Blog da Ana Maria Bahiana

Categoria : Estreias

Mad Max, Estrada da Fúria: a sinfonia do caos
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Ana Maria Bahiana

mad max abre

Respire fundo. Sabe aquele som que a gente ouve quando abre o Skype? Aquilo. Se você só gosta de pequenos filmes íntimos, quietos, introspectivos, contemplativos, saia imediatamente da sala e peça seu ingresso de volta. Nada contra seu gosto, muito pelo contrário – é só que esta experiência cinematográfica é o oposto completo de tudo isso, e pode, quem sabe, provocar um infarto em você.

Mas se você não tem medo de filmes em grande escala, que pedem (pedem não, exigem sem desculpas ou mais ou menos) entrega total a uma experiência não muito diferente do transe…. Ah… fique aí na poltrona.

Mas antes respire fundo. Porque durante as próximas quase duas horas você vai ter a impressão de que é impossível respirar.

Eis o que George Miller fez com seu reboot de Mad Max : usou todos os recursos disponíveis hoje, 36 anos depois, para realizar por completo o que provavelmente era sua visão desde o final dos anos 1970. Ou seja, a exploração absoluta do movimento como linguagem, a imersão em um universo em que a visão, a audição e a emoção da platéia estão constantemente engajadas, desafiadas, perturbadas. São 11 câmeras, um balé absurdo de stunts e efeitos especiais nas horas certas (uma tempestade de areia que dificilmente vai sair de sua memória) a serviço do que Miller chama de “provavelmente a forma mais pura do cinema” : a ação.

Mad Max: Estrada da Fúria é, basicamente, uma única longa sequencia de perseguição, orquestrada como uma espécie de sinfonia audiovisual, pontuada por preludios e breves momentos de adagio entre os ataques de prestissimo con fuoco que são o coração mesmo da trama.

Há momentos em que nós, na plateia, pensamos que Miller perdeu a batuta e seu filme vai desabar no caos. Não sabemos nada, como Jon Snow. É no caos aparente que está o rigor de George Miller, onde ele encontra o poder mais profundo de seu talento e compõe maravilhas mais velozes e mais terríveis do que nossos olhos são capazes de ver. Na perseguição, na intensa e constante mobilidade dos exércitos em marcha pelo deserto pós-apocalíptico, personagens se chocam e conversam sem palavras, dizem quem são e sobre o que são com um olhar, uma caminhada, um gesto – e, num dos momentos mais emocionantes, o abrir de uma porta de um dos muitos veículos em alta velocidade.

mad max meio

É difícil contar o que acontece sem estragar a experiência de viajar na Estrada da Fúria. Saiba só o seguinte: alguns anos depois dos acontecimentos de Além da Cúpula do Trovão, Max (Tom Hardy) continua assombrado pelos fantasmas de suas perdas, mas não quer mais vingança, apenas um tipo de paz que se parece com sobrevivência. Por artes da vida no mundo brutal da mitologia de Mad Max, seu destino se cruza com o da Imperator Furiosa (Charlize Theron), e ambos se vêem alvo da fúria de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne) e seu exército de War Boys.

O que provoca, alimenta e resolve essa guerra em movimento é também o que dá um destino à ação desenfreada de Estrada da Fúria: ideias sobre a corrupção do poder em todas as esferas, do meio ambiente aos sexos. Miller conjurou todos os elementos do que o cinema de ação tem de melhor e lhes deu um sentido.

Mais não digo. Vão ver, no melhor cinema que puderem encontrar. Se puderem, vejam duas vezes – eu só percebi a completa elegância do caos de George Miller depois da segunda vez. Da primeira vez você se sente mais como alguém que levou uma voadora na pleura- e adorou.

E não esqueçam de respirar.

 

 

 

 


2014, uma nova odisséia no espaço
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Ana Maria Bahiana

Interstellar abre

 

Christopher Nolan sempre disse que seu filme favorito de todos os tempos é 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick – que reinventou a ficção científica nos idos de 1969, inspirou Guerra nas Estrelas e, este ano, está sendo relançado para comemorar seus 45 anos de pioneirismo.

Tempo, tecnologia e prestígio deram a Nolan , finalmente, a oportunidade de criar sua resposta à obra do mestre _ e o resultado é ao mesmo tempo espetacular e frustrante.

Trabalhando mais uma vez com um roteiro a quatro mãos com seu irmão Jonathan, Nolan fez de Insterstellar a sua odisséia no espaço, sua declaração de amor à ciência e, em última análise, ao espírito humano, capaz tanto de mesquinhez quanto de grandeza. O grande triunfo de Interstellar é o modo como Nolan usa o filme – no caso, película mesmo, 35 mm e 70mm – para abordar os conceitos mais avançados da física, levando adiante a visão de Kubrick e de Arthur C. Clarke (que aliás aparece numa ponta muito inteligente do filme) para um momento da história em que a mesquinhez da humanidade esgotou completamente o planeta Terra, deixando como únicas opções a extinção ou a exploração espacial.

O que em 2001 era pura curiosidade científica é, em Interstellar, o desespero que leva à coragem absoluta. Num planeta exaurido, um núcleo de cientistas remanescentes do que restou da NASA planeja uma saída de emergência: uma missão (talvez suicida) para explorar um buraco negro além do qual podem existir mundos viáveis para a sobrevivência da humanidade. Cooper (Matthew McConaughey), um ex-astronauta transformado em fazendeiro depois de um acidente quase fatal, é o escolhido para a mais arriscada das tarefas – ir verificar as descobertas feitas pelas missões anteriores.

Paro aqui para não tirar o prazer de acompanhar essa jornada que – mais uma vez ecoando 2001 – envolve os conceitos de portal, tempo e espaço, e o profundo impacto emocional, existencial e ético que isso implica.

Inters elenco

E é aí que Interstellar se torna ao mesmo tempo embriagador e frustrante. 2001 era assumidamente uma exploração intelectual, quase espiritual. Nolan é um realizador cerebral, que sempre está mais à vontade usando seus personagens e situações como peças que,  num tabuleiro, se movem exclusivamente para impulsionar a trama, propondo e resolvendo enigmas. Interstellar, contudo, se propõe a ser algo muito mais emocional, no qual as relações de família, de amor e de amizade são essenciais para a própria essência da trama.

E não sei se ele consegue. O longo primeiro ato, no qual os irmãos Nolan precisam estabelecer as relações humanas que devem colorir todo o resto, acaba se tornando quase uma hora de exposição pura e simples (algo que também acontece em Inception, mas que a gente acompanha pelo próprio desafio da trama).

Uma vez no espaço, Interstellar flerta algumas vezes com o imenso potencial apresentado pelos desafios do multiverso e do multitempo. Há momentos de grande força, como quando Cooper encara pela primeira vez, na prática, o que representa ter passado pelo buraco negro enquanto sua família continua no tempo terrestre. Nolan faz aqui uma de suas escolhas mais brilhantes, fechando a câmera em McConaughey e não no que ele está vendo – e nos colocando imediatamente no coração da humanidade do personagem e de nós mesmos, na plateia.

Mas são momentos raros, e Interstellar perde com isso.

Inter terra

O que vale: a sensacional combinação de fotografia e efeitos, gerando (pelo menos para mim) a primeira recriação plausível e envolvente do que significaria uma viagem intergalática; a direção de arte, tão minuciosa e inteligente quanto a de Kubrick, nos dando, entre outras coisas, uma versão inesperada de uma inteligência artificial; e o som, que, como Gravidade, explora bem o silêncio absoluto do espaço (já a trilha de Hans Zimmer me deixou em dúvida com seu órgão e seus riffs constantes em cima de “Assim Falou Zaratustra” e “Danúbio Azul”…)

O elenco faz o possível e o impossível para dar emoção às longas exposições do roteiro. Gostei principalmente das interações entre McConaughey e a jovem atriz Mackenzie Foy, que interpreta sua filha na juventude (Jessica Chastain, sempre ótima, é a versão adulta da mesma personagem).

Minhas dicas; saibam que o filme tem quase três horas de duração (nada de refri gigante….) ; escolham a sala com a melhor tela (IMAX se possível) e o melhor som; e não custa nada dar uma atualizada nos conhecimentos básicos de física antes de ir pro cinema…

Interstellar estreia mundialmente dia 6 de novembro.

 

 


É um pássaro? Um avião? Muito melhor: é Birdman!
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Ana Maria Bahiana

Michael Keaton em Birdman Melhor dizer logo: Birdman (dir.Alejandro Gonzalez Iñarritu, 2014) é espetacular. Mais que isso: é o tipo de filme que leva os cinéfilos à loucura _ e este é, eu diria, seu único problema. A toda hora o filme parece estar piscando o olho para a plateia, como quem diz: Não sou o máximo? Isto aqui não é super cool? Entendeu a ousadia do que está acontecendo?

Se você é capaz de esquecer a auto-satisfação que percorre Birdman de ponta a ponta, este é um filmão. E, sinceramente, resistir é inútil. Da primeira à última tomada –ambas espetaculares, e sobre as quais direi nada, para não estragar a alegria de ninguém – Birdman pede que cada um de nós se engaje  numa jornada de muitos níveis, todos absolutamente fascinantes.

A começar pela forma: Birdman dá a perfeita ilusão de que é composto de um único plano sequência. Não é: trata-se de uma espetacularmente bem urdida costura de tomadas rigorosamente planejadas e uso preciso da montagem digital, onde ponto tem nó mas é invisível. Há uma alegria especial em ver um filme assim: a história é impulsionada para frente desde o primeiro momento, sem parar, como se tudo fosse um contínuo inspirar e expirar, como se estivéssemos ali mesmo com os personagens, próximos, confidentes, íntimos, vendo o mundo –exterior e interior- como eles o vêem.

Anotem por favor: indicações para a fotografia do sempre ousado Emmanuel Lubezki (Gravidade, Filhos da Esperança, Sleepy Hollow) e para a montagem de Douglas Crise e Stephen Mirrione (Traffic, 21 Gramas, a franquia Onze/Doze/Treze Homens ) .

birdman 2 elenco

Além de seu virtuosismo, precisão e beleza, a estética de Birdman é o veículo mais que perfeito para sua história: o punhado de dias durante os quais um ator ex-superstar (Michael Keaton) faz os ensaios finais e estreia sua primeira peça na Broadway, uma adaptação, feita por ele mesmo, de uma obra do escritor Raymond Carver. Aqui os cinéfilos podem começar a salivar profusamente: tudo é meta nessa trama, a começar pela escolha de Keaton como o ator em questão. Como seu personagem, Riggan, Keaton já foi um superastro da tela graças a um super-herói híbrido de gente e bicho: Batman para Keaton, Birdman para Riggan.

Ao contrário de Riggan, Keaton manteve o núcleo essencial de sua dignidade depois de abandonar a capa e a máscara. Mas como a peça de seu personagem, este filme pode ser o momento em que sua carreira dá uma nova guinada rumo ao alto.

Depois vem tudo o mais: o modo como Iñarritu enquadra Keaton e todo o elenco, traduzindo visualmente como eles se sentem; os grandes discursos que subitamente todos os personagens fazem justamente quando estão falando sobre a futilidade dos grandes discursos: as explosões de algo que pode ser alucinação ou não em momentos em que o mundo interior de Riggan/Keaton, pressionado pelas forças opostas da fama e da vida, vai desmoronando diante de nossos olhos. Muita gente tem reagido quase orgasmicamente a uma sensacional sequência que explica exatamente o que é a estética dominante de Hollywood, hoje. É fantástica, mas eu pessoalmente prefiro a longa corrida de Riggan pela rua, em plena Broadway, trajando apenas uma cueca. Tudo o que pode haver de simbólico e envolvente no cinema está ali.

birdman norton

E não é apenas Keaton que responde à altura ao desafio da narrativa. Todo o elenco é uniformemente excelente: Naomi Watts como a estrela da peça da Broadway; Edward Norton como o substituto de última hora, um ator temperamental fanático pelo Método de Strasberg; Emma Stone como a filha de Keaton, transformada, a contragosto, em assistente; Zach Galifianakis como o estóico advogado/produtor da peça.

Anotem, por favor: indicação de melhor ator para Keaton, conjunto de elenco para todo mundo, melhor roteiro para Iñarritu e seus comparsas Nicolás Giacobonne e Armando Bo (Biutiful) e Alexander Dinelaris.

E não posso deixar de falar da trilha, produzida por Gustavo Santaolala, e composta e executada por Antonio Sanchez – uma série de solos de bateria, que muitas vezes se manifestam visualmente na tela. Anotem esse também.

Num momento em que a grande produção usa exatamente estes recursos tecnológicos e humanos para vomitar uma sucessão interminável de nulidades, um filme como este lembra para que existe cinema.

Para mim, juntamente com Boyhood, de Richard Linklater, é, até agora, o filme do ano. Exatamente por esse motivo.  

Birdman estreou neste fim de semana nos Estados Unidos, com arrecadação recorde em circuito limitado. A estréia no Brasil é dia 22 de janeiro. Não percam.


O que tem nessa cabeça? “Garota Exemplar” e o poder da história
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Ana Maria Bahiana

gone 1 Garota Exemplar (Gone Girl, dir. David Fincher, 2014) começa com o close da cabeça da personagem Amy Elliott Dunne, a “garota exemplar” do título brasileiro, a “garota desaparecida” do título original. O livro de Gillian Flynn – que adaptou sua própria obra para a tela – também começa assim, estabelecendo uma das muitas qualidades da personagem – a fineza de seus traços, que incluem “o que os vitorianos chamavam de uma cabeça bem desenhada”. É também o modo como autora e diretor nos dizem que tudo o que vamos acompanhar daqui para a frente se passa, acima de tudo, na cabeça , ou a partir da cabeça, dos personagens. Não apenas Amy, a que desaparece, e Nick, o marido que se vê acusado de seu desaparecimento, mas os vizinhos, os policiais, os familiares, os habitantes da pequena cidade do Missouri com a história se passa, os espectadores dos programas de debates da TV dedicados a casos escandalosos que fazem a cobertura do desaparecimento. E, obviamente, todos nós, na platéia do cinema. Um dos primeiros grandes sucessos de Garota Modelo é ter colocado a gestão de sua versão visual nas mãos de quem concebeu o projeto original. Porque o projeto original era inteiramente sobre conceitos, sobre imagens, sobre as narrativas fictícias que nós fazemos em nossas cabeças o tempo todo e que, se deixadas à solta, crescem como ervas daninhas e se transformam em “fatos”. Quem leu o livro sabe do que estou falando . Para quem não leu, tentarei dizer o mínmo possível além de: vejam esse filme, vejam correndo. Sim, apesar do Ben Affleck. Mais sobre isso em breve. A premissa é essa que alinhavei aí em cima: numa pequena cidade do interior uma moça – bonita, carismática, filha de pais famosos e ricos – desaparece súbita e misteriosamente. O marido, filho da terra que voltou para a cidadezinha movido a crises pessoais e financeiras, se vê pouco a pouco transformado em principal suspeito. Mas o que realmente está acontecendo? Há ecos imediatos de casos como os de Scott Peterson, que chocou a Califórnia e todo o país em 2004 – e que Ben Affleck entrevistou como parte de sua pesquisa para o papel de Nick Dunne. Mas na verdade a teia de crime e castigo é apenas a fachada : Garota Exemplar é sobre as histórias que inventamos, as histórias que contamos a nós mesmos, os personagens que inventamos, os personagens que vivemos. gone 2 Amy, escritora bissexta, é filha de aclamados autores de livros infantis que a transformaram na personagem de uma série de best sellers. Nick é um jornalista reinventando-se na cidade grande – Nova York – e depois convencendo-se ser um outro personagem, o acadêmico e escritor recluso no campo. São histórias dentro de histórias, máscaras sobre máscaras empilhando-se e se re-arranjando ao sabor de um roteiro exato e da diabólica precisão de David Fincher, sua câmera sempre pousada onde mais oculta fingindo estar mostrando. É um filme longo – duas horas e 25 minutos – que passa quase como um transe, graças à maestria de Fincher e o apoio respeitável da trilha de Trent Reznor. Eu teria preferido que outro ator estivesse no papel de Nick. Mais que isso, o tempo todo eu imaginava outros atores, mais dinâmicos, mais plásticos, compartihando conosco os turbilhões internos do personagem. Pensei que talvez Fincher tivesse sido atraído exatamente pela impassibiidade de Affleck , expressando sempre uma máscara, nunca uma pessoa. Mesmo assim… Principalmente porque Rosamund Pike, no papel de Amy, lida com as mesmas questões de modo absolutamente espetacular. O filme é dela, do começo ao fim, e sem ela não seria o espetáculo que é. Espero que seja lembrada em todos os prêmios.  Garota Exemplar estréia aqui dia 26 de setembro, no festival de Nova York, e em circuito comercial dia 3 de outubro; no Brasil, sua estréia é no Festival do Rio, dia 2 de outubro.


Guardiões da Galáxia: quando cinema é a melhor diversão
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Ana Maria Bahiana

Guardians abre

Confesso: estava com dois pés atrás com Guardiões da Galáxia (Guardians of the Galaxy, dir. James Gunn, 2014) e admiti isso francamente lá no meu ask.fm. E tinha bons motivos:

  1. Aquele trailer. Imagino, aliás sei, que o marketing da Disney é danado de bom e mirou exato no alvo do público essencial do filme. Que não sou eu. Isso talvez explique porque, depois de ver algumas iterações do trailer, minha vontade de ver Guardiões chegou abaixo de zero.
  2. A overdose de filmes de super-herói. Neste último sábado, numa workshop de marketing e branding, a Marvel foi usada como case de uma grande virada de reposicionamento. E é mesmo – justo quando o consumo de seus quadrinhos estava em estagnação indo para a decadência, ela se reinventou desencarnando conteúdo de plataforma e invadindo cinema, TV e games. Palmas pra ela. Agora, que já esgotou minha paciência, ah isso já.
  3. James Gunn. Me perdoe, Jim, mas conheci você quando você batia panela pela Croisette, em Cannes, atrás do Lloyd Kaufman , parte do comboio da Troma, a produtora divertida e absolutamente classe-Z de gemas como Toxic Avenger, Splatter University e, para citar uma obra sua, Tromeo and Juliet. Isso seria até uma coisa boa – aí está Roger Corman que não deixa niguém mentir – mas você deu sequência à sua carreira com algumas coisas mega fracas para TV, e um filme tão execrado _ Movie 43 _ que merecia uma Framboesa de Ouro especial, cravejada de paetês.

Tendo dito tudo isto, evitei como pude as cabines oficiais e fui ver Guardiões como se deve – num cinemão de bairro lotado, com um balde de pipoca no colo e cercada pelo público-alvo por todos os lados. E adorei.

Alguns colegas apontaram – com razão – que Guardiões é um filme transnarrativa, ou meta-meta (termo que soa absolutamente pornográfico em nosso idioma, mas vá lá…). Ou seja, é um filme que prescinde de história, que se segura num fiapo de trama sem nenhum compromisso com fazer sentido ou apresentar grandes contornos dos personagens e seus dilemas. É um filme sobre uma experiência audio-visual. Quase, desculpem a blasfêmia, um Terrence Malick trincado depois de uma overdose de Red Bull. GUardians 1 Certo, existe um elemento disparador – um globo misterioso perseguido por várias facções interplanetárias, cada qual com sua agenda – mas isso é o de menor importância. Estudiosos e fiéis do cânon Marvel – no qual a saga dos Guardiões é decididamente um evangelho menor- poderão discorrer longamente sobre Kree e Xandar, ou a diferença entre Ronan e Thanos (ou sobre a exatidão da peruca da Glenn Close como Nova Prime).

Para mim, e, pelo jeito, para quase todo mundo na sala de cinema superlotada, não fazia a menor diferença. O prazer do filme era seu ritmo exato, sua medida certa entre aventura e comédia, seu grupo de adoráveis anti-heróis no meio de tudo, a dinâmica de suas sequências de ação, a insistência em não se levar a sério, suas múltiplas referências pop, de Indiana Jones a Kevin Bacon, de Star Wars a O Segredo das Jóias, com pitadas de Flash Gordon, Jornada nas Estrelas e Os Eleitos. Tudo isso ao som da mais inesperada das trilhas – o mix tape de pop e rock dos anos 1970 e 1980 que nosso herói Peter Quill (Chris Pratt, perfeito) ouve insistentemente, referenciando um dos poucos pontos consistentes da história, sua ligação com a mãe, autora das fitas.

Quando, no tempo das canções dessas fitas, George Lucas e Steven Spielberg decidiram abraçar publicamente sua paixão pop, dando uma guinada numa geração criada à sombra da nouvelle vague e do neo-realismo, eles estavam pensando nos seriados de baixo orçamento que formaram o imaginário da geração de seus pais. Guardiões faz muito isso, pegando agora o fio de outras gerações – as criadas com os filmes de Spielberg e Lucas – e dando a ele o tratamento cinco-estrelas que os efeitos de hoje permitem. Guardians Gunn Não é a toa que o cinema estava cheio de famílias completas, mães e pais e avós e avôs levando seus filhos e netos e divertindo-se com eles, possivelmente por motivos diferentes, cada qual criando sua própria história e referências em cima da experiência de ver o filme. Meta-meta. A obra é a história.

Então, Jim, desculpe a desconfiança. Eu devia ter lembrado que você também escreveu o ótimo Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead, 2004) e dirigiu o estranho mas super interessante Seres Rastejantes (Slither, 2008). E qualquer filme que começa com “I’m Not In Love” já ganha meu coração logo na largada.


Doze anos de uma história, um momento depois do outro
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Ana Maria Bahiana

boyhood abre 2 Boyhood, Ellar Coltrane Na última cena de Boyhood (Richard Linklater, 2014) , Mason (Ellar Coltrane) e uma amiga contemplam o céu em chamas e o horizonte infinito do majestoso parque Big Bend, no extremo sudoeste do Texas. Os dois estão meio viajandões de cogumelo, ocorrência não incomum quando se tem 18 anos e se está pousado no gume da lâmina entre o não saber bem quem se é e as portas escancaradas do futuro.Em alguns dias Mason e seus amigos de excursão pelo Big Bend começarão suas aulas na universidade. É possível que Mason e sua amiga se tornem um casal. É possível que Mason se forme com louvor em fotografia, sua paixão até o momento, que já lhe rendeu um prêmio no ginásio. É possível que ele troque tudo, que largue tudo, que se case, que  mude de cidade, ou de país… Tudo é possível, e é isso que a imensa paisagem vermelha, que imediatamente remete aos westerns clássicos, imprime em nossas retinas.

Mason e a amiga trocam um breve diálogo, que a princípio parece coisa de doidão. Ela acha que “carpe diem”, aproveite o dia, aproveite o momento, deveria ser ao contrário, que o momento é que nos pega, nos envolve, toma conta de nós. Mason concorda. “O momento é tudo”, ele diz, enquanto a câmera se aproxima lentamente, delicadamente, de seu rosto.

Esta cena, simples e maravilhosa, é o fecho perfeito para um filme enganosamente simples e cem por cento maravilhoso. Durante duas horas e 45 minutos – que passam com a mesma rapidez de um momento fugidio – vimos Mason/Ellar crescer diante de nossos olhos, do moleque de 6 anos que ainda se refugia no colo da mãe (Patricia Arquette) para ouvir histórias ao rapaz de 18 que compreende, afinal, que fantástica, penosa, complicada, única é essa estrada que trilhamos desde nossa primeira inspiração.

A absoluta insanidade de Linklater – filmar uma história ao longo de 12 anos, com os mesmos atores e não-atores – só havia sido tentada, que eu saiba, no território do documentário, com a série Up, de Michael Apted, que seguiu um grupo de crianças desde a escola até a meia idade. Mas a ousadia aqui é outra: o autor não está removido da história, não é o ser onipotente que, de fora, registra as trajetórias de outros. Em Boyhood Linklater está no centro de tudo: na concepção e planejamento do projeto (só a pré-produção levou mais de um ano, e a pós-produção, dois); no roteiro, que sem sombra de dúvida espelha sua própria vida crescendo no oeste do Texas num família instável centrada numa figura materna forte e progressista; e finalmente no olhar calmo, preciso, com que deixa que as duas histórias – a sua e a de Mason/Ellar – se desenrolem ao sabor do tempo.   Boyhood, Ellar Mason., Ethan HwakeCom certeza muita gente vai sair desse filme dizendo “mas é só isso? Isso não é nada demais”. Compreendo _ décadas de fogos de artifício visual de todos os tipos, de efeitos espetaculares a dramas e terrores absurdos, complicadas estruturas narrativas e outros adornos nos deixaram viciados naquilo que é ruidosamente “difícil”. Boyhood não é ruidoso, mas não é fácil – e a simplicidade do olhar de Linklater é o mais complicado de tudo, permitindo que, sobre a sua proposta, a vida e o tempo, em si, construissem um filme. Drama e comédia acontecem, mas Linklater não força a mão em momento algum, não sublinha, não grita – estamos com ele na casa da familia, no banheiro da escola, no assento do carona, na garagem, no almoço de domingo, respirando livremente o momento. Em breve outro momento virá, e outro, e mais outro, o rio do tempo mudando pessoas e paisagens, tecendo uma trama em parte inventada, em parte vivida . Como eu cheguei aqui? , o filme pergunta. Deixando os dias passarem, é a resposta, como na canção dos Talking Heads.

Mas Boyhood não é apenas a vida de um garoto – é a vida de seus pais (Arquette e Ethan Hawke), de sua família, de suas comunidades, de seu estado, de seu país, de todos nós. Somos nós todos atravessando 12 anos, mudando de roupa, de tecnologia, de trilha musical. Somos nós todos crescendo, amadurecendo, envelhecendo – palmas extras para Arquette e Hawke, que chutam o balde do convencional e se permitem envelhecer diante dos nossos olhos – ganhando, perdendo.

Vendo Boyhood eu pensei imediatamente em SlackerDazed and Confused, os filmes de Linklater que, para mim, mais se aproximam em conceito e estética deste. Mas um minuto depois eu vi, escondido em Boyhood, o olhar delicado e generoso de François Truffaut, seu comprometimento inequívoco com a verdade de cada pessoa, seu jeito despojado e poético de enquadrar, escolher, mostrar. Mason poderia ser Antoine Doinel no oeste do Texas, crescendo com os mesmos pequenos-grandes dramas que são os de todos nós e que, às vezes, o olhar do cinema captura tão precisamente.

E, no final, o momento é tudo.

Boyhood está em cartaz nos EUA e estréia no Brasil dia 30 de outubro.

 


Na mão e contramão da história, entre humanos de todos os tipos
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Ana Maria Bahiana

Dawncarao

 

A primeira (descontado o prólogo) e a última imagens de O Planeta dos Macacos- O Confronto (Dawn of the Planet of the Apes, Matt Reeves, 2014) são a mesma: um super close de Caesar, o líder dos símios que, no filme anterior desta iteração da franquia, libertou um bando de seus companheiros de espécie do cativeiro dos humanos.

Abrir um filme assim é uma ousadia tremenda – a imagem nos pede para aceitar um rosto não-humano como nosso igual e, mais que isso, como o protagonista de uma narrativa cinematográfica que, fora da animação, é dominada por nós, homo sapiens.É um risco brutal que nos diz, de cara, que o diretor Matt Reeves está jogando com todas as suas cartas, e veio para nos provocar, nos instigar, nos propor a ver um filme-diversão, um filme fantástico, como algo além de desculpa para duas horas no ar condicionado, comendo pipoca.

Quando vemos Caesar em extremo close-up, no final do filme, não há mais risco – e esse é um dos grandes triunfos de O Confronto. Graças a uma exemplar combinação de arte e tecnologia, do talento imenso de Andy Serkis e da genialidade dos animadores da Weta (e de mais três estúdios auxiliares de VFX), das excelentes escolhas de Reeves e da bela articulação do roteiro, há muito abraçamos Caesar e seus companheiros de tribo como personagens completos e complexos. A possível estranheza de ver um filme protagonizado por não-humanos desde o começo – algo que nem Avatar, que primeiro propôs esse conceito, deve coragem de fazer – desfaz-se com tamanha rapidez que, não demora nada, são os atores humanos que parecem fora do lugar.

O que é exatamente a ideia central de O Confronto. Dez anos depois dos eventos do filme anterior, de 2011 (aconselho ver antes deste) o mesmo vírus que tornou os símios capazes de saltar algumas etapas na escala da evolução dizimou a população humana do planeta. Núcleos de refugiados vivem em condições precárias no que restou das grandes cidades, enquanto nas florestas do norte da Califórnia, Caesar (Serkis) comanda uma vasta população símia capaz de comunicação, artefatos, estratégia, cultura, política e organização social.

Dawn1

As necessidades dos refugiados de San Francisco – comandados por Dreyfus (Gary Oldman, competente como sempre) – colocarão os dois mundos em conflito, acelerando a narrativa que, em última instância, levará ao cenário desenhado no primeiro filme de todos, O Planeta dos Macacos, de 1968 (escrito por Rod “Além da Imaginação” Serling, dirigido por Franklin “Papillon” Schaffner e adaptado de um genial bestseller do mesmo nome, de Pierre Boulie, cujo universo continua alimentando a franquia.)

O Planeta dos Macacos-A Origem já tinha sido um filme da alegre categoria :”filme  muito melhor do que precisava”, graças não apenas aos excelentes VFX mas também ao roteiro de Rick Jaffa e Amanda Silver (os mesmos de O Confronto) e à direção de Rupert Wyatt. Matt Reeves dirigiu um filme que me fez rir à revelia de suas intenções – Cloverfield – mas também assinou dois filmes que me disseram muito: The Pallbearer, de 1996, e Deixe-me Entrar, de 2010. Em todos eles (sim, inclusive Cloverfield) Reeves demonstrou seu talento em enquadrar e movimentar o olhar da câmera para contar muitas histórias ao mesmo tempo, coisa que faz aqui tantas vezes que é difícil até destacar uma – mas recomendo que prestem atenção numa cena de batalha que inclui o ponto de vista de um tanque, e que já seria extraordinária mesmo que todos os seus personagens fossem de carne e osso.

Dawnabre

Parte do que faz O Confronto se destacar nas águas mornas desta temporada pipoca é a sensação extraordinária de estarmos vendo ao mesmo tempo a mão e a contramão da história humana: o nosso retrocesso paralelo à evolução dos novos humanóides que criamos à nossa semelhança, dando a eles um pedaço do que julgávamos, em nossa arrogância, ser nosso dom maior, a inteligência. “Eles não precisam de energia elétrica”, diz um personagem humano. Exatamente. No começo do filme Caesar nos olha na platéia como quem pergunta o que estamos fazendo ali. No final, ele nos olha para ver se ainda temos alguma dúvida.

Se você só tem tempo para ver um filme da temporada pipoca este ano, veja O Planeta dos Macacos- O Confronto.

 E por favor – uma indicação para Andy Serkis, já!

O Planeta dos Macacos- O Confronto estréia aqui nesta sexta dia 11 e no Brasil dia 24 de julho.


É a Copa das séries: qual será o próximo grande sucesso?
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Ana Maria Bahiana

 

leftovers
Enquanto a Copa arrebata corações por aí, aqui as apostas são em torno das novas séries _ o verão norte-americano é um excelente campo de provas para as séries estreantes dos canais pagos, um setor mais que aquecido.

Aqui vão algumas prévias para vocês:

The Leftovers (foto) HBO, estréia 29 de Junho. Carro chefe da HBO na ausência do mega-hit Game of Thrones (cuja quinta temporada está neste momento em filmagem),. Leftovers é uma adaptação do livro Os Deixados Para Trás, de Tom Perrotta (que a Intrínseca lançou no Brasil em 2012 ) com supervisão de Damon “Lost” Lindelof. Como toda a obra de Perrotta – que já vimos no cinema em Eleição, de Alexander Payne, e Pecados Íntimos, de Todd Field – Leftovers, o livro, tem um tom entre o drama e a sátira, com situações banais levadas até extremos que revelam o absurdo da “vida normal”. Aqui, no caso, o súbito e inexplicado desaparecimento de milhões de pessoas pelo mundo afora e o impacto do sumiço nas vidas dos que ficaram.

Depois de ver os quatro primeiros episódios da série, ainda estou esperando a sátira. Acho que, assim como os arrebatados, ela não vai aparecer tão cedo, provavelmente nunca. Tudo é muito sério na fictícia cidadezinha de Mapleton, o clima de tragédia pesando no ar, referenciando, o tempo todo, os atentados do 11 de setembro de 2001. Numa mudança importante do material original, o protagonista não é mais um poderoso homem de negócios, mas o chefe de polícia da cidade (Justin Theroux), às voltas com dramas coletivos e pessoais (a mulher que largou a família para juntar-se a uma das bizarras seitas que se multiplicam depois dos desaparecimentos, a filha que vive em estado de apatia crônica).

Talvez a série floresça na continuidade – há alguns momentos geniais, com um surrealismo perverso que flerta com possibilidades saborosas no futuro ( um deles envolve cachorros e uma corça, e mais não direi…)

 

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Halt and Catch Fire (AMC, estréia dia 1 de junho). Devemos nos preocupar com a AMC? O canal que durante alguns anos gloriosos teve no ar Breaking Bad e Mad Men agora tem TURN (que é muito bem acabada mas não consegue me pegar de jeito nenhum) e esta novidade criada por uma dupla experiente na TV – Christopher Cantwell e Christopher C. Rogers – que, tenho quase certeza, pitcheou a série como “Mad Men nos anos 80! No mundo da informática!”

Senão vejamos: temos um executivo jovem, ambicioso, brilhante e arrogante (Lee Pace, que é o “Elfo Malvado” da trilogia Hobbit); uma ainda mais jovem profissional de informática, também brilhante mas socialmente canhestra (a canadense Mackenzie Davis), ao léu num universo dominado por homens; e um engenheiro inseguro, que se sente dominado pelos colegas e pela mulher (Scoot McNairy, um dos diplomatas sitiados de Argo).

Parece familiar?

Troque a publicidade pela industria da informática engalfinhando-se para produzir a próxima grande novidade nos anos 1980 como o mundo-em-transe das aventuras desses três personagem e temos Halt and Catch Fire.

Os dois primeiros episódios não conseguiram me dizer absolutamente nada além da excelente trilha musical – sintetizadores! New wave! Pós punk! – e das impressionantes sobrancelhas de Lee Pace. Já o terceiro, que foi ao ar domingo passado, apontou para uma boa evolução possível – em grande parte porque subverteu um pouco a rigidez dos personagens, tornando o Joe de Lee Pace mais vulnerável e imprevisível, e o Gordon de Scoot McNairy um pouco mais complicado e manipulador. Como quase toda série, Halt ainda não consegue dar às personagens femininas a complexidade que merecem, e isso é um dos seus grandes problemas.

Os diretores são do primeiro time – Juan José Campanella, Jon Amiel e Karyn Kusama, entre outros – e a a narrativa visual mostra com precisão tanto talento. E a trilha continua excepcional.

No próximo post: Outlander e The Knick.


Entre o banal e o fantástico reina Malévola
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Ana Maria Bahiana

 

 

maleficent-321154l-imagineA Disney foi o primeiro grande estúdio a compreender completamente o poder do mito, a ideia de que um universo mitológico é muito mais resistente ao tempo e à sucessão de gerações de plateia do que uma única história que se conta apenas uma vez. A Disney sempre investiu em personagens, mundos e mitologias, o que explica amplamente suas recentes aquisições e parcerias: Pixar, Marvel, LucasFilm. Todas elas empresas que, acima de tudo, se dedicam a criar mitos de longa duração.

Nos últimos anos a Disney tem se dedicado a rever e reposicionar mitos. Alice (originalmente criada por Lewis Carroll, é sempre bom lembrar) por Tim Burton; o Mágico de Oz por Sam Raimi; o Cavaleiro Solitário e Tonto por Gore Verbinski; praticamente todos os contos de fadas pela série Once Upon a Time.

Como o resultado desses esforços tem sido, na melhor das hipóteses, super desigual, fiquei um pouco preocupada quando soube que a Bela Adormecida era a próxima candidata a uma repaginação…

Tenho que admitir: meus temores, embora justificáveis, não se realizaram. Digo mais: de todas as tentativas da Disney, Malévola (Maleficent, 2014, dir. Robert Stromberg) é a melhor releitura até agora.

Crédito a quem merece: Linda Woolverton (A Bela e a Fera, O Rei Leão), que escreveu o argumento e deu o formato final a um roteiro feito a muitas mãos; Robert Stromberg, que usou sua experiência como premiado supervisor de efeitos especiais para dirigir um filme que é, inteiro, uma fantasia; e Angelina Jolie, claramente se divertindo muito com um papel que é mais complicado do que parece, e compondo um desempenho muito melhor do que era necessário.

O grande achado de Malévola é reposicionar seu conflito inicial – o ato “malévolo” da fada que amaldiçoa a princesa condenando-a a um sono eterno – como uma extensão de um outro conflito : o do mundo fantástico, do impalpável, do misterioso, habitado por fadas, elfos, dragões e espíritos da natureza, e o mundo do dia a dia, onde os seres humanos estão ocupados na disputa de poder e riqueza.

Esse recurso narrativo, dando uma outra moldura a uma história muitas vezes repetida desde o século 17, abre as portas para uma deliciosa exploração de quem realmente seriam os protagonistas do conto de fadas – qual a verdadeira natureza de Malévola, a “fada má”; de Aurora, a princesa amaldiçoada,;e de Stefan, o rei, pai dela.

É um caminho que leva a novas e interessantes conclusões – a maior de todas, uma releitura completa e radical da ideia de “amor verdadeiro” que em geral leva ao “felizes para sempre” das histórias.

Mas não se assustem – Malévola é uma delícia de assistir, uma experiência visual sensacional, uma jornada muito divertida por uma trama que todo mundo acha que conhece. Eu teria preferido menos gente mexendo no roteiro – as costuras das emendas às vezes são aparentes – e ainda não entendo por que ninguém resolveu o primeiro grande problema da história – o fato de  nossa heroína se chamar “Malévola”, um nome que, por si só, já determina como olhamos para a personagem. Certo que a Disney tem que manter bem lustradas as suas marcas – no caso, os nomes de seus personagens – mas há recursos simples de criação que poderiam ter contornado isso.

Mas isso não impede de ser uma ótima maneira de passar 97 minutos – leve as crianças se precisar de um pretexto…

 Malévola estreia nesta quinta feira, dia 29, aqui e no Brasil.


Deuses e monstros
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Ana Maria Bahiana

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O divertido da temporada pipoca é que podemos suspender muito mais que nossa descrença quando vamos ao cinema (e olha que a descrença, no caso, precisa ser completamente deixada em casa).

Estamos, aqui, inteiramente no território da metáfora, o realismo passa ao largo e todos os possíveis buracos em tramas e personagens podem e devem ser perdoados (a não ser os que ofendem o cânon dos textos sagrados, as hq…). A lógica dominante aqui é a lógica da narrativa – no mundo do fantástico, onde tudo é possível, as regras são as que os criadores combinam no começo do jogo, com o consentimento tácito de nós todos, na plateia.

O que nos leva logo de cara ao meu monstro favorito, Godzilla. Monstros estão no cimema desde que as câmeras começaram a rodar . Os seus melhores e mais poderosos, como King Kong e o Gojira original de 1954, são os que, além de nos dar sustos em grande escala, de alguma forma cutucam as camadas mais profundas de nossos sonhos e pesadelos. Por que apenas o ser humano seria capaz de sentir?, King Kong pergunta, acuado no alto do Empire State. Por que o ser humano é incapaz de assumir responsabilidade pela destruição que causa quando não consegue controlar sua sede de poder? indaga Godzilla, nascido da radiação atômica, enquanto caminha descuidadamente por Tóquio, destruindo tudo em seu caminho, como tinham feito as bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki, meros nove anos antes.

O problema de mais esta iteração do mito é não levar fé no poder do monstro. Desta vez com os amplos cofres da Warner bancando os gastos e um bom diretor indie,. Gareth Williams, estreando na árdua tarefa de pilotar um arrasa-quarteirão, este Godzilla parece decidido a dizer, logo de cara: este ano não vai ser igual aquele que passou, este filme não vai ser aquela coisa vexaminosa dirigida pelo Roland Emmerich. Talvez por isso a Warner insistiu em encher a tela com um monte de astros de bom pedigree – Bryan Cranston (numa peruca bizarra), Sally Hawkins, Juliette Binoche, Ken Watanabe, Aaron Taylor-Johnson.

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Acabamos então com dois filmes: um com os atores e o outro com o monstro. Os atores, coitados, tem que despachar aqueles diálogos cheios de explicações, as tão temidas “exposições”. É uma hora disso até que o outro filme comece, o do monstro, que é muito melhor que o primeiro. Infelizmente desprovido de sua maior arma metafórica- o fato de ser nascido da radiação – este Godzilla pelo menos tem a seu serviço efeitos muito melhores (aliás melhores que vários outros no próprio filme, que parecem meio sem jeito no 3D de conversão). E uma missão nobre, que finalmente faz justiça ao seu poder monstruoso.

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Super-heróis são criaturas de outro universo metafórico – são nossos deuses, nossas figuras mitológicas capazes de extrapolar nossas pobres limitações humanas. Sempre achei os X Men especialmente interessantes. Suas qualidades extraordinárias são, elas mesmas, um limite, algo que os torna não os acolhidos e eleitos dos humanos, ams os malditos, vistos com desconfiança e até ódio.

É uma metáfora poderosíssima, que Bryan Singer compreendeu e trabalhou muito bem em seus dois filmes da franquia (2000 e 2003). É bom te-lo de volta em Dias De Um Futuro Esquecido. Trabalhando com um bom roteiro de Simon Kinberg (que por sua vez se inspira na trama desenvolvida nos quadrinhos por Chris Claremont e John Byner), Singer volta ao tema da estranheza e da rejeição, que chega aqui ao limite absoluto – um verdadeiro holocausto causando pelas invenções do Professor Bolivar Trask (Peter Dinklage, ótimo como sempre), que ameaça destruir não apenas todos os mutantes mas toda a humanidade.

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A única salvação está, como sempre, nas mãos dos rejeitados. Usando os poderes de Kitty Pryde (Ellen Page), Wolverine (Hugh Jackman) volta ao passado, com sua psiquê habitando o seu corpo – e compartilhando sua mente- em 1973. A missão: reescrever a história, e, dessa forma, impedir o holocausto.

Não sei o que isso poderia ter resultado em mãos menos competentes que as de Singer. Mas, aqui, o que temos é um filme ao mesmo tempo divertido e provocador, íntimo e em larga escala, repleto de questões filosóficas – somos, hoje, os mesmos que éramos no passado? Somos capazes de perdoar a nós mesmos? – e onde a violência, quando existe, tem consequencias.

Fãs de X Men vão ficar felizes com a quase overdose de personagens em aparições especiais (sim, incluindo a Vampira de Anna Paquin e o Mancha Solar brasileiro vivido pelo mexicano Adan Canto). O meu favorito é o Mercúrio (aqui, Evan Peters de American Horror Story), responsável por uma das sequências mais empolgantes do filme – e o melhor uso do “bullet time” a la Matrix que eu vi em muito tempo.

Vale a pena deixar a descrença em casa para estes X Men.