Blog da Ana Maria Bahiana

Frankenweenie: Tim Burton volta para casa
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Ana Maria Bahiana

 

No fim da rua Evergreen, no subúrbio de Burbank, em Los Angeles – onde estão, entre outras empresas do meio, as sedes da Disney e da Warner – existe um cemitério chamado, sem ironia, Valhalla.  Timothy William “Tim” Burton, filho mais velho do casal Bill e Jean Burton (ele ex -jogador de beisebol, ela dona de casa), cresceu nessa rua e, em suas próprias palavras,  a impecável normalidade suburbana dos anos 1960 era muito mais assustadora para ele que seu vizinho fúnebre.  Burton, na verdade, encontrava paz e sossego passeando de bicicleta pelo cemitério — o mesmo conforto que sentia vendo antigos  filmes de terror na TV.

A juxtaposição da imutável ordem do subúrbio californiano sobre o pavor e a solidão do menino tímido que encontrava refúgio nos filmes e séries de terror da TV (numa interessante coincidência, uma dessas séries era apresentada pelo pai de Paul Thomas Anderson, Ernie Anderson) é o veio mais profundo do talento de Tim Burton. Quanto mais ele se aproxima dessa rica fonte pessoal, mais completas e brilhantes são suas obras.

Em 1982, depois de cursar a prestigiosa Cal Arts com uma bolsa oferecida pela própria Disney (seus colegas eram, entre outros, John Lasseter, Brad Bird e Henry Selick), Burton foi contratado para o departamento de animação do estúdio.  Trabalhou em Tron e O Caldeirão Mágico, e ofereceu um primeiro curta para consideração do estúdio: o altamente autobiográfico Vincent, sobre um menino solitário que sonha ser o ator Vincent Price.

A Disney ficou dividida – o controle e a inventividade do jovem diretor eram óbvios, mas a estética era um tanto sombria para o estúdio. Mesmo assim, bancaram o segundo projeto de Burton: um curta estrelado por Shelley Duvall , Daniel Stern e o menino Barret Oliver, sobre um garoto solitário num subúrbio impecável e a profunda amizade que o une a um cachorrinho de trágico destino.

O curta, intitulado Frankenweenie, deveria estrear nos cinemas em dezembro de 1984, parte do relançamento do longa de animação Pinóquio.  Em vez disso, o projeto foi arquivado e, pouco depois, Burton foi despedido do departamento de animação da Disney.

Frankenweenie, 1984

O resto, como se costuma dizer, é história. Mas é importante conhecer as origens do lindo, poético, sensacional longa stop motion com  o mesmo título – Frankenweenie—que estreia hoje nos Estados Unidos (e dia 2 de novembro no Brasil), lançado precisamente pela Disney. E não apenas porque, vinte e oito anos depois, Tim Burton tornou-se um diretor superstar e a Disney, que detinha os direitos do curta, viu-se levada à óbvia necessidade de reconhecer isso. Mas principalmente porque, de muitos modos diferentes, Frankenweenie é uma volta para casa para Burton: a volta à animação stop motion, uma de suas primeiras paixões (como muitos de sua geração, ele é cria do mestre Ray Harryhausen); a volta aos impulsos de inspiração que o levaram a fazer o curta; e, consequentemente, a volta ao menino que ele foi, tímido, inteligente, solitário, buscando conforto nos lugares mais estranhos – um cemitério no fim da rua, filmes de terror estrelados por Vincent Price na TV.

 

E, como agora Burton é pai também, ele tem a tripla vantagem de rever sua obra pela perspectiva da criança, do adulto e do fã de cinema. Frankenweenie é um filme perfeito  de todos esses ângulos.

A história continua a mesma: o garoto Victor Frankenstein, do aprazível subúrbio de New Holland, em algum lugar dos Estados Unidos, inspira-se nas aulas de ciência da escola (ministradas pelo sensacional Professor Rzykruski, uma grande criação conjunta de Burton, do roteirista John August e do talento vocal de Martin Landau) para resgatar das garras da morte o único ser com quem tem algum vínculo emocional—o cachorrinho Sparky.

Sim, é o Frankenstein de Mary Shelley – o filme original de James Whale, de 1931, é referenciado amplamente, e há uma inesquecível tartaruga chamada Shelley no meio da história – mas é também um amálgama carinhosíssimo de todos os filmes de terror que  formaram o cineasta  e o menino Tim Burton. Cinéfilos atentos vão se divertir imensamente com as múltiplas referências aos clássicos do terror, e, quem sabe, novos Tim Burtons na plateia terão sua curiosidade despertada.

Mas, além disso, Frankenweenie tem ,em sua essência, um enorme coração, atento a um dos mais delicados ritos de passagem da infância: o contato com a morte, em geral através da perda de um querido bicho de estimação (no caso de Burton, o poodle Pepe, sua inspiração para Sparky). Existe uma dose justa e equilibrada de susto e conforto em Frankenweenie, fruto, quem sabe, de uma compreensão dupla, como o menino que foi e o pai que hoje é, da complexidade da alma infantil.

É muito bom ver Tim Burton voltar para casa tão profundamente, tão alegremente, tão seguro de si. Há muito tempo eu não via num filme seu tamanha sinceridade, tamanha entrega, um desejo tão claro de colocar sua rigorosa estética – e como são lindas a animação e a fotografia de Frankenweenie !– a serviço de uma ideia que ele abraça tão completamente, sem reservas.

Tim, bem vindo de volta. É quase Halloween em Burbank, o cemitério Valhalla está em festa.

 

 


Adeus, Emmys – agora, a correria dos outros prêmios
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Ana Maria Bahiana

E aí, gostaram dos Emmys? Da minha parte, resumidamente:

  • A abertura foi xoxa, comparada com anos anteriores (lembram do ''Born to Run'' de Jimmy Fallon e companhia em 2010?)
  •  Não aguento mais Modern Family, me pareceu um voto preguiçoso, especialmente considerando que este ano, além da eternamente injustiçada Big Bang Theory (será que só vão premiar quando ela definitivamente não for mais o que era? Prêmio faz muito disso…), tínhamos as excelentes estreantes Veep e Girls.
  • Homeland é uma bela série, mas o nível da dramaturgia e direção de Mad Men e Breaking Bad é muito superior – são duas séries que já fazem parte da história da TV contemporânea, e que se provaram ao longo do tempo, desenvolvendo magnificamente seus personagens e tramas.
  • Perder na “minha” categoria – categoria especial – para os Tonys foi um prazer. Explico o “minha”: fui, como consultora de roteiro, parte da equipe do show de entrega dos Globos de Ouro 2012, indicado na “categoria especial” dos Emmys, este ano, primeira indicação que o evento recebe. Eu me senti super lisonjeada, mesmo com meu papel minúsculo na empreitada. E não me importei nem um pouco em perder para os Tonys.

Mas o assunto da cidade, agora, não é mais Emmy, mas a momentosa temporada dos prêmios de cinema, que se aproxima com a mesma velocidade fulminante do temperamental outono angeleno (um dia, calor escaldante; dia seguinte, chuva, 17 graus e folhas pelo chão).

O amador, bizarro e propositalmente incendiário filmeco feito por um egípcio num subúrbio ao sul de Los Angeles acabou de custar alto para o cinema iraniano : em represália ao tal Innocence of Muslims, o Irã decidiu boicotar os Oscars e não submeter nenhum título este ano.

A história desse filmeco é um interessantíssimo tema para uma discussão sobre liberdade de expressão, responsabilidade e intolerância, mas neste momento o que mais lamento é a ausência do cinema iraniano numa das maiores janelas de exposição do mundo – e um ano depois  da vitória do sensacional A Separação.

A mudança das datas é uma história mais complexa_ e vamos esclarecer, o anúncio das indicações aos Globos de Ouro, dia 13 de dezembro, continua sendo antes do anúncio das indicações ao Oscar, dia 10 de janeiro. Para começar, não creio que isso altere em nada o efeito-balaio que os Globos de Ouro tem sobre os demais prêmios. Sempre disse que os Globos criam uma pré-seleção com suas indicações, não com seus vencedores – a composição, temperamento e ponto de vista dos votantes é completamente distinta. Uma olhada nas listas de indicados, ano a ano, comprova esse fator – e as diferenças entre os vencedores mostra como clareza os diferentes critérios de escolha de Academia, Guildas e correspondentes estrangeiros.

E aqui está o x da questão, que ainda não vi comentada com a importância que merece, a não ser num artigo da Variety: ao mudar a data de entrega das indicações para dia 3 de janeiro a Academia encurtou em cruciais 10 dias o tempo de reflexão e, em tese, de acesso aos filmes concorrentes.

Bato nessa tecla porque ela explica muito sobre a personalidade e a natureza das premiações. Os Oscars são escolhidos por pessoas que fazem cinema e, em sua maioria, não tem tempo, paciência ou inclinação para  ver todos os filmes qualificados. Os Globos são escolhidos por pessoas que, por oficio, precisam ver a maioria dos filmes exibidos ao longo do ano e que, portanto, estão qualificados.

Ao roubar 10 preciosos dias do tempo que os acadêmicos teriam para , em tese, ver os filmes do ano, deu ainda maior importância para a pré-seleção que os Globos já terão feito e anunciado dia 13 de dezembro.

Na verdade, o único impacto importante da antecipação foi sobre os estrategistas, que agora tem que correr com a bola durante novembro e dezembro, sem parar, pulando por cima de festas e férias.

E – outra coisa que lamento muito – essa pressa toda pode tornar a competição especialmente injusta para filmes menores, independentes, sem condições de fazer barulho.

Vamos ver o que acontece…


À deriva no mar sem fim da alma: The Master, obra prima
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Ana Maria Bahiana

 

Numa cena essencial de The Master, o novo filme de Paul Thomas Anderson, Freddie Quell (Joaquin Phoenix) pergunta a Lancaster Todd (Philip Seymor Hoffman): “Quem é você?” Lancaster, que já havia afirmado ser, enganosamente, o “comandante” do barco onde os dois se encontram, responde: “Sou muitas coisas. Um escritor, um doutor, um físico nuclear e um filósofo. Mas acima de tudo um homem.Um homem como você.” Mais adiante na mesma cena, Lancaster pergunta a  Freddie, a respeito de uma garrafinha que ele carrega consigo: “O que você põe aí dentro?” E ele responde: “Segredos.”

É possível dizer que tudo o que se passa com esses dois personagens, orbitando um em torno do outro ao longo dos 137 minutos desta obra prima, está contido nesta troca.

Lancaster, o “mestre” do título (a palavra, na língua inglesa, significa tanto professor quanto senhor, dono), é um fanfarrão, megalomaníaco, carismático, falastrão, absolutamente seguro de si e das estranhas conclusões que tira do nada, como um passe de mágica, a respeito do sentido da vida e da natureza do espírito humano.  Mais da metade das definições que oferece a Freddie são mentiras, mas isso não importa para a natureza da troca que se estabelece naquele momento, e cujas inspirações e expirações, contrações e expansões são o tecido vivo da narrativa.

O ex-marinheiro Freddie, que Lancaster prontamente define como “meu protegido, minha cobaia”, é um ser partido em mil pedaços, reduzido a explosões de raiva incontida, choro profuso e inconsciência alcoólica, incapaz de determinar o que faz no mundo, à deriva entre o oceano que abre o filme e a areia da praia que o encerra. Os “segredos” que traz na garrafinha não são apenas os misteriosos elementos da fórmula que ele mesmo prepara, o elixir que usa para calar seus monstros, e que pode incluir terebentina, querosene e os produtos químicos usados  para revelar filme fotográfico.

A força de Lancaster é uma fachada que esconde fraturas tão ou mais profundas que as de Freddie. O caos de Freddie tem, em seu núcleo, um grão de uma força resoluta, um impulso para a sobrevivência que, numa outra cena magistral, o impulsiona, numa moto (roubada) em disparada rumo ao horizonte, flecha certa em busca de seu destino, contra todas as probabilidades.

 

Desta dança delicada e imprevisível entre o forte o fraco, o mestre e o discípulo, o senhor e o escravo, o caos e a ordem, a verdade e a mentira, a lucidez e a inconsciência, se faz a história de The Master. Não é o exposé da Cientologia que muitos esperavam, embora PTA tenha clara e assumidamente se inspirado nos primeiros anos da vida pública de L. Ron Hubbard, o controvertido escritor de ficção científica que fundou a seita. Como fez anteriormente com Sangue Negro –- que era um riff em cima da vida de Edward Laurence Doheny, barão do petróleo e um dos patriarcas do sul da California – PTA , em The Master, usa Lancaster e sua “escola filosófica”, The Cause, como uma base metafórica para explorar um outro elemento e um outro período da experiência norte americana.

Se em Sangue Negro Daniel Plainview/Edward Doheny/Daniel Day Lewis nos levava numa jornada pela ganância, a sede de conquista, a embriaguez do capitalismo em estado puro ocupando uma nova fronteira geográfica, o oeste, em The Master Lancaster Todd/L. Ron Hubbard/Philip Seymour Hoffman nos conduz pelo pós guerra da abundância, da paranóia, da vertigem da novidade de um mundo reconfigurado e repleto de novas ideias.

O mestre Lancaster prega o otimismo militante dos Estados Unidos dos anos 1950, a possibilidade de saber tudo, controlar tudo, remover traumas, dores, inseguranças, vergonhas, pelo simples ato de querer, pelo triunfo de uma vontade absoluta, dominando o “animalismo” de nossas pequenas vidas tortas. Lancaster está – como um de seus filhos aponta para Freddie— “inventando à medida que prossegue”, mas esta é, possivelmente, o que toda a nação está fazendo, na mesma época. No início de suas  “práticas terapêuticas”, Lancaster pede a Freddie que “recorde”. Confrontado com o poço de trevas na alma de sua “cobaia”, povoada apenas por ódio, sexo e álcool, ele muda seu comando de “lembrar” para “imaginar”. No bravo mundo novo do pós-guerra, tudo pode ser refeito pelo passe de mágica da imaginação.

Mas The Master não é a história de Lancaster, mas de Freddie, torto, ferido, quase mudo, que, como o Plainview de Sangue Negro, cortou todos os laços com o mundo dos seres humanos além do mais básico – bebida, dinheiro, sexo. Ele é o id para o superego delirante de Lancaster, a massa bruta, o impulso primal que ao mesmo tempo anseia por e rejeita a ordem, o carinho, o conforto. Lancaster acredita estar salvando Freddie mas, aos poucos, é Freddie quem insinua sua escuridão pelas frestas da fachada do Mestre, quem o ensina a rir, a beber o líquido repleto de segredos, a desejar o que não tem nome, a imaginar.

 

Numa das muitas cenas maravilhosamente compostas por PTA, Lancaster e Freddie estão lado a lado numa cadeia – o primeiro por fraude e apropriação indébita, o segundo por encher de porrada os policiais que vão prender seu Mestre. Como cada um reage ao aprisionamento nos mostra claramente a dinâmica entre eles, entre – outra frase de Lancaster – o “dragão pingando sangue dos dentes” e o “homem consciente” que o “coloca numa coleira”.

A jornada de um protagonista atormentado e fragmentado em busca de algo que possa ser seu porto seguro, sua família, é constante e essencial na obra de Paul Thomas Anderson. Cercado de acólitos e filhos de vários casamentos, Lancaster se fixa de algum modo em Freddie, que não consegue se ancorar em ninguém mas anseia pelo conforto da alma. No final, tudo se resolverá  (ou não) com uma canção e a memória de uma praia onde, quem sabe, Freddie encontrou ou imaginou encontrar algo que ele também não sabe enunciar.

O elenco de The Master é de absoluta primeira ordem. Joaquin Phoenix, fisicamente transformado numa espécie de Marlon Bradon torturado, estabelece um nível de interpretação que há muito tempo não se vê – é uma alegria te-lo de volta, exercendo tão magnificamente seu talento. Philip Seymour Hoffman é uma aula de desempenho, tão perfeitamente modulado entre a arrogância e a carência de seu Lancaster. Num papel menor mas essencial, Amy Adams está exata como Peggy, esposa de Lancaster, uma mistura de stepford wife e Lady Macbeth.

Com o apoio magistral da música de Jonny Greenwood e do diretor de fotografia Mihai Malaimare Jr (Tetro, Youth Without Youth), filmando em película 65 mm com toda a luxuosa cor Kodachrome dos 50, PTA não dirige seu filme- rege uma orquestra de imagens, absolutamente em controle de seus adágios, staccatos, crescendos, longos planos sequencia perfeitamente compostos, um olhar destacado olhando um navio iluminado, quase um bolo, um artificio, deslizando na noite de San Francisco debaixo da Golden Gate, e, subitamente, uma câmera ansiosa correndo por um campo de repolhos ou ao encontro do horizonte infinito do deserto.

Aviso- não é um filme fácil, que se abre imediatamente para a plateia ou rapidamente oferece catarse e solução. Quem gosta de muita história com certeza vai se se sentir perdido – não é o que acontece, mas com quem e como acontece, que impulsiona a narrativa.

É, antes, uma experiência hipnótica e envolvente, quem sabe um “processo terapêutico” criando em nós novas memórias inventadas, impressas em nossas retinas pela pura força de um verdadeiro gênio cinematográfico.

The Master estreia hoje (dia 14 de setembro) nos EUA e dia 25 de janeiro no Brasil.


A batalha pelas estatuetas de metal, parte 3: o zum-zum dos festivais e as promessas da animação
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Ana Maria Bahiana

Enquanto vocês curtiam o feriadão, algumas coisas interessantes aconteceram por aqui,  cada uma delas acrescentando mais um pouco de foco e detalhe ao panorama do fim de ano – que, por sua vez, é quando se estabelece o tema e o tom deste momento na indústria cinematográfica.

Na Academia – que tem presidente, diretor executivo e chefe de marketing novos este ano – os planos para o Oscar 2013 começam a tomar forma. Os premiados com Oscars honorários, este ano – aqueles que foram tirados da cerimônia principal e colocados num evento fechado, em novembro – não incluem nem atores, nem atrizes, nem diretores de ficção. Jeffrey Katzenberg, mega-executivo e presidente da DreamWorks Animation (e um dos responsáveis pelo renascimento da Disney nos anos 1980 e 90) ficou com o troféu Jean Hersholt, por atividades filantrópicas, e George Stevens Jr., um dos fundadores do American Film Institute, ganhou um Oscar honorário.

Para mim, os mais interessantes são os outros dois Oscars honorários: D.A. Pennebraker, mestre documentarista e responsável por alguns dos filmes formativos da minha vida – Monterey Pop, Don’t Look Back, Ziggy Stardust and the Spiders From Mars (cujo poster está aqui atrás de mim enquanto escrevo) – e Hal Needham, um dos pioneiros do árduo ofício de dublê profissional (Star Trek e Missão Impossível na tv, e dezenas de títulos no cinema, inclusive Operação França, Rio Lobo, Chinatown e Nasce uma Estrela) e inventor do atual modelo de camera car, que permite tomadas em movimento realistas e de baixo risco.

Os Globos de Ouro continuam no mesmo formato de sempre  (mas ainda não se sabe quem será o host…), e dia 1 de novembro conheceremos o recipiente do troféu Cecil B. de Mille, por conjunto de obra. E, como este ano é o 70 ° aniversário do premio ( e da Associação dos Correspondentes Estrangeiros que o outorga) teremos um troféu especial, a mais, que só será entregue desta vez… conto mais assim que souber…

Na bilheteria, a crise criativa se tornou espetacularmente aparente: este fim de semana foi a pior arrecadação desde o ataque às Torres Gemeas, quando um trauma real paralisou produção e consumo de entretenimento. As coisas estavam tão ruins – 37% a menos que a pior bilheteria deste ano — que o filme com maior venda de ingressos por sala foi…. Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida, relançado em Imax. Ou seja – reciclagem por reciclagem , melhor rever o original.

E os primeiros ecos dos festivais de outono, Veneza e Toronto, apontam The Master, de Paul Thomas Anderson, e Argo, de Ben Affleck, como os pesos-pesados confirmados do final de ano. Não fosse um item do seu regulamento, The Master teria levado o Lido inteiro. Como não levou, abriu-se um foco de luz sobre o coreano Pieta, de Ki-duk Kim, na disputa de filme estrangeiro (onde, cada vez mais, reina Amour, de Michael Haneke).

 Cloud Atlas ganhou uma excelente matéria da New Yorker (que, entre outras coisas, documenta com precisão o que é levantar a arquitetura de financiamento de um projeto original, hoje…) e foi ovacionado em sua primeira sessão em Toronto, mas eu não percebo a unanimidade que cerca Master e Argo. E não é apenas porque as resenhas foram meio a meio – é porque há mais entusiasmo pelas tranças pink de Lana Wachowski (ex-Larry) do que pelo filme como um todo.

Vou conferir todos eles em breve, e continuo monitorando as reações dos formadores de opinião – estou bastante curiosa para saber o que, num ano de eleição, crise econômica e colapso de bilheteria, o cinema poderá expressar, coletivamente.

O que nos leva aos longas de animação. Quando a categoria foi criada nos Oscars, 10 anos atrás – e , cinco anos depois, nos Globos de Ouro, como resultado de uma campanha da qual tenho orgulho de dizer que participei – haviam basicamente três contendores: Disney, Pixar e DreamWorks (a última ganhou o primeiro Oscar com Shrek, a Pixar ficou com o primeiro Globo por Carros).

As coisas mudaram muitíssimo nos últimos anos – um olhar sobre os indicados das premiações deste ano revelam um panorama muito mais amplo, pontuado por estreantes (como a Paramount com Rango e a Fox  com O Fantástico Senhor Raposo) e independentes de paises fora dos EUA (O Segredo de Kells– que foi feito em grande parte no Brasil—  O Ilusionista, Um Gato em Paris, Persepolis, Chico e Rita).

Acho que a disputa deste ano será particularmente saborosa. A Pixar vem com Valente, que literalmente estabeleceu um novo padrão de qualidade na animação digital,  a Disney tem Frankenweenie, de Tim Burton, a DreamWorks vem com A Origem dos Guardiões e Madagascar 3 (um dos maiores sucessos de bilheteria de um ano de vacas anoréxicas).

Mas é sobretudo no território além dos pesos- pesados que vejo grandes possibilidades: Piratas Pirados!, da Sony/Aardman; Paranorman, da Focus;/Laika (os mesmos de Coraline) ; Hotel Transilvania, da Columbia, e O Lorax- Em Busca da Trúfula Perdida, da Universal.

From Up Poppy Hill, do Studio Ghibli

E atenção especial a uma pequena companhia que, título por título, pode ser a mais poderosa distribuidora no mercado norte-americanio: a Gkids, especializada em animação independente de qualidade e produtora do Festival Internacional do Cinema Infantil de Nova York – que qualifica para os Oscars…

Em 2011, a GKIds emplacou Chico & Rita e Um Gato em Paris. Para este ano a Gkids vai lançar cinco títulos dentro dos prazos qualificadores: From Up Poppy Hill, do Studio Ghibli do Japão, A Letter do Momo, também do Japão, e os franceses Zarafa, Le Tableau e o meu favorito, The Rabbi’s Cat (sobre um gato que engole um papagaio e se torna subitamente douto em doutrina judaica). É uma imensa lufada de ar fresco e novas ideias vindas de outros quadrantes, que o departamento de animação da Academia tem recebido de braços e olhos bem abertos.


A batalha pelas estatuetas de metal, parte 3: uma boa maré para os estrangeiros
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Ana Maria Bahiana

 

O Festival de Cinema de Telluride, que começa hoje na deliciosa cidadezinha das Montanhas Rochosas, no estado do Colorado, é um ótimo gancho para pendurar a terceira parte de nossa elucubração sobre o panorama geral do segundo semestre — que é focado, em sua parte mais importante, na batalha por indicações e, se tudo der certo, estatuetas de metal.

Uma pausa para explicar porque tanta gente graúda gasta tanto tempo e dinheiro para ser indicado ou receber uma láurea que, em si mesma, não traz nenhuma recompensa financeira:

  1. Prestígio. Ser indicado ou ganhador de um prêmio de primeira linha imediatamente atira uma carreira numa dimensão muito mais elevada de poder e cachê dentro da indústria. O que cada um faz com esse prestígio cabe à sabedoria (ou falta dela) individual.
  2. Acesso. Para um grande segmento de criadores e trabalhadores da indústria – documentaristas, realizadores  estreantes, independentes ou de países estrangeiros, atores, técnicos , roteiristas – uma indicação é a diferença entre ser um joão-ninguém hoje e alguém conhecido amanhã. Esta é uma indústria que só dá acesso a quem tem algum tipo de endosso e recomendação. Uma indicação é o endosso mais elevado possível.
  3. Munição de marketing. Num mercado dividido pelo consumo individual (TV, internet, tablets) de entretenimento e afogado em arrasa-quarteirões, uma indicação é o trunfo mais precioso do mundo para um filme desprovido do grande  suporte  de um estúdio. Dentro dos grandes estúdios, projetos que não tem perfil-pipoca são imediatamente analisados pelo seu potencial de emplacar na temporada-ouro – porque esse é seu principal trunfo para atrair público. Fora dos estúdios, essa munição é quase o santo Graal.

Tendo dito isso… Telluride é um pequeno festival – apenas três dias, rigoroso processo de admissão,  acesso restrito, curadoria cuidadosíssima – que, na verdade, é uma das melhores peneiras para determinar quem tem chance de passar para a segunda etapa da briga pelas indicações.

Matthias Schoenaerts e Marion Cotillard em Rust and Bone

 

A lista de filmes escalados para este ano revela alguns já mencionados aqui, como Hyde Park on the Hudson. Mais importante, contudo, são dois outros elementos: as exibições –supresa, que em geral emplacam firme nos prêmios (ano passado foi Os Descendentes), este ano foi Argo, de Ben Affleck, superbem recebido.; e a predominância dos filmes não-americanos na seleção.

Tenho dito e vou repetir – desde a floração dos anos 1970 nunca houve um momento melhor para cinematografias e realizadores fora dos Estados Unidos. Não digo apenas do ponto de vista de bilheteria – o icônico O Artista é uma exceção, mas também uma demonstração importante de que, as vezes, o improvável é possível – mas do ponto de vista de exposição, reconhecimento.

Dentro da lista de Telluride (eu, se fosse de alguma entidade selecionadora para os Oscars, imediatamente escolheria estes filmes para representar seus países para “melhor filme estrangeiro”), os destaques são Amour, de Michael Haneke, que já vem premiado de Cannes; Rust and Bone, de Jacques Un Prophete Audiard (que ainda por cima tem Marion Cotillard e Matthias Schoenaerts , de Bullhead); o australiano The Sapphires, que fez sucesso em Cannes; e o britânico Ginger and Rosa, de Sally Potter.

Não há Brasil em Telluride – mas há o chileno No, de Pablo Larraín – e ignoro o que pode estar se passando pelos bastidores das escolhas oficiais. Aqui, depois de um bom tempo sem grandes repercussões para filmes do Brasil (que, eu sei, estão fazendo grande sucesso no país, o que é ótimo. Mas atravessar fronteiras é um desafio diferente…), O Som ao Redor, do pernambucano Kleber Mendonça Filho, vem provocando muito zum-zum desde sua exibição no festival de Rotterdam, e ótimas críticas em sua estreia aqui em circuito limitado. Vamos ver…

No episódio final da saga, a questão da animação e porque a microscópica Gkids pode ser a mais poderosa pequena distribuidora da indústria.


A batalha pelas estatuetas de metal, parte II: fantasia, cantoria e Tarantino
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Ana Maria Bahiana

E saga da Batalha pelas  Estatuetas continua…. Este ano os votantes vão se ver diante de muitos elementos fantásticos: além de O Cavaleiro das Trevas Ressurge – que, me contaram, vai mesmo fazer uma investida firme “para sua consideração” na temporada de prêmios – teremos O Hobbit-Uma Jornada Inesperada, de Peter Jackson, e As Aventuras de Pi, de Ang Lee.

São, obviamente, criaturas completamente diferentes. Com toda seriedade que Nolan imprimiu à sua trilogia, Cavaleiro das Trevas Ressurge ainda é um filme de super herói, para o qual muita gente entre os votantes torce o nariz. Neste momento, ainda vejo Ressurge como um fortíssimo candidato em todas as categorias técnicas. O que vai acontecer além disso vai depender muito da estratégia e perseverança da Warner.

A primeira exibição de cenas de O Hobbit, na CinemaExpo de Las Vegas, quatro meses atrás, não foi exatamente bem recebida. Uma das descrições menos agressivas que ouvi dizia que as imagens em ultra-alta-resolução pareciam “de cenas de uma novela muito ordinária” e que “tiravam o aura de mistério do cinema”. Pode-se argumentar que a plateia da CinemaExpo é predominantemente de proprietários de cinemas e executivos de distribuição. Mas também pode-se contra-argumentar que havia muita gente de outras áreas em Las Vegas, e que um bocado dessa plateia vota para algum prêmio importante – inclusive os Oscars. O enigma aqui é: poderão os votantes vencer a dupla antipatia por cinema de fantasia e visual em altíssima resolução?

As Aventuras de Pi tem elementos que com certeza remetem ao cinema de fantasia—é essencial para a história do náufrago que se vê no meio do oceano na companhia de um tigre e outros animais selvagens, e que conta sua história de vários modos diferentes, um deles claramente extraordinário. Trata-se de algo que votantes aceitam com maior facilidade, como aceitaram (com toda razão) O Tigre e o Dragão, mais de uma década atrás.

 

A estética de Quentin Tarantino é um grande ponto de interrogação em termos de prêmios. Pulp Fiction e Bastardos Inglórios emplacaram, todos os outros, não. Django Livre está na linha da reinvenção de gênero destes dois, e tem um elenco de peso – Jamie Foxx, Leonardo di Caprio, Samuel L. Jackson,  Christoph Waltz. Olho nele, pode ser a grande corrida por fora desta temporada.

 Les Miserables é outro com um pedigree que torna sua presença entre os indicados quase inevitável. O diretor de O Discurso do Rei dirigindo a adaptação de um mega-sucesso teatral que ainda por cima é de época e tem Anne Hathaway, Russell Crowe, Hugh Jackman, Helena Bonham Carter e Amanda Seyfried no elenco. Na eterna discussão “ o que aconteceu aos musicais?” há sempre uma vaga para um – e apenas um—representante do gênero entre os escolhidos do final de ano. E em 2012 não tenho a menor dúvida que será Les Miserables.

Restam, além dos meus muito queridos independentes Beasts of the Southern Wild e Moonrise Kingdom – e espero e torço para não serem esquecidos—filmes menores que podem render muita coisa especialmente para seus atores: Anna Karenina (Keira Knightley), The Sessions (John Hawkes, Helen Hunt), Silver Linings Playbook (Jennifer Lawrence, que já está fazendo campanha para isso em todo evento que comparece).

E, finalmente, The Master, de Paul Thomas Anderson. Mas desse só falo depois de ver, segunda feira agora. Se me deixarem…


A batalha pelas estatuetas de metal, parte I: presidentes, ayatolás e terroristas
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Ana Maria Bahiana

 

Vocês estão ouvindo esse silêncio? É o mes de agosto. Férias aí, férias aqui. Os estúdios descarregam seus abacaxis, e até os independentes dão um tempo. A Paramount está num descanso tão grande que deu férias coletivas a vários departamentos e há três meses não lança um filme.

De certa forma é a calmaria antes da tempestade. Assim que as temperaturas baixarem (o que aqui na California demora um pouco) e as crianças voltarem às aulas vai começar uma batalha pior que a disputa pelo Trono de Ferro _ a briga pelas Estatuetas de Metal.

Até agora o ano nos deu três filmes com grande potencial para chegarem até a batalha final: os independentes Moonrise Kingdom e Beasts of the Southern Wild e, é claro, O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Falo deles num próximo post. Vamos dar uma olhada primeiro no que nos aguarda nos próximos meses.

Posso falar primeiro do que NÃO nos aguarda? A Warner decidiu relocar O Grande Gatsby para meados do ano que vem. Há quem diga que isto faz parte de uma estratégia maior para não dividir as atenções e recursos do estúdio em sua quixotesca missão de emplacar O Cavaleiro das Trevas ressurge pelo menos entre os indicados – e além das categorias técnicas, onde o filme de Christopher Nolan já é o favorito. Mas também pode ser porque Baz Luhrmann é famoso por se atrasar em pós-produção… A Fox até agora não esqueceu dos custos e demoras de Australia, que estourou todos os prazos e obrigou o estúdio a contratar um pequeno exército de montadores para que o filme conseguisse chegar às telas.

Descontado Gatsby—que tem pelo menos pedigree para entrar nas listas de candidatos a candidatos de 2013—o que temos?

Para começar, dois presidentes norte-americanos: o Lincoln de Steven Spielberg e o Roosevelt de Hyde Park on Hudson, de Roger Michell. Ambos  tem todo o pedigree de “isca de prêmio”. Daniel Day Lewis em mais uma transmutação paranormal para encarnar um dos presidentes mais adorados e carismáticos dos Estados Unidos, com Spielberg na direção. (Eco do passado: Amistad.) Bill Murray arriscando-se em mais uma nova direção, interpretando  Franklin Roosevelt, outro presidente querido, carismático e – votantes adoram isso!—deficiente físico, dirigido por Roger “Um Lugar Chamado Notting Hill” Michell. (Eco do passado: O Discurso do Rei.) O que esperar: indicações a melhor ator para os dois, no mínimo.

Continuando no tema azul-vermelho-e-branco, temos duas incursões pelas intervenções no Oriente Médio, ambas baseadas em casos reais: Argo, de Ben Affleck e Zero Dark Thirty, de Kathryn Bigelow.

Argo, de Ben Affleck

Affleck, vocês se lembram, teve aquela estreia bombástica com Gênio Indomável em 1997, emplacando supreendentes prêmios pelo roteiro. Ele vem se revelando um diretor seguro, que compreende o trabalho dos atores e tem uma visão propria. Argo tem produção de outro que votantes de prêmios amam, George Clooney, e se baseia numa dessas histórias tão incriveis que só podem ser verdadeiras – o plano mirabolante inventado por um agente da CIA (o próprio Affleck) para resgatar seis americanos refugiados na residencia do embaixador canadense, em plena revolução islâmica no Irã, em 1979. Bryan Cranston também está no elenco. Repetição do melhor coadjuvante Jeremy Renner de Atração Perigosa?

Zero Dark Thirty, de Kathryn Bigelow

Atravessando território muito parecido Bigelow tirou os Oscars de debaixo do nariz de James Cameron, três anos atrás. Zero Dark Thirty é, de muitos modos, Guerra ao Terror 2.0: a narrativa de como a tropa de elite Navy Seal Team 6 localizou e assassinou Osama Bin Laden em maio de 2011. É o tipo de filme arrancado das manchetes de jornais que se encontra mais facilmente nas TVs do que nos cinemas, e isso pode funcionar contra e a favor de Zero Dark Thirty, que por enquanto ninguém viu mas que já está criando zum zum.

Existe uma outra questão, também: filmes com essa temática não vão muito adiante no interesse das plateias – nem mesmo o ótimo Zona Verde, nem mesmo o premiado Guerra ao Terror quebraram essa barreira. Estou muito curiosa para saber o que vai acontecer com esses dois, tanto entre as elites que premiam quanto entre as massas que compram ingresso.

E isto é apenas o começo. Na segunda parte de nossa trilogia (é a moda, não é?), cantorias, fantasia e um mestre. Fiquem ligadas e ligados.

 


A esperança brota, eterna, no novo filme de Meryl Streep
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Ana Maria Bahiana

Numa temporada em que tudo tem uma dimensão gigantesca, e cada lançamento parece querer derrubar o outro numa espécie de olimpíada do ruído, movimento, número de personagens, tiros e explosões, é um prazer estranho e delicioso ver um filme pequeno em todos os sentidos. Deliberadamente pequeno, como um concerto de música de câmara diante de uma sinfonia para coral e orquestra, um solo de violão versus um duelo de guitarras heavy metal.

Foi assim que me senti quando acabei de ver Um Divã Para Dois (Hope Springs, estreando hoje nos EUA e dia 17 no Brasil), uma iluminura de filme em tom menor, um concerto a oito mãos para três atores excelentes – Mery Streep, Tommy Lee Jones, Steve Carell- e o diretor David Frankel, trabalhando com uma partitura simples e perfeita de Vanessa Taylor, estreando no cinema depois de uma bela carreira na TV (Game of Thrones, Alias).

Fellini, Coppola e Chris Nolan sempre disseram que metade  -ou mais que isso- do trabalho de criação de um filme está na escolha do elenco. Este filme é uma prova eloquente disso : uma derrapagem na escolha desse trio e talvez o delicado roteiro de Taylor se transformaria em algo possivelmente sem graça. Porque toda a ação desse Divã se resume basicamente a quatro locações: a casa do casal Kay e Arnold (Streep e Jones), equipada com todos os confortos modernos mas vazia de filhos e emoções mais fortes que uma partida de golfe na TV gigantesca; o consultório do terapeuta Dr. Feld (Carell), ensolarado e, significativamente, caseiro; a boutique “para senhoras” onde Kay trabalha como vendedora; e o quarto de hotel, asséptico e indiferente, onde o casal se hospeda enquanto tenta, com a ajuda do psicólogo, reacender a chama do seu casamento de mais de três décadas.

E a história também se resume ao que se passa nesses poucos ambientes: um casal assentado confortavelmente em sua rotina de cuidadosa indiferença é acordado por uma incontrolável onda de desejo da mulher, Kay. Porque quem vive Kay é Meryl Streep, aprendemos logo , sem que ela diga coisa alguma, que esse mar de paixão não é um fenômeno recente mas vem, subterrâneo, há meses, anos, batendo contra os rochedos de um marido que fez da rotina sua defesa e seu castelo. Dois minutos de Meryl/Kay diante do espelho, logo na abertura no filme, nos contam mais sobre o mundo interior da personagem e as batalhas emocionais que teve que enfrentar, perder e negociar do que muitas linhas de diálogo interpretadas por atrizes de outro escalão. Essa onda do desejo e da esperança sacode a relação até as fundações _  cabe ao paciente e legitimamente interessado Dr. Feld propor  as saídas para o impasse – que, assustadoramente, incluem derrubar as estudadas defesas de Arnold.

Frankel é um diretor de rara sensibilidade, que fez de O Diabo Veste Prada um filme muito mais inteligente do que era preciso. Com este material mais sutil ele mostra o quanto compreende o ritmo da dramaturgia cinematográfica, o vai e vem das interações entre os atores, as pausas e os momentos mudos mas intensos de que grandes intérpretes são capazes. E, devo acrescentar, Jones e Carell estão absolutamente perfeitos em seus papéis, Jones olhando o mundo pelo visor estreito da armadura que construiu com tanto cuidado, Carell com uma mistura bem equilibrada de compaixão, rigor e entusiasmo. Há coisas hilariantes, há coisas comoventes, mas sobretudo há uma humanidade triunfante e sincera neste pequeno, delicioso filme.

E embora eu compreenda a necessidade da tradução brasileira, eu queria compartilhar com vocês o poema de Alexander Pope que inspirou o nome da cidadezinha fictícia – Hope Springs- que dá o título original do filme: “A esperança brota, eterna, no animal humano/ o homem nunca é mas sempre será abençoado/a alma, inquieta e confinada em sua casa/ repousa e se expatria numa vida que ainda virá.”

E este, amigas e amigos, é o tema desta obra-contraponto ao ruído dos acordes finais da temporada-pipoca.