Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : Estreias

Heróis, vilões e o preço de ser humano: quatro lançamentos da temporada ouro
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Ana Maria Bahiana

Tanta coisa aconteceu nas últimas semanas por aqui que fiquei em super dívida com vocês… Aqui, os filmes que mais me impressionaram nesse tempo em que corri de um lado para o outro:

O conceito do presidente como herói/anti herói é comum na filmografia norte americana, atravessando praticamente todos os gêneros, do drama e thriller político à comédia romântica, rasgada e surreal (Marte Ataca!, por exemplo). É algo que dificilmente se imaginaria na produção de outros países, mas que faz sentido numa nação que elege presidentes há  237 anos, sem interrupções, ditaduras ou golpes militares.

Lincoln (em cartaz nos EUA, dia 25 de janeiro no Brasil) encontra Steven Spielberg em seu modo Amistad, refletindo sobre a história da nação norte americana, principalmente em uma de suas falhas fundamentais – a chaga da escravidão, e seus longos, dolorosos tentáculos até hoje.  Três elementos são o destaque do filme: o roteiro de Tony Kushner (Angels in America, Munique), veloz, erudito, incorporando tanto a complexidade do momento histórico (os momentos finais da Guerra Civil, a luta, no Congresso, para aprovar a lei que abole a escravidão) quanto o ainda mais complicado mundo interior do presidente; a fotografia espetacular de Janusz Kaminski, colaborador de fé de Spielberg; e o desempenho paranormal de Daniel Day Lewis como Abraham Lincoln.

Algo muito interessante aconteceu nesta colaboração: o roteiro de Kushner, centrado nos dilemas pessoais, sociais e políticos que, através de um grupo de pessoas – Lincoln, sua familia, seu braço direito William Seward (David Stathaim), o militante abolicionista Thaddeus Stevens (Tommy Lee Jones, genial) –  acabam impulsionando toda uma sociedade adiante, trava o impulso de Spielberg pela glamourização, pelo sentimental. E o calor passional de Spielberg ilumina e torna humano o que poderia ser um árido discurso sobre trâmites políticos na jovem nação norte-americana.

A notar: os igualmente ótimos desempenhos de Sally Field como Mary , esposa de Lincoln;  uma breve aparição de Joseph Gordon Levitt como Robert, seu filho mais velho; e James Spader, quase irreconhecível, como um antepassado de todos os lobbyistas que hoje  são a fauna mais comum de qualquer capital de Estado.

 Anna Karenina começou  como algo que, hoje, chamaríamos de novela: um folhetim encartado no periódico O Mensageiro Russo, suas oito complexas e generosas partes se estendendo de 1873 a 1877. Não é a toa que o que poderia se resumir a  um conto – mulher da alta sociedade da Russia Imperial, casada com influente político, tem um caso com um homem mais jovem e cai em desgraça —  tornou-se um vasto panorama da elite imperial, com um  15 personagens principais e mais um amplo sortimento de figuras secundárias.

Continuando seu ciclo de adoração cinematográfico-literária a Keira Knightley, Joe Wright (Orgulho e Preconceito,  Desejo e Reparação, Hanna) fez uma opção radical para sua adaptação do texto de Tolstoi: colocou  a maior parte de sua Anna Karenina (em cartaz nos EUA, dia 1 de fevereiro no Brasil) no interior de um velho (e lindo) teatro.

Como artifício dramático, é um espetáculo – Wright coloca os personagens de Tolstoi como elementos de uma grande performance pública, cada um representando seu papel no drama contínuo de uma sociedade altamente estratificada, dividida em classes hermeticamente fechadas. O artifício de transformar as coxias do teatro nas ruas de Moscou, a alta estilização da composição das cenas ( o balé dos burocratas, inspirado numa frase do texto de Tolstoi – “a burocracia é a alma da Russia”- é sensacional), o tom hiper-realista das caracterizações são empolgantes como estética.

O que se perde é a conexão emocional – Anna Karenina é uma obra linda mas fria, na qual o único ser humano parece ser o Karenin de Jude Law, atormentado entre a obrigação de agir de acordo com seu posto social e algo que pode ser, no fundo do seu coração, o pulsar de um afeto. Keira tem a estutura óssea de uma prima ballerina e a câmera está eternamente apaixonada por suas maçãs do rosto. Mas é talvez a mais gelada e distante de todos os lindos marionetes deste marzipan cinematográfico.

É um  sinal dos tempos: dois filmes se debruçam sobre a figura e a obra de Alfred Hitchcock. Um, feito para a TV (The Girl, de Julian Jarrold, para a HBO), ocupa-se de Hitch na época da realização de Os Pássaros; outro, com lançamento em circuito (Hitchcock, de Sacha Gervasi, estreia hoje nos EUA, dia 8 de fevereiro no Brasil) , é focado nos bastidores de Psicose.

E sabem qual é o melhor? O da TV. Jarrold preocupa-se em desconstruir a própria estética de Hitchcock e usar seus elementos para lançar luz nos vãos mais sombrios de sua alma, e Tobby Jones cria um Hitch de dentro para fora, organicamente e não como uma “personificação”.

Anthony Hopkins tenta fazer o mesmo em Hitchcock, mas, por incrível que possa parecer, a pesada maquiagem quase não deixa que ele trabalhe. Gervasi é um diretor simpático, responsável pelo delicioso documentário Anvil! The Story of Anvil. Mas me parece muito peso-leve para atacar um assunto complexo como Hitch. Trabalhando com um orçamento reduzidíssimo e apenas 35 dias de filmagem, ele criou um pequeno filme divertido que, ironicamente, teria sido mais apropriado para a TV.

Hitchcock oscila entre drama e comédia, aproximando-se da complicada mente do diretor mas temendo aprofundar-se em seu labirinto. Seus melhores momentos são os que comentam os eternos absurdos da indústria cinematográfica, a luta de Hitch para realizar seu projeto, as bizarras negociações com executivos e censores.

É interessante ver os dois lado a lado, em ordem cronológica – Hitchcock primeiro, The Girl em seguida. Alfred, o homem e o gênio, provavelmente não é nem nem outro.  Mas quem, décadas depois de sua passagem entre nós, pode ainda despertar tantas perguntas sem resposta?

E finalmente – eu não poderia deixar de comentar Skyfall.  O primeiro filme adaptado dos livros de Ian Fleming – 007 contra o Dr. No, de 1952 – trazia um conceito revolucionário no gênero “ação”: o espião como herói.  James Bond era um efeito colateral da guerra fria – até então, espiões, quando apareciam, eram sujeitos sórdidos, traiçoeiros, nada confiáveis. Um mundo em que conflitos passavam a ser, eles mesmos, secretos e indefinidos, abria espaço para que a atividade obscura fosse, enfim, heróica.

Mais de meio século depois, o impasse era: o que fazer com um ícone que já não parecia ter utilidade num mundo de guerras via bombardeios teleguiados, vírus pela internet e satélites-espião?

Trabalhando com um roteiro a três , mas principalmente do ótimo John Logan, Sam Mendes ataca o dilema de frente. Em suas mãos, o Bond de Daniel Craig é antes de mais nada um signo, um elemento dramático a ser composto como parte de lindos, elaborados panoramas visuais, de Xangai à Escócia. Humanos mesmo são o vilão Silva de Javier Bardem, e a extraordinária mãe-coragem M, de Judi Dench, lados opostos nessa dança mortal pelo controle de um mundo, na verdade, incontrolável.

 


A vida secreta dos espiões, parte I: a balada de Johnny & Clyde
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Ana Maria Bahiana

Dois filmes sobre o complicado, perigoso e muita vezes torpe ofício de vigiar a vida alheia estarão, em breve, competindo por atenção e prêmios, no auge da temporada-ouro: J. Edgar, de Clint Eastwood, e O Espião Que Sabia Demais, de Tomas Alfredson. São criaturas completamente diferentes ( e uma é muito melhor do que a outra).

Falemos de Clint & Hoover, primeiro.

O problema de trazer para a tela a vida de grandes personagens da história começa sempre com a mesma questão: como sintetizar uma vasta vida em duas horas de filme? J.Edgar, de Clint Eastwood, tem que enfrentar um problema a mais: seu protagonista, John Edgar Hoover, chefe do FBI de 1924 até sua morte em 1972, é uma das figuras mais controvertidas da história recente dos Estados Unidos, e tão repleto de segredos quanto o universo que criou à sua volta.

Um documentário poderia explorar essas múltiplas facetas e investigar as contradições através de  fatos e depoimentos. Um filme de ficção tem, em primeiro lugar, que contar uma história, preencher lacunas com a imaginação e criar artifícios através dos quais nós, na platéia, possamos nos conectar com a trama.

J. Edgar tenta bravamente em todas essa frentes, e triunfa em vários momentos. Leonardo Di Caprio tem um desempenho notável _ seu Hoover é um homem completamente fechado em si mesmo, desconectado de seus sentimentos e emoções, capaz de se relacionar apenas com seu trabalho, uma tarefa que o define e que ele idealiza até o absurdo.

O ótimo roteiro de Dustin Lance Black usa um bom artifício para conduzir a trama: sua narrativa é a autobiografia que Hoover dita em seu escritório a vários rapazes bem apessoados. Isso resolve a questão do ponto de vista: é claro que, aos olhos de J.Edgar, ele é o herói da trama – “precisamos deixar bem claro quem é o herói e quem é o vilão”, ele diz, logo de cara, ao primeiro datilógrafo . Não há dúvidas: deportar os bolcheviques de 1920 é a mesma coisa que chantagear Martin Luther King; o caso do sequestro do bebê do herói nacional Charles Lindbergh só foi resolvido graças à sua intervenção; ele mesmo, arma na mão, deu voz de prisão aos maiores gângsters da década de 1930.

Somos todos heróis de nossas próprias vidas e Hoover, desprovido de outra vida além do que, na sua visão, era a caçada interminável aos inimigos da América, tem grandes planos para si mesmo.

Mas existe a sombra, vista primeiro como um vulto através de uma porta de vidro: o fiel assistente Clyde Tolson (Armie Hammer) que pode ter sido a coisa mais próxima de um afeto que Hoover teve em sua vida. Como reconciliar esse pulsar com suas perseguições de políticos e figuras públicas homossexuais, e o terror de perder o amor de sua mãe (Judi Dench, maravilhosa como sempre), que deixa claro que prefere um filho morto a um filho gay?

Eastwood e Black respondem a questão com cenas em que o não dito fala mais alto que o dito: o primeiro encontro dos dois é exemplar, e envolve um lenço e uma janela. E também, é verdade, com uma certa edição dos fatos : Dorothy Lamour, possível amante de Hoover, é mencionada apenas uma vez, e a foto de Marilyn Monroe pelada sumiu do cenário da casa de J.Edgar, cuidadosamente reproduzida pela notável direção de arte de James Murakami.

O que nem sempre funciona nesse exercício é a pesada maquiagem que procura transformar os rostos de Di Caprio, Hammer e Naomi Watts (como a igualmente fiel secretária Helen Gandy, guardiã dos secredos de Hoover) em suas contrapartidas reais, ao longo dos anos. Quanto mais velhos os personagens estão, mais difícil fica acreditar nas próteses e adereços. É possível que um orçamento restrito – Eastwood gosta de trabalhar com orçamentos modestos para ter mais controle artístico da obra- tenha impedido a manipulação digital que tornaria o envelhecimento mais natural. É pena. O Clyde de Armie Hammer é o menos acreditável, um desafio que o ator tenta resolver como pode. Mas não é o bastante.

A trilha, assinada pelo próprio Eastwood, também não ajuda. Num contraste com a calma e o distanciamento que ele imprime ao filme – e que dificulta a conexão emocional de alguns espectadores- seus harpejos de piano e cordas, as vezes com a adição de um coral, são francamente sentimentais. Em alguns momentos (especialmente no final) a música imprime um tom melodramático que chega a chocar.

No geral, é uma brava empreitada, que deve render indicações, principalmente para Leonardo Di Caprio .

J. Edgar estréia sexta feira dia 11 nos EUA e dia 27 de janeiro no Brasil.


É o fim do mundo como o conhecemos: vamos filmar
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Ana Maria Bahiana

Estamos todos com medo _ o presente é assustador, o futuro é incerto e instituições que tínhamos como excelentes, operantes e praticamente infalíveis estão desabando diante de nossos olhos, tais e quais aquelas duas torres altivas e belas, na Nova York de 2001.

Esta parece a soma de todos os medos como interpretada e recriada pelo cinema norte americano, nestes últimos anos. E pode muito bem ser um dos grandes temas desta recém- iniciada temporada-ouro que, suspeito, vai realmente pegar embalo com a estreia de J.Edgar no início de novembro, se Clint Eastwood e Dustin Lance Black cumprirem suas promessas de virar pelo avesso uma figura icônica e sua querida instituição intocável, o FBI.

Dois filmes em cartaz neste fim de semana nos EUA continuam essa narrativa de apreensões.

Dirigido por Steve Soderbergh – em seu modo não-autoral – a partir de um roteiro original (e muito bem pesquisado)  de Scott Z. Burns, Contágio (Contagion, 2011) é um competente exemplar do thriller-epidêmico, no qual cientistas substituem detetives e policiais em busca de um assassino em série poderoso, terrível e invisível a olho nu. É um sub-gênero que tem antecedentes tão distantes quanto o noir The Killer That Stalked New York, de 1950, ou O Enigma de Andrômeda (The Andromeda Strain), de 1971; e, mais recentemente, Epidemia (Outbreak, de 1995).

Como Soderbergh é Soderbergh, seu prestígio arregimentou um elenco de estrelas para compor o mandatório time de vítimas e  investigadores – Matt Damon, Gwyneth Paltrow, Kate Winslet, Jude Law, Laurence Fishburne, Marion Cotillard. E como os tempos são os atuais, voltou sua atenção menos ao vírus e a seus caçadores e mais ao gradual e violento desmantelar da sociedade, ao longo de um mês, enquanto a doença progride, muda, sobrecarrega hospitais, gera paranóia, greves, vandalismo.

Porque o vírus se propaga pelo toque – e porque vivemos numa era em que as pessoas mais e mais se isolam atrás de seus celulares, tabletes e computadores – Soderbergh volta seu olhar, insistentemente, para os pequenos gestos  que nossas mãos fazem o dia todo, sem que percebamos _ a ânsia ancestral por contato, atrofiada numa sociedade em crise.

São elementos assim, mais que qualquer outra coisa, que tornam Contágio interessante. Não é bem, como seus antecessores, uma luta-contra-o-tempo para salvar o mundo – tempo e vírus são inexoráveis, aqui, como seriam na vida real, é o que o roteiro de Burns nos diz- mas uma observação de nossa fragilidade como sociedade, confiantes em forças que, talvez, sejam mais vulneráveis do que pensamos.

E ainda não sei porque Contágio está sendo exibido, pelo menos aqui nos EUA, em IMAX. A não ser para quem queira muito ver uma autópsia de Gwyneth Paltrow numa tela de 22 metros de altura…

Contágio está em cartaz nos EUA e estreia no Brasil dia 28 de outubro.

Em Tudo pelo Poder (The Ides of March, 2011) são as instituições políticas que estão em risco, ameaçadas não por um micro-organismo daninho, mas por nossa próprias fraquezas.

Diretor , produtor e coadjuvante do seu projeto, George Clooney também é co-roteirista, adaptando com Grant Heslov (com quem ele já havia trabalhado em O Amor Não tem Regras) a peça Farragut North, de Beau Willimon, sobre o jovem e entusiasmado assessor  de um candidato a candidato a presidente dos EUA, e sua penosa curva de aprendizado.

Clooney pegou para si papel do candidato, Mike Morris, um governador estadual do partido Democrata, carismático, progressista e bonitão. Stephen Moyers, o  inocente em treinamento, é Ryan Gosling, mais uma vez dando um show de interpretação inteligente, bem pensada. Outros grandes atores completam o elenco: Philip Seyour Hoffman como o coordenador da campanha de Morris, Paul Giamatti como seu correspondente no campo do oponente, Jeffrey Wright como o senador republicano cujo apoio pode fazer a diferença na corrida para a Casa Branca, Marisa Tomei como a jornalista durona, incansável na busca de uma boa matéria, Evan Rachel Wood como a estagiária bonita e ambiciosa.

O genial de Tudo pelo Poder – além de como Clooney expandiu  a peça a ponto de parecer impossível que a trama possa ser contada num palco – é que, politicamente, tanto Morris quanto Moyers, seu aprendiz de feiticeiro, são inatacáveis. Um candidato a candidato, dizendo o que Morris diz, com a convicção com que ele diz, seria a salvação para uma América em crise _ e a fé de seu pupilo é verdadeira e íntegra.

Não são os princípios ideológicos que abalam suas estruturas _ são fraquezas humanas tão antigas quanto o tempo, desejos inscritos em livros muito anteriores à Constituição dos Estados Unidos, único documento no qual Morris diz ter fé (na sensacional cena de abertura, Moyers repete este credo ; é esta cena, em super close, que serve de tema ao filme, repetida depois, muito, muito diferente, no final).

É um belo filme, especialmente alvissareiro  depois do decepcionante O Amor Não Tem Regras.

Tudo pelo Poder estreia nesta sexta feira nos EUA e estréia no Brasil dia 23 de dezembro.


Drive, Moneyball: celebrando a solidão do herói
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Ana Maria Bahiana

 

Devo, não nego, um apanhado dos primeiros lançamentos da temporada-ouro. Comecemos por aqui:

“Existem 10 mil ruas nesta cidade e eu conheço todas elas “, diz a narração off. “Eu dirijo. Não carrego armas, não participo de nada. Dou a você duas horas. O que acontece nessas duas horas é responsabilidade minha. O que acontece antes e depois, eu não quero  saber.”

A voz é do anônimo motorista/dublê vivido por Ryan Gosling em Drive, o excepcional filme que marca a estreia do diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn numa produção norte-americana (ainda que independente, cortesia da Film District, divisão da GK Films).

Drive começou como um belo livro  de James Sallis, um expert no neo-noir que explora a evolução do crime sob o sol de California, Arizona, Nevada, nas décadas depois da sacramentação do gênero. Na adaptação magistral de Hossein Amini (Paixão Proibida, Asas do Amor), cenário, tramas e personagens foram depurados e concentrados: tudo se passa agora entre uma oficina mecânica, um prédio modesto e uma pizzaria , com um set de filmagem e uma loja de penhores no meio, entre as 10 mil ruas do vasto, complicado município de Los Angeles.

Numa feliz sincronicidade que pode ser obra tanto do acaso quanto de intensa colaboração, o motorista sem nome de Ryan Gosling é a soma perfeita de todos os heróis/antiheróis da obra de Refn: lacônico, contido, seu mundo interior, emocional, trancado a mil chaves e só percebido por mínimos gestos, expressões, olhares.

Refn, que não conduz (porque foi reprovado várias vezes na prova de direção), foi escolhido pessoalmente por Gosling, fã de seu trabalho e do livro de Sallis. Depois de um primeiro encontro desastroso – Refn, gripadíssimo, passou mal à mesa – uma carona de Ryan e uma longa conversa on the road cimentaram a colaboração para criar o protagonista, absolutamente central à história. Nas palavras de Refn, “um homem que se define pelo que faz _ no caso, dirigir.”

Exemplo perfeito: a sequencia de abertura, um primor de fotografia, som e montagem, onde, sem diálogo, passamos a saber tudo sobre o personagem de Gosling, enquanto ele pratica, brilhantemente, seu segundo emprego _ pilotar carros de fuga para grandes roubos. Seu primeiro emprego é motorista-dublê em filmes, o que imediatamente cria uma interessantíssima justaposição de ficção e realidade, tão perfeita tradução de Los Angeles.

O gradual envolvimento com uma vizinha – Carrie Mulligan, excelente – leva nosso anti-herói a um “trabalho” especialmente arriscado, que vai abalar todas frágeis cadeias de seu pequeno mundo: a oficina mecânica do seu mentor – o sempre extraordinário Bryan Cranston, no avesso do seu Mr. White de Breaking Bad – e Nino (Ron Perlman) e Bernie (Albert Broks, absolutamente sensacional) os donos da pizzaria e investidores do seu possível novo projeto, um espetáculo ambulante de stunts.

Refn dirige Drive com o rigor e a clareza de olhar que são a marca do seu trabalho, referenciando as raízes inteligentes do filme de ação – Acossado, Operação França, Bullit – mas traçando seu próprio risco, um ambiente ao mesmo tempo intensamente real e estilizado, onde cada gesto, cada luz e cada sombra tem significado (e aqui, palmas à parte para a fotografia e Newton Thomas Sigl).

Absolutamente imperdível.

Drive está em cartaz nos EUA e ainda sem data de lançamento no Brasil.

 

É possível ver um filme lindamente dirigido, superbem escrito e com grandes desempenhos de bons atores e não se sentir investida emocionalmente nele nem por um segundo? Deve ser, porque foi o que aconteceu comigo em Moneyball.

Dirigido por Bennett Miller (Capote), Moneyball traz outro herói solitário e de poucas –mas boas- palavras: Billy Beane (Brad Pitt, bem escolhido e desempenhando à altura), cartola do time de beisebol Oakland Athletics que, em 2002, cansado de ver o time nadar, nadar e morrer na praia, abandonou os métodos tradicionais de escalação e, com a ajuda de um nerd formado em economia (Jonah Hill, ótimo), passou a escolher jogadores através de um software que leva em conta as estatísticas de desempenho de cada um.

É uma história verdadeira, contada no livro de não-ficção de Michael Lewis e  adaptada maravilhosamente pelos craques Steve Zaillian e Aaron Sorkin. Como em outro filme escrito por Sorkin – A Rede Social – e de certa forma como em Drive, Beane é um herói solitário andando contra a corrente, buscando apenas em si mesmo a força necessária para prosseguir.

Miller, fiel às suas origens como documentarista, mistura material documental com o filme em si, e enquadra com enorme inteligencia cada tomada, situando Beane em seu mundo e abrindo espaços para seu fugidio mundo interior – como o do anti-heroi de Drive, um mundo secreto, contido, nascido das frustações de quem foi jovem e brilhante atleta, e abriu mão dos estudos por uma carreira curta e brutal.

E com tudo isso…. Jamais consegui me conectar com o filme. Por que? Como muitos de vocês, nasci e me criei num universo onde o futebol era a língua-mãe. Entendo absolutamente nada de beisebol, e seu eco emocional, passional – abordado com tanta precisão em Moneyball – me escapa completamente. E beisebol, acima de qualquer outra coisa, é o coração, a essência de Moneyball. Se você conhece e gosta, não perca. Senão… não sei.

Moneyball estreia hoje nos EUA e 18 de novembro no Brasil.


Por que os macacos ainda nos fascinam?
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Ana Maria Bahiana

 

Os anos 1960 foram importantes para os grandes símios. Em 1963 o francês Pierre Boulle, um ex-soldado e ex-agente secreto dos aliados na Ásia durante a Segunda Guerra Mundial que se tornara autor de sucesso  em 1952 com o livro A Ponte do Rio Kwai (transformado em filme ganhador do Oscar em 1957) lançou uma obra de ”ficção científica clássica, repleta de suspense e inteligência satírica”(segundo um crítico) : La Planete des Singes ou, no título da primeira tradução em inglês, Monkey Planet.

4 anos depois outro autor europeu, o zoólogo e antropólogo inglês Desmond Morris, lançou um dos maiores best sellers da década, O Macaco Nu, uma popularização das diversas teorias que aproximavam seres humanos e seus primos primatas.

Ao mesmo tempo, vários centros de pesquisa desenvolviam programas para estudar as funções cerebrais dos símios, especialmente os chimpanzés. Os dois mais bem sucedidos, da Universidade de Columbia em Nova York e da Universidade de Nevada em Reno, envolviam a criação de dois chimpanzés – o macho Nim e a fêmea Washoe, respectivamente – em ambientes humanos, com o objetivo de “evoluir” seu potencial cognitivo  e de comunicação. Washoe foi o primeiro primata a usar a lingugem de gestos para se comunicar, e Nim  atingiu níveis ainda mais altos. Ambos, contudo, sofreram muito – Nim morreu aos 26 anos de um ataque do coração, como uma pessoa estressada e angustiada. Sua história pode ser vista no excelente documentário Project Nim.

Mas antes de tudo isso havia o chimpanzé Oliver, apresentado em circos e parques de diversão, desde 1960, como o “macaco humano”. Oliver tinha o hábito de andar apenas em duas patas, era extremamente inteligente e demonstrava preferência por mulheres e não fêmeas de sua espécie.

É interessante manter esse pano de fundo na cabeça quando se pensa em O Planeta dos Macacos, o primeiro filme a adaptar o livro de Pierre Boulle e um dos grandes sucessos de 1968 . Um sucesso tão imenso que gerou várias continuações (todas inferiores ao primeiro), uma série de TV , quadrinhos e uma tentativa de reboot em 2001, com Tim Burton. Numa era de imensas transformações – os anos 1960 – não eram tanto os símios que nos interessavam, era o mistério de nossa própria humanidade – o que ela tinha de específico, o que ela tinha de adquirido, o que ela tinha de imprevisível- que nos intrigava.

Numa era de mudanças ainda maiores – a segunda década do século 21- voltamos ao mito dos macacos pensantes trazendo, agora, novas inquietações. O preço de nossa irresponsabilidade com o meio ambiente –raiz do “suspense e inteligëncia satírica” do livro original- está muito mais claro e urgente. Nossa nova fronteira cognitiva somos nós mesmos: como ampliar nosso cérebro, como impedir seu envelhecimento. O pano de fundo tornou-se mais complexo e por isso o novo Planeta dos Macacos- A Origem (estréia mundial hoje)  consegue ter o mesmo impacto que o primeiro gerou, 43 anos atrás: porque coloca a questão de novo, numa linguagem que nós, os passageiros do século 21, entendemos perfeitamente: o que nos faz humanos? e que responsabilidade carregamos juntamente com essa humanidade?

Tenho grande admiração pelos filmes de puro entretenimento que usam plenamente a capacidade metafórica do cinema. Planeta dos Macacos-A Origem é exatamente assim, o drama de Frankenstein – criatura X criador, o terror da responsabilidade  traída – realizado na era digital, onde o imenso talento da Weta e de um grupo atores liderado por Andy Serkis, é capaz de colocar o humano literalmente dentro do símio.

Vejam – é o melhor filme da temporada pipoca 2011.

 


A pré-corrida do ouro, parte II: independents day
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Ana Maria Bahiana

Se formos julgar pelos últimos anos quem realmente dá as cartas e impõe o ritmo da Temporada Ouro são os independentes. Principalmente os chamados independentes-de-luxo, as divisões especializadas dos estúdios que trabalham com orçamentos baixos, levantam financiamento no exterior e realizam projetos de autor. Olhem os últimos vencedores do Oscar: nos últimos cinco anos, todos eles vieram de independentes de luxo. E mesmo Os Infiltrados, de 2007, foi realizado por um produtor independente de vastos recursos, Graham King; a Warner levou a láurea, mas entrou na festa lá pelo meio.

Este é um fato que dá muita dor de cotovelo à Academia, onde a maioria dos integrantes sonha com triunfos como os de Titanic, filmão de estudião levando um monte de estatuetas. E que revela um paradoxo interessante: parte substancial dos acadêmicos passa o ano fazendo um tipo de filme e, na hora de escolher, vota em outro tipo…

Por essas e outras é essencial acompanhar as escolhas dos independentes. Mais até que os grandes estúdios os independentes-de-luxo passam o pente fino em suas aquisições e produções, e pré-selecionam para o segundo semestre os títulos com mais chances de cair no gosto dos votantes. Grandes estúdios tem bolsos fundos e podem se dar ao luxo de gastar dinheiro até com filmes sem chance, apenas para agradar estrelas, diretores e produtores. Independentes, não: orçamentos restritos obrigam a uma seleção rigorosa, e só vai pro fogo do segundo semestre quem tem alguma chance de emplacar alguma coisa.

Eis como está o panorama indie:

A Fox Searchlight deu uma sorte danada em 2009 quando repescou Quem Quer Ser um Milionário das ruínas da falecida Warner Independent e levou-o até os Oscars. Este ano ela está colocando suas fichas do segundo semestre em  The Descendants (dezembro nos EUA, janeiro no Brasil). É um roteiro delicioso que tive o privilégio de ler, adaptando o livro de Kaui Hart Hemmings sobre um havaiano ha’ole (branco) em crise de meia idade. George Clooney lidera um ótimo elenco e o sempre bom Alexander Payne  (Sideways-Entre Umas e Outras,  As Confissões de Schmidt) dirige.  Bom pedigree.

A vitória de O Discurso do Rei, este ano, deu novo alento à Weinstein Company, que passava por apuros sérios. Os apertos financeiros continuam, mas Harvey Weinstein mostrou que não esqueceu seu talento de estrategista. O abre-alas da WC este ano é, sem dívida, The Iron Lady (dezembro nos EUA, sem data no Brasil), a cinebio da primeira e única Primeira Ministra da Grã Bretanha, Margareth Thatcher. Meryl Streep se dissolve na Dama de Ferro com o tipo de transfiguração que platéias e votantes adoram. Mais questionável é a diretora Phyllida Lloyd, cuja obra anterior é o felizmente esquecido Mamma Mia!

O segundo título da WC para o final do ano é outra aposta em anglofilia e interpretações carismáticas: My Week With Marilyn (novembro nos EUA, sem data no Brasil), a narrativa das tensas filmagens de O Príncipe Encantado, na Londres de 1957. Michelle Williams é Marilyn , Kenneth Branagh é Laurence Olivier e o diretor, Simon Curtis, vem da TV…. Como Tom Hooper…

A Sony Classics, veterana da corrida do ouro, tem  três apostas fortes para o páreo 2011. A primeira é Carnage (novembro nos EUA, sem data no Brasil) adaptação de Roman Polanski para a peça God of Carnage, sucesso de Paris a Londres, Nova York e Los Angeles). Como a peça, o filme é uma obra de câmara para quatro atores – Kate Winslet, Jodie Foster, John C. Reilly e Christoph Waltz – no papel de dois casais que resolvem conversar cordialmente sobre um incidente entre seus filhos…. Até , como em Em Quem Medo de Virginia Woolf, reverterem a um estado pré-civilização.

O outro peso-pesado da SC é A Dangerous Method (novembro nos EUA e no Brasil), com David Cronenberg analisando a relação entre Sigmund Freud (Viggo Mortensen) e Carl Jung (Michael Fassbender).

Michael Shannon e a onipresente Jessica Chastain estão no terceiro filme da SC, Take Shelter (setembro nos EUA, sem data no Brasil), um estudo de personagem que fez sucesso em Sundance e Cannes, sobre um pacato pai de familia que pode (ou não) estar enlouquecendo.

Outros independentes tem títulos de peso. A Roadside Attractions vem com Albert Nobbs (ainda sem data nos EUA e no Brasil), com Glenn Close repetindo o tour-de-force que lhe valeu prêmios no teatro: uma mulher que se faz passar por homem na Irlanda do século 19. Rodrigo Garcia dirige e o resto do elenco é de responsabilidade: Jonathan Rhys Meyers, Mia Wasikowska, Brendan Gleeson.

A Focus Features espera que a Academia reacenda seu amor por Colin Forth com O Espião Que Sabia Demais (Tinker Taylor Soldier Spy, novembro nos EUA, janeiro no Brasil), a adaptação de Tomas Alfredson (Deixe Ela Entrar) para a semi biografia dos primeiros anos de Ian Fleming, o homem que inventou James Bond, por John  Le Carré.

A Lionsgate aposta em outro sucesso de Cannes, Coriolanus (dezembro nos EUA, sem data no Brasil): Ralph Fiennes é o general renegado de Shakespeare e o diretor desta atualização da peça, transposta para um universo extremamente contemporâneo de mercenários e guerras lucrativas. Elenco de primeira: além de Fiennes, Gerard Butler, Brian Cox, Vanessa Redgrave e a onipresente Jessica Chastain.

Na parte III e final da nossa aventura, um apanhado dos filmes do primeiro semestre que podem chegar até a reta final.

 


No adeus de Harry Potter, o poder da vida e a magia do cinema
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Ana Maria Bahiana

 

 

A morte e os mortos tem um papel de destaque no derradeiro Harry Potter, parte II do último livro da saga concebida por J.K.Rowling, Harry Potter e as Reliquias da Morte. É um tema apropriado para o fim de um ciclo, a jornada de  mais de uma década de um herói que influenciou e povoou os sonhos de uma geração.

Como algumas gerações anteriores – as que cresceram à sombra do ciclo O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, obra que com certeza é uma influência no trabalho de Rowling – os contemporâneos da jornada de Harry foram levados a debater a importância das escolhas individuais, o sentido da amizade e da lealdade e, em última análise, a natureza do bem e do mal. Como Frodo em Senhor dos Anéis, Harry não é excepcionalmente forte, inteligente ou poderoso _ seu destino foi selado pela mão do acaso, e sua natureza heróica deve ser provada ou rejeitada pelas opções que fará nas encruzilhadas de sua trajetória. E, como Frodo, seu chamado não é para obter algo, mas para destrui-lo: a recusa de um tipo de poder para que se possa, amplamente, abraçar seu avesso.

Todos esses temas estão expressos e sintetizados em Harry Potter e As Relíquias da Morte – parte II, fecho perfeito para o ciclo de  oito filmes que, consistentemente, adaptou a obra de Rowling para a tela. Alguns foram melhores que outros,  mas mesmo o primeiro, Harry Potter e a Pedra Filosofal, que hoje parece ainda mais tosco, tem o mérito de ter escalado, brilhantemente, o elenco essencial que deu corpo a Harry, Ron, Hermione, seus colegas, adversários e mestres.

Reliquias II pode ser lembrado como um dos melhores. Mais uma vez, fãs do texto de Rowling podem estranhar as simplificações e liberdades que Steve Kloves –roteirista de sete dos oito filmes, escolhido pessoalmente pela autora – tomou com a obra. Mas é sempre bom repetir o mantra: livro é livro, filme é filme.

O essencial- o confronto entre Harry e Voldemort, que é, basicamente, o encontro de Harry com seu destino – precisa ser expressado visualmente dentro de um período limitado de tempo. Imagens e gestos precisam ser conjurados para concretizar o que, na página, são descrições e adjetivos.

Kloves e o diretor David Yates – que se desincumbiu bravamente dos quatro últimos títulos da série – ancoraram o episódio final de Harry Potter numa série de sequências de ação empolgantes, um contraste com o ritmo mais lento da primeira parte: a invasão das caixas fortes do banco Gringotts, o ataque a Hogwarts, o confronto final entre Harry e Voldemort.

O clima aqui é de urgência e resolução – com um poderoso interlúdio na estação de King’s Cross do metrô de Londres, perfeito em espírito e realização, que ilustra bem um outro ponte forte da série, a integração excepcional entre desenho de produção, fotografia e efeitos.

Este talvez seja o mais emotivo de todos os Harry Potters, provando o quanto vale a qualidade de um elenco de primeira linha, encabeçado por mestres como Alan Rickman (Severus Snape), Ralph Fiennes (Voldemort) e Michael Gambon (Dumbledore).

E no final estamos de volta a Hogwarts, encerrando um ciclo e começando outro, como a vida, que se estende sempre além da morte.

Precisava ter sido dividido em duas partes? Provavelmente não. Precisava ser em 3D? A não ser para espectadores que realmente apreciam cobras avançando em sua direção e objetos mágicos voando sobre as poltronas, não faz muita diferença. A magia de Harry Potter é obra de suas ideias e não de seus truques.

Harry Potter e as Reliquias da Morte Parte II teve pré-estreia  dia 7 na Grã Bretanha e entra em circuito mundial a partir de 14 de julho. Nos EUA e no Brasil,a estréia é dia 15 de julho.

 

 


Um cachorro falante, ETs hostis e os quintos dos infernos: o que há de interessante na TV, agora
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Ana Maria Bahiana

Agora que estamos todos (mais ou menos) conformados com o final de Game of Thrones e The Killing, e sabendo que o fim de ano vai trazer as segundas temporadas de Walking Dead, Boardwalk Empire e, finalmente, a nova de Mad Men, é hora de ver o que a TV oferece na meia –estação. E, entre séries novas e novas temporadas, muita coisa vale a pena:

Treme, segunda temporada (HBO)

Por que as pessoas parecem ter-se esquecido desta excepcional série, tão laudada em sua estréia, ano passado? Para meu paladar, esta segunda temporada está ainda melhor, menos preocupada em levantar a bandeira da indignação (que era a tônica da primeira, focada em Nova Orleãs imediatamente após o furacão Katrina ) e mais ocupada no que faz melhor: o desenho claro, detalhado, profundo, das vidas e personalidades de um grupo de pessoas e, através delas, do espírito de uma cidade.

O professor enfurecido de John Goodman faz parte da trama apenas como uma lembrança, um jovem empreendedor texano (John Seda) entra na história para ilustrar as mamatas da reconstrução da cidade, e as personagens femininas, principalmente o trio Ladonna (Khandi Alexander, magnífica) – Annie (Lucia Micarelli) – Sofia (India Ennenga) tornam-se os motores da narrativa. A cidade se define não mais como a vítima de uma sucessão de tragédias, mas como um ser vivo, capaz de sobreviver e se adaptar, negociando passado e futuro.

Entre as muitas virtudes de Treme, gosto especialmente do modo como a série usa a música não como um pano de fundo, mas como personagem,  um elemento vivo e ativo da história.Se a primeira temporada pertenceu, neste setor, ao Big Chief Lambreaux (Clarke Peters), esta segunda destaca o músico de rua Harley, encarnado pelo excepcionalmente talentoso compositor-multi instrumentista Steve Earle como a alma mesma da cidade, para quem música é o próprio ar que se respira.

Wilfred – estréia (FX)

Mega-sucesso na TV australiana, esta comédia surreal sobre a amizade entre um homem e um cachorro estreou esta semana no canal FX, com Elijah Wood no papel de Ryan, um jovem advogado em crise existencial , e  o australiano Jason Gann repetindo sua atuação como Wilfred, o cão que Ryan só consegue ver como um ser humano enfiado num óbvio traje peludo. É um artifício narrativo ousado _ a fatiota de Wilfred é claramente fajuta, parte integrante de algum delirio pessoal de Ryan.

Enquanto Ryan tem altos papos com Wilfred – que gosta de fumar unzinho e se se considera o namorado ideal de sua dona, Jenna (Fiona Gubelman)-  todos os demais personagens tratam Wilfred como o cachorro que ele é ( num breve momento, os espectadores tambem o vêem como um animal , o que só reforça o clima absurdista da série). Wilfred, somos convidados a pensar, é o inconsciente primitivo de Ryan, o lugar onde ele guarda instintos, desejos e hábitos que não ousa deixar aflorar. Mas o tom é de comédia rasgada que, para mim, funcionou melhor nos primeiros episódios, onde o artificio de Wilfred-o-cão-falante ainda era novidade. A série tem futuro? Checar, como referência, o cavalo falante da série Mr. Ed, dos anos 1950…

Falling Skies – estréia (TNT)

Steven Spielberg parece estar profundamente preocupado com o futuro da humanidade. Em sua outra série televisiva da safra 2011, Terra Nova (que estréia apenas em setembro), as condições apocalípticas em que a humanidade se colocou depois de vários desatinos ecológicos só podem ser corrigidas com uma marcha a ré radical.

Falling Skies, criada e escrita por Robert Rodat (O Resgate do Soldado Ryan, O Patriota) e produzida por Spielberg, oferece uma outra versão do fim do mundo: fomos invadidos e estamos sendo ocupados por ETs absolutamente hostis que nos tratam…. Hummmm…. Exatamente como os os colonizadores europeus trataram os habitantes originais das Américas. Em seu primeiro grande trabalho desde ER Noah Wyle se desimcumbe bem como o líder de um grupo de sobreviventes que se junta a improvisadas milicias de resistência na tentativa de repelir os invasores. Há muitos ecos de The Walking Dead nos temas de sobrevivência, familias separadas pela catástrofe, redefinições de hierarquias num mundo sem lei (e Walking Dead é melhor). O paralelo com a história norte (e sul..) americana dos tempos coloniais é o que torna FS mais interessante.

Breaking Bad -quarta temporada (AMC)

“Sempre soube que esta era a história da danação do meu personagem. Desde o início era bem claro que Mr.White estava numa viagem sem volta, de um modo ou de outro” – Bryan Cranston me disse isso ano passado, quando lhe perguntei se seu  personagem na vitoriosa série da AMC tinha alguma possibilidade de salvação.

A quarta temporada de Breaking Bad confirma tudo o que Cranston antecipou: retomando exatamente do momento em que Jesse (Aaron Paul, cada vez melhor) atira no competidor contratado pelo chefão Gus (Giancarlo Esposito) – a cena que encerrou a terceira temporada- a série enfia o pé no acelerador de uma curva descendente ao fundo dos infernos. O poder de BB é ver os pequenos passos, a mínimas concessões, as negociações pessoais, gradativas que pessoas que se consideram honestas fazem em sua caminhada para o lado sombrio da força. Jesse e Mr.White já perceberam que a dívida que contraíram não pode ser paga _ o nosso prazer sinistro é ver Bryan Cranston e Aaron Paul nos guiarem nessa jornada.

 


Super 8: brincando nos campos do Senhor Spielberg
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Ana Maria Bahiana

A primeira coisa que você precisa saber sobre Super 8, de J.J. Abrams, é que é necessário suspender MUITO a descrença. Cartesianos super racionais talvez prefiram poupar o dinheiro do ingresso, o que seria uma pena, porque o filme é uma delicia. Se resolverem correr o risco, lembrem-se do meu aviso: não comecem a se perguntar “mas como?”, “como é que é?”, “como é possível?” e coisas do tipo.

A segunda coisa é que, como bem disse este crítico, Super 8 é “pornô Spielberg”: uma citação explícita, reverente, salivante, hard core de temas, imagens e signos spielberguianos.

Tem gente torcendo o nariz para isso, mas não me incluo nesse bloco. Tenho outros problemas com Super 8 _ a gigantesca quantidade de fé na premissa que nem sempre é recompensada nem com a lógica interna do roteiro; o final meio apoteose em fúria, jogando no liquidificador todos os possíveis e imagináveis elementos fantásticos de uma história que já estava implorando por um pouquinho mais de lógica.

Mas cultuar o (aliás produtor) Spielberg não é um desses problemas. Gosto sempre de lembrar que os humanos das cavernas foram  provavelmente os únicos com direitos exclusivos à originalidade absoluta. Nas artes populares contemporâneas saber escolher as referências é uma parte importante da qualidade final. Afinal, a geração de Spielberg (e Lucas, e Coppola, e Scorsese, e Friedkin) achava que estava fazendo seu próprio culto a Truffaut, Godard, Clouzot, Antonioni e Kurosawa ( e os Beatles e Rolling Stones tinham certeza de que sua música era i-gual-zinha a dos grandes mestres do blues dos anos 1940 e 50…)

Muito natural, portanto, que Abrams vá direto à veia da Geração 70, pegando como inspiração uma frase de uma entrevista de Coppola dos anos 1980 sobre o futuro do cinema – “algum dia alguma garotinha gorducha do Ohio vai ser o próximo Mozart e fazer um filme lindo com a camcorder de seu pai”-  e saturando sua premissa com o cânon spielberguiano.

Em Super 8 um garoto gorducho do Ohio faz um filme, não necessáriamente lindo,  com a super 8 do pai dele. E esta é, na verdade, a melhor parte da película de Abrams. O garoto  Charles (Riley Griffiths) é.. bem… o DW Griffith de uma turminha de moleques (Joel Courtney, Zach Mills, Ryan Lee, Andrew e Jakob Miller e a cada vez mais excepcional Elle Fanning) que, claramente inspirada por George Romero (conte as referências…) está fazendo um filme de zumbis em uma pacata cidade do interior.

Como todo bom realizador, Charles está interessado em “grandes valores de produção”, de preferência a custo zero, o que leva sua brava equipe a uma estação de trem no meio da noite. Algo acontece, a camereta continua rodando e a história se torna mais spielberguiana e mais fantástica a partir daí. As referencias  – a ET, Parque dos Dinossauros, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, Guerra dos Mundos– se empilham, assim como o glossário de imagens spielberguianas: espelhos, automóveis, flashlights, rápidas aproximações da câmera.

A delícia não está aí: está no coração da trama, em sua inocência fundamental, no grupo de crianças, no limite da adolescência, buscando sua voz e sua visão, aprendendo a se relacionar entre si e com o mundo adulto, através da poderosa metáfora da fantasia, da imagem em movimento. O que acontece a partir da brusca interrupção de suas filmagens é divertido e segue em bom ritmo – exigindo cada vez mais a suspensão de descrença que mencionei lá em cima – até a mega apoteose final, absurdista ao ponto do bizarro (me lembrou a fruteira emergente do final de Segredo do Abismo. Não foi uma boa lembrança…)  Mas o que nos prende ao filme não é o fantástico: é o profunda e cândidamente humano.

Super 8 estreia dia 10 nos EUA e dia 12 de agosto no Brasil.E… fique até o final dos créditos…

 


É meia noite na Paris de Woody Allen: onde estão seus desejos?
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Ana Maria Bahiana

É uma boa coisa que Meia Noite em Paris (Midnight in Paris, Woody Allen, 2011) tenha sido escolhido para abrir o Festival de Cannes, semana passada: poucos filmes que eu me lembre realizam tão bem a visão do encontro entre cinemão e cineminha, entre Estados Unidos e França. É delicioso, leve, altamente digerível mas bem acabado, bem articulado, bem resolvido _ coisa que nem sempre os últimos trabalhos de Woody Allen tem sido, especialmente quando ele se deixa possuir por rancor, amargura e cinismo.

Estamos bem longe disso nesta meia noite numa Paris da imaginação. O clima é A Rosa Púrpura do Cairo e não Celebridade: um bombom, talvez um suspiro, e não uma poção de arsênico.

Pena que, para presevar a delícia do filme, eu não possa dizer quase nada sobre ele _ é um desses que quanto menos se sabe antes de sentar na cadeira, melhor.

O que posso dizer: um escritor frustrado (Owen Wilson, escolha mais que certa para o papel) vai com sua noiva (Rachel McAdams, ótima) e a familia dela para Paris. O pretexto é uma viagem de negócios do futuro sogrão (Kurt Fuller) _ republicano roxo, produto típico da era Bush . A viagem  deveria ser também uma excursão de compras para a nova casa dos noivinhos (que ainda não existe) guiada pela futura sogra ,o tipo de pessoa que acha uma cadeira de dezenas de milhares de euros  “uma pechincha”. No meio do caminho haverá o encontro com o ex-namorado da moça (Michael Sheen) um sujeito pomposo que gosta de dar palestras espontâneas sobre qualquer assunto, de vinhos a história da arte, mesmo que ninguém queira ouvir.

Gil, o escritor, é um roteirista de sucesso mas intui, como muitos antes dele, que ser apenas “super procurado pelos estúdios “ (palavras da  noiva) não é o suficiente para saciar sua fome de algo mais, a busca de uma felicidade sem nome que ele, talvez por falta de opções, coloca no passado, na Paris dos anos 1920, onde modernismo, cubismo e surrealismo estavam sendo criados e uma geração de  autores e artistas norte-americanos, alegremente auto-exilados, se reinventava. “Nostalgia é medo do futuro”, pontifica o ex-namorado, e ele tem mais que um pouco de razão (o que não o torna menos irritante.)

E então, numa bela noite, Gil tem uma epifania mágica…

Como em tantos outros  de seus filmes, Gil é um alter–ego de Allen.  Ou melhor, uma faceta de sua alma, aquela que, no outono da vida, reavalia uma carreira de sucesso e pensa se isso é ou não o bastante. A decisão de abordar esse dilema com generosidade e lirismo – e não com ressentimento e sarcasmo – é o que faz Meia Noite em Paris a delícia que é, indo além dos dez minutos de cartão postal da abertura para uma visão gloriosa da Paris dos sonhos, das possibilidades, repositório das aspirações  de gente criativa e contra a corrente de todas as épocas.

Allen está no topo de sua forma como dialoguista e desenhista de personagens _ em poucos traços, sabemos exatamente quem são esses americanos exilados em Paris e o que cada um espera da Cidade Luz (que, na visão de Woody, retribui exatamente na medida do desejo de cada um, cidade-fada-madrinha dos sonhos alheios). A escolha do elenco é perfeita, a fotografia é linda e o gosto de Allen pelo jazz dos Roaring  Twenties casa-se perfeitamente com o clima do filme.

Meia Noite em Paris estreia nos EUA sexta dia 20 e no Brasil dia 17 de junho.