ao remover a principal alteração feita por Curtiz – o assassinato que transforma toda a narrativa num híbrido de melodrama e noir, dois gêneros  populares na época – Haynes recolocou o poder da história nas mãos de Mildred, a mulher que não se sabe tão forte, tão independente, tão dona de seu corpo e de sua alma até passar por sucessivas perdas e provações.

E ao escolher Kate Winslet para ser essa mulher. Haynes imediatamente acrescentou uma colherada de mel ao projeto , a impressionante mistura de extrema fragilidade e completo poder que Winslet sabe trazer a suas personagens, quando estimulada por um diretor que compreende seu enorme talento.

A mini-série da HBO-  desde já no topo da lista de melhores do ano na categoria- segue estritamente o texto de Cain, eliminando apenas os detalhes que poderiam tirar o foco do essencial. Aos 10 minutos do primeiro episódio Mildred (Winslet) despacha porta afora o marido adúltero, colocando-se a  na posição mais vulnerável possível na escala social dos Estados Unidos em plena Depressão: a mulher descasada, com duas filhas para criar.

Nos episódios subsequentes, Mildred descobrirá seu poder  enfrentando humilhação e mãos na bunda durante anos de trabalho como garçonete, explorando seu desejo primeiro com o desajeitado Waly (James LeGros), depois com o sedutor playboy Monte Beragon (Guy Pearce, ótimo) e, finalmente, criando coragem para abrir seu próprio negócio.

É uma estrutura que vocês vão reconhecer em várias novelas, tributárias do melodrama hollywoodiano em conteúdo e forma. Com a liberdade das cinco horas de uma minissérie e a certeza de estar falando com uma fatia específica do público (afinal, é HBO), Haynes pode se deter na intensidade da paixão, na devastadora dor da perda e, sobretudo, na complexa relação entre Mildred e sua filha mais velha, Veda (Morgan Turner e Evan Rachel Wood).  A filmografia mundial é repleta de títulos que exploram a relação entre o filho e o pai. Raros e bem vindos são os que se ocupam da rede complicada de amor, ressentimento, inveja e admiração que pode se formar entre mães e filhas.

A direção de arte , reproduzindo minuciosamente a ensolarada e ainda provinciana Los Angeles dos anos 1930 (em estudio e em locações nos arredores de Nova York), é um prazer à parte. Mas o grande espetáculo é a confluência dos talentos de Haynes e Winslet.  Em um momento, quando Mildred , já dona de sua vida, se reencontra com o ex-marido (Bryan O’Byrne), muitos anos depois , ambos mais velhos, solteiros, marcados por perdas e ganhos, uma rara luz ilumina a tela da TV – a luz da verdadeira, sincera humanidade que o bom cinema, em qualquer plataforma, é capaz de captar.


Uma conversa com Duncan Jones: “Sci Fi é um modo de abrir mentes”
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Ana Maria Bahiana

Michelle Monaghan e Jake Gyllenhaal em Contra o Tempo...

...e Duncan Jones no set.

Um homem acorda num trem e não sabe quem é. Sua derradeira lembrança é estar numa missão de combate sobre o Afeganistão, no comando de uma aeronave militar, seus companheiros de tropa a bordo, fogo inimigo cerrado a seu redor. E agora uma moça bonita conversa com ele sobre trivialidades de trabalho com um vago ar de intimidade e flerte, enquanto uma passageira derrama café no seu sapato e o condutor anuncia que o destino final é Chicago.

Estes são os emocionantes 10 minutos de abertura de Contra o Tempo (Source Code, estreando hoje nos EUA, dia 17 de junho no  Brasil), o primeiro filme de Duncan Jones desde o sucesso  de Moon e sua estreia no esquema grande produção hollywoodiana. Contra o Tempo é um roteiro original do estreante Ben Ripley, desenvolvido sob medida para ser estrelado por Jake Gyllenhaal no papel do piloto, Colter Stevens.

Poderia ter sido complicado e frustrante – para Duncan Jone e para a plateia – mas não é. É imensamente humano, intrigante – em grande parte porque, como Jones relata aqui, descobrimos juntamente com o protagonista o que está se passando, cada nova descoberta adicionando uma camada nova de mistério, de urgencia, de tragédia. Revisitando um território que já atravessou em Donnie Darko, Gyllenhaal mostra-se um excelente companheiro de aventuras para Jones, cúmplice em sua mistura bem calibrada de suspense, humor e drama.

De passagem por Los Angeles para promover o filme, Duncan Jones sentou-se no pátio  ensolarado de um hotel de luxo e contou um pouco sobre seu caminho de “filho de David Bowie” a “diretor cult”, suas crises de identidade, seu amor pelo cinema em geral e ficção cientifica em particular – e como fazer homenagens a Ray Harryhausen com Smurfs e uma câmera super 8 operada por… David Bowie…

Contra o Tempo não é um roteiro seu _ por que você aceitou dirigi-lo?

_ Porque eu vi que podia acrescentar alguma coisa. Quando Jake me deu o roteiro, eu imediatamente gostei do material, a temática se alinhava com meu ponto de vista. Mas era um pouco pesado, muito sério, todo mundo se levava a sério demais. Faltava leveza. Se injetarmos humor, pensei, isso vai ajudar a plateia a acreditar na tecnologia. Jake concordou imediatamente. Ben Ripley pesquisou a fundo para escrever o roteiro e por isso ele focalizou tanto nos detalhes científicos, explicando muito como o “source code” funciona. Isso é importate para ele, como roteirista, eu compreendo perfeitamente. Mas para meu trabalho como diretor o mais importante é que a plateia abrace inteiramente, sem restrições, o conceito. E para isso eu não precisava dar uma aula, tinha que engaja-los pelo lado humano, e o humor é muito eficiente para isso,

O que pelo contrário atraiu você, sem pedir modificação?

_ O ritmo. De cara eu amei o ritmo da narrativa. A quantidade de pistas possíveis e como elas brincam com nossos preconceitos e ideias. O modo como o espectador adivinha situações e aprende o que está se passando no mesmo ritmo que Colter. Isso é muito importante para qualquer filme que tenha um elemento de thriller, de mistério.

É interessante como, mesmo não sendo um roteiro seu, Contra o Tempo continua a discussão de identidade e auto-reconhecimento que você levantou em Moon

_ Acho que é um dos assuntos que mais me interessa: a ideia de identidade, a pessoa que você é e a pessoa que os outros vêem. Acho que todo mundo algum dia se preocupou com isso em algum momento de suas vidas. Eu passei por isso tremendamente no final da minha adolescencia e nos primeiros 20 anos, tentando descobrir quem eu era e qual era meu lugar no mundo. Eu parecia destinado a ser uma coisa e percebi que… não era verdade. Eu era outra pessoa.

Que pessoa era essa que você deveria ser?

_ Eu estava cursando universidade e, depois, pos-graduação com o objetivo de ser professor de filosofia. O que obviamente eu não sou. Demorou muito tempo para eu aprender que aquele não era meu camiho, e as vezes lamento o tempo perdido. Mas, ao mesmo tempo, esse aprendizado e essa experiencia me fizeram a pessoa que sou hoje, capaz de me ocupar de outras formas da questao da identidade.

O tema da identidade também é central na obra de seu pai, que a discutiu de muitos modos em sua obra. Ele ajudou você neste periodo de dúvida?

_ Ajudou tremendamente. Ao longo de sua carreira ele viu muitas pessoas decolarem e despencarem e esse exemplo marcou muito o modo como ele encara a carreira dele, e como ele pode dar apoio à minha. Acho que minha sorte também é que nunca fui do tipo ultra-social, super-popular. Sempre fui um geek estudioso e preocupado com o trabalho. Ser ultra-social pode ser um perigo quando se está desorientado na carreira. Aí seim você se perde, perde todo o seu tempo fazendo nada e, possivelmente, metendo-se em encrencas.

Seu pai influenciou sua carreira?

_ No sentido de pai para filho, sim.  O trabalho dele é algo que sempre admirei e sempre respeitei imensamemte, mas acima de tudo ele é meu pai, e sua influencia é naquilo que ele me mostrou, nas experiencias que me proporcionou. Eu fui apresentado  a Stanley Kubrick porque meu pai não parava de ver Laranja Mecânica quando eu tinha 8 anos… e era provavelmente jovem demais para isso… E minha paixão por ficção cientifica vem dos livros que meu pai me deu, George Orwell e John Wyndham..

Quando você descobriu que queria ser diretor?

_Uma coisa eu sabia: que não ia ser músico. Nunca fui nada musical… Meu pai e eu brincávamos de fazer filmes desde que eu era moleque. Ele é fã de Ray Harryhausen e me mostrava os filmes dele. Tentávamos fazer o mesmo com uma velha câmera super 8 e meus bonequinhos de Guerras nas Estrelas e  Smurfs, nossa versão de animação stop-motion… Isso rapidamente se tornou um hobby pra mim, o hobby que me ocupava mais na faculdade que meus próprios estudos…

Qual é o poder da ficção científica, para você?

_É a capacidade de colocar várias hipóteses na nossa frente de um modo que podemos aceitar aquilo que, de outra forma, nos pareceria impossível ou até mesmo ridículo. É o modo mais perfeito para desafiar a plateia a aceitar coisas muito diferentes de suas próprias vidas, a rever seus conceitos, a abraçar o estranho, o improvável. É um modo de abrir mentes.


Sucker Punch: Crepúsculo para meninos
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Ana Maria Bahiana

Existia (não sei se ainda existe) uma rádio comunitária na região do Saara, no centro do Rio de Janeiro cujo ponto forte eram  os comerciais, transmitidos a todo volume pelas ruas deste tradicional bairro de comércio popular. Meu comercial favorito era o de uma loja de roupa íntima, no qual uma locutora, afetando entonações sedutoras, dizia, com a devida pausa entre as palavras: “Sutiãs…. sexys! Calcinhas…. sexys! Meias…. sexys!”

O bordão não saía da minha cabeça durante os  barulhentos, intermináveis, penosos 109 minutos de Sucker Punch (incrível: a mesma duração de Paul… nem parece). Porque, não importa quanta explicação Zack Snyder dê para seus objetivos e referências, Sucker Punch é, em essência, apenas isso: um bando de moças bonitas e gostosas mudando várias vezes seus figurinos de pouca roupa, em múltiplas combinações de… bem… “Sutiãs…. sexys! Calcinhas…. sexys! Meias…. sexys!” Sempre combinando, é claro, com os diversos tipos de armamento empregados em poses…sexys contra antagonistas emprestados de um sortimento de games.

Não tenho absolutamente nada contra – muitíssimo pelo contrário – o excelente uso de lingerie ou a livre exibição da beleza do corpo humano (tenho mais ressalvas quanto às armas ). Mas, a não ser para quem tem a idade física ou mental de um menino de 11 anos, é preciso mais que isso para justificar  uma hora e 49 minutos do nosso precioso tempo.

Precedido de grande expectativa  (devidamente alimentada pela Warner) Sucker Punch, escrito por Snyder com Steve Shibuya,  a partir de seu proprio argumento- deveria ser a obra mais pessoal de Snyder, seu pronunciamento artístico. Espero que não seja – acredito que, com disciplina e um bom roteiro, ele ainda possa realmente mostrar o “visionário” que James Cameron (entre outros) vê nele.

Mas neste momento, lá está, nas telas de todo o mundo: cinco meninas bonitas (lideradas por Emily Browning, Abbie Cornish e  Vanessa Hudgens) em trajes sumários, pessimamente dirigidas (algumas cenas me lembraram os piores momentos das piores novelas que já vi) sem ter o que fazer. A trama é um fiapo: trancafiada num mancômio nos anos 1950/60, Baby Doll (Browning) cria elaboradas fantasias para fugir de sua existencia infernal e se vingar dos homens que atormentaram sua vida.

A principal fantasia, que serve de base para todas as outras, é o sinal mais claro do que Sucker Punch realmente é: Baby Doll imagina que o manicômio é um cabaré/prostíbulo de luxo. Ou seja : tudo não passa na verdade do sonho febril de um pré- adolescente bombardeado por hormônios e video games, nada mais.  De certa forma, é um Crepúsculo/Red Riding Hood para meninos.

Baby Doll e suas companheiras de aventura não são personagens completos, com  personalidade, profundidade, contornos, história, humanidade , nem alegorias ou metáforas para alguma outra coisa: são meras figurinhas movimentando-se em elaborados cenários, com a obrigatória cãmera lenta a la Syder, repetindo poses, situações e falas. Numa entrevista recente, Cornish disse que o trabalho de preparação para o filme foi de tal forma que ela e suas colegas se sentiam “mais dublês que atrizes”. Dá para ver.

E para quem tem reputação de visionário, Snyder precisa se esforçar mais : os mundos em que Baby Doll e suas amigas se refugiam já foram vistos antes, muitas vezes, em obras superiores de Peter Jackson, Quentin Tarantino, irmãos Wachowsky e muitos games.

Em vários momentos – a escolha das cores, o design dos ambientes do “bordel”, o uso de covers na trilha – Snyder parece estar referenciando Moulin Rouge!, o que seria uma escolha interessante se o resultado final não estivesse muito mais próximo de  um crazamento de Burlesque com Faster,Pussycat! Kill! Kill!

Mas poderia ter sido muito pior. Poderia ter sido em 3D.


Rango, Paul: os novos meta-heróis da tela
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Ana Maria Bahiana

Um dos efeitos colaterais da longa vida do cinema é sua capacidade para gerar seu meta – não apenas filmes sobre fazer filmes ( Cantando na Chuva, Oito e meio, Noite Americana, Um Realizador em Apuros, entre muitos outros), mas filmes sobre a narrativa cinematográfica e seu mais de um século criando iconografia em nossas mentes.

É  interessante ver, esta semana, dois filmes assim batalhando pela bilheteria, aqui nos EUA : Rango, que está em cartaz também no Brasil, e Paul, que estreou aqui neste final de semana (em breve teremos mais um, Sucker Punch mas…. Oops, não posso dizer nada, embargo até sexta feira). São criaturas diferentes, esses dois, mas ligados pelo umbigo à mesma nave-mãe: o cinema, criador de narrativas nos nossos sonhos.

Rango, que mencionei aqui no outro post, é um longo e delicioso bilhete de amor ao western em suas diferentes versões e vertentes.

O western é, possivelmente, o mais moral de todos os gêneros cinematográficos : é sobre bem e mal em estado puro, na ausência de distrações proporcionada por uma paisagem intocada, onde os anteparos da civilização ainda não foram estabelecidos. Sozinhos (e livres) num ambiente sem os recursos da lei e dos acordos sociais, homens e mulheres precisam recorrer unicamente a suas próprias bússolas morais para definir seu comportamento e estabelecer suas escolhas. “Bem” e “mal” tornam-se simples e claras forquilhas na estrada, sem as ambiguidades da civilização.

Rango adiciona mais uma camada de simplificação ao seu meta-comentário transformando seus personagens em bichos – os animais do deserto, saindo do pano de fundo de tantos dramas humanos e ganhando sua própria voz. Como Ésopo, La Fontaine e Monteiro Lobato sempre souberam, bichos são a redução mais eficiente para compreendermos a nós mesmos – e é isso que Gore Verbinski faz, com grande sensibilidade, cuidado e humor, usando cada pedaço da alegoria do western: o xerife relutante e o duelo na rua principal de Matar ou Morrer, as imensas paisagens da filmografia de John Ford, o herói sem nome (duas vezes – o próprio Rango, camaleão sem nenhum caráter como Macunaíma, não tem nome enquanto é bicho de estimação) do cinema de Sergio Leone, o bando de renegados e a câmera lenta de Sam Peckinpah. É lindo e delicioso de se ver, e peço a todo mundo que não amou Rango de cara que considere uma segunda oportunidade.

Paul é uma criatura ligeiramente diferente. Apesar de ter sido dirigido por Greg Mottola (Superbad, Adventureland), ele é obra da dupla Simon Pegg/Nick Frost, que escreveu o roteiro, interpreta os papéis principais e, assim,completa sua trilogia de revisões do cinema: terror com Shaun of the Dead, policial com Hot Fuzz e, agora, com Paul, sci-fi.

Há uma camada dupla de revisão no olhar de Pegg-Frost: ingleses, ambos, eles olham não apenas para o cinema, mas especificamente para o cinema de massa produzido nos EUA. São esses clichês, esses códigos, essas invenções que a dupla gosta de subverter – e subvertendo, homenagear.

Em Paul, Pegg-Frost acrescentam mais um elemento: eles agora estão nos EUA, seus personagens em peregrinação nerd da Comic Con em San Diego à Area 51 de Nevada a bordo do que imaginam ser a quintessencia do sonho americano on the road- um trailer gigantesco abarrotado de junk food. Em pouco tempo o verdadeiro ET que encontram no caminho (o Paul do título, dublado à perfeição por Seth Rogen) se torna menos alienígeno do que os nativos da América, seus estranhos hábitos alimentares, costumes peculiares e bizarras crenças. Ver a “exotização” da cultura norte-americana, tão propensa a transformar em “exótico” o que está além de suas fronteiras, é um dos muitos prazeres de Paul.

Os demais são contar quantas referências ao cinema de fantasia Pegg e Frost conseguiram empilhar nos compactos 104 minutos do filme, de Steven Spielberg a James Cameron, Contatos Imediatos a Guerra nas Estrelas, Deliverance e, é claro, ET. Nem todos os momentos são igualmente felizes, e nem todas as participações especiais são tão geniais quanto as de Jane Lynch e Sigourney Weaver, mas esta viagem  hilária, mágica e misteriosa totalmente vale a pena.


Tron, o Legado e Bravura Indômita: dose dupla de Jeff Bridges
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Ana Maria Bahiana

Porque o fim de semana já está aí e, com ele, o lançamento mundial de Tron-O Legado, que tal uma dose dupla de Jeff Bridges, ator que prova o quanto viver muito e bem pode ser produtivo?

Comecemos por Tron, já que vocês podem conferir agora mesmo esta nova iteração do filme cult de 1982. Muitos fatores tornaram Legado um dos filmes mais esperados do ano _ principalmente o carinho de algumas gerações criadas à sombra do filme original, uma obra bizarra conceitualmente muito à frente de seu tempo.

Imaginar o que os recursos atuais da tecnologia podiam fazer com o universo virtual de Tron já seriam o bastante para fazer qualquer fã salivar; mas ainda havia promessa de uma dose dupla de Jeff Bridges, uma trilha pelo Daft Punk e a presença da super hot Olivia Wilde, sem falar nos  sucessivos  “aperitivos” servidos nas últimas Comic Con.

O Tron de 1982 sempre me intrigou  e fascinou mais do que agradou: me parecia uma ideia em busca de uma forma, um pressentimento, uma mensagem enviada pelo futuro do mesmo modo como,  dois anos depois, William Gibson psicografaria o século 21 em seu livro Neuromancer, a definitiva obra prima da era digital.

Consta que a Disney, produtora de Tron e detentora dos direitos, tinha vergonha de sua obra, o que explica os anos e anos de desenvolvimento do projeto, o sumiço das cópias do DVD do mercado e, finalmente, o mega-esforço do futuro diretor Joseph Kosinski e sua turma de efeitos visuais demostrando, num teaser, que era possível levar a história adiante.

Fãs do filme original não ficarão decepcionados com Legado _ é uma tremenda viagem visual por uma paisagem gelada e noturna, com impecável 3D original (nada de conversões aqui), espetacular direção de arte e a plena realização de algumas das ideias enunciadas em 1982 _ a perseguição de moto, por exemplo, agora de fato uma disputa em alta velocidade, com o espectador no meio. E, sim, duas (ou tres…) vezes Jeff Bridges: no mundo real e virtual, como o pai do herói Sam Flynn (Garrett Heldlund, possivelmente o ator menos carismático que já vi); e como seu avatar virtual, o programa Clu, rejuvenescido graças à mesma plástica digital que envelheceu Brad Pitt em Benjamin Button.

Meu único conselho: não levem a história a sério. Mesmo com longos diálogos expositivos para explicar como Flynn , Sênior foi parar na grid e o que fez por lá nos últimos 20 e tantos anos, qualquer tentativa de acompanhar literalmente a possível metáfora do mundo virtual ou descobrir o que Olivia Wilde é e que diabos Michael Sheen está fazendo fantasiado de David Bowie circa 1972 resulta apenas em uma tremenda dor de cabeça.

Abracem Tron-O Legado como uma experiência sensorial não muito diferente de um bom videogame _ ou, como me lembrou um tronólogo e cinéfilo mega-erudito, não muito diferente de Enter the Void, de Gaspar Noé.

E sim, a trilha , nos momentos em que o Daft Punk resolve se levar a sério , se parece perigosamente com a de Hans Zimmer para Inception. Mas quando eles se entregam a uma versão atualizada do electro-prog dos anos 80, é deliciosa (prestem atenção: são eles na cabine do DJ na cena do clube, mudando o som da pista para acomodar a iminente porradaria).

Bravura Indômita, dos irmãos Coen, também é uma refeitura muitos e muitos anos depois _ o original , dirigido por Henry Hathway, é de 1969 e rendeu a John Wayne o Oscar de melhor ator em 1970. Para seu filme Joel e Ethan Coen, na verdade, passaram consideravelmente ao largo do filme e retornaram ao texto original do livro de Charles Portis, publicado em 1968 e um clássico das  obras western.

Coisas importantes foram corrigidas com essa mudança de curso: a voz do filme, no sentido literal e figurativo, voltou a ser da menina Mattie Ross (a sensacional estreante Haillee Steinfeld, justamente lembrada nas indicações da Screen Actors Guild) e não do xerife “Rooster” Cogburn (Wayne  no original. Jeff Bridges, genial, aqui); a paisagem, física e emocional, saiu do épico Colorado do filme de 1969 e retornou ao mundo muito mais árido e desnudo do Arkansas/Oklahoma do livro.

Mais importante: todo verniz de sentimentalismo e qualquer tentativa de açucarar a trama foram eliminados. Como no livro, Mattie não flerta com o xerife texano (Matt Damon, ótimo) que se incorpora à patrulha em busca do assassino do pai dela; a picada de cobra do ato final tem todas as suas implicações sinistras e irremediáveis; e a linguagem mantem o estilo ao mesmo tempo formal e cru de Portis, acrescido do famoso humor dos Coens.

O resultado é um filme muito superior ao original, onde espíritos igualmente  ácidos – os Coens, Portis – se encontram para contar a história da menina de 14 anos que contrata um xerife em fim de carreira, bêbado,caolho e cheio de fantasmas interiores, para vingar o assassinato do pai.  Isto  é puro drama do oeste: como, num território sem contrato social e sem leis, a única bússola possível são os princípios morais de cada um.

Lamento que os executivos da Paramount tenham, por razões que ignoro, escondido o filme, o que pode ter resultado no seu sumiço dos (esquisitíssimos) Globos. Mereciam que Rooster saísse atrás deles, rédeas nos dentes, um revólver em cada mão.

Bravura Indômita estreia nos EUA quarta feira que vem dia 22; e no Brasil dia 21 de janeiro.