Blog da Ana Maria Bahiana

Categoria : Estreias

Jogos Vorazes na tela: bem-vindos a Panem
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Ana Maria Bahiana

Gosto muito da trilogia Jogos Vorazes. Por um milhão de motivos que não cabem aqui tenho especial interesse no que se produz para o público adolescente, em livro, cinema ou TV. Chama a minha atenção, imediatamente, quando um título trata o adolescente como o adulto que ele já é, sem insultar sua inteligência ou menosprezar sua capacidade de compreender as complicações do mundo à sua volta. E é exatamente por isso que tenho especial predileção e carinho pela obra de Suzanne Collins.

Collins garante que a inspiração para sua obra veio de uma noite em que ela viu na TV, em rápida sucessão, jovens competindo num reality show e jovens lutando no Oriente Médio. Mas vejo raízes ou pelo menos paralelos claros entre Jogos Vorazes e outras obras literárias e cinematográficas: o mundo totalitário do livro 1984, de George Orwell; o reality show onde os participantes tem que matar-se mutuamente do filme indie Series 7:The Contenders, de 2001; e principalmente o japonês Battle Royale, de Kinji Fukasaku onde, num Japão dilacerado do futuro, adolescentes são anualmente encerrados numa ilha e obrigados a combater até a morte. Lançado em 2000, Battle Royale provocou tamanha controvérsia no Japão e em vários outros países que sua exibição foi suspensa ou mesmo vetada (para felicidade dos cinéfilos, Battle Royale acaba de ser lançado em DVD/Blu-ray. Vale conferir.)

Quem, como eu, gosta dos livros, não vai se decepcionar com o filme de Gary Ross, que estreia no EUA, no Brasil e no mundo nesta sexta feira, dia 23. Com todas as dificuldades que fazem parte do processo de adaptar uma obra literária para a tela, Jogos Vorazes é um dos filmes mais fiéis ao texto original desde, pelo menos, Onde os Fracos Não tem Vez, dos irmãos Coen, em 2007.

O que, em si só, não é pouca coisa. Para quem passou os últimos dois anos em Marte: Jogos Vorazes (e seus dois livros seguintes), passa-se num futuro não muito distante, em Panem, o país totalitário que restou da América do Norte depois de uma série de desastes ecológicos e guerras civis. O governo, ditatorial e riquíssimo, controla uma população mantida em estado perpétuo de carência e fome. E, todos os anos os “tributos”, dois jovens de cada um dos 12 distritos de Panem, são escolhidos por sorteio para lutarem entre si até a morte, diante das câmeras de um reality show assistido em todo o país _ os Jogos Vorazes do título.

Um dos principais desafios do livro de Suzanne Collins é sua narrativa na primeira pessoa. O leitor só sabe o que a heroína Katniss Everdeen – um dos “tributos”  do paupérrimo Distrito 12 – sabe, só vê o que ela vê, só sente e percebe as emoções dos outros à sua volta pelo prisma de seus sentimentos e emoções. Num filme  que, além de outras coisas, espera atrair para o cinema pessoas que não leram e não conhecem o livro, isso é um problemão _ é preciso achar um modo de explicar e contextualizar um monte de coisas que impulsionam e justificam a ação.

O roteiro – da própria Suzanne Collins com Ross e  Billy Ray (A Guerra de Hart, Intrigas de Estado) – resolve perfeitamente a questão, tomando pequenas mas eficientes liberdades. Não estamos mais, como no livro, dentro da cabeça de Katniss, mas o seu ponto de vista é o que impera. E Jennifer Lawrence, que praticamente fez uma prévia do papel em outra sobrevivente indômita, a Ree de Inverno da Alma, é mesmo a escolha perfeita para viver Katniss.

Ross (Seabiscuit, Pleasantville)  imprime ao roteiro um ritmo perfeito, abrindo espaços para o contexto do medonho mundo de Panem, com pequenos mas importantes detalhes adicionais como (SPOILER !) uma sequência de insurreição filmada, em segunda unidade, por seu amigo Steve Soderbergh. É um modo de  deixar claros, com este e outros detalhes, os elementos que levarão a história mais adiante.

Os 80 milhões de dólares do orçamento parecem muito comparados com filmes independentes, mas na verdade são um custo modesto para uma produção com esta amplitude. E olhos espertos poderão notar que, embora a direção de arte seja impecável, informada tanto pelos Estados Unidos da Grande Depressão dos anos 1930 quanto pela França totalitária e dividida de Luis XVI e Maria Antonieta, os efeitos digitais flertam com o desapontamento. Talvez por isso não fiquem muito tempo na tela _ porque um pouco mais de tempo e eles não segurariam o impacto.

Como no texto de Collins, a violência de Jogos Vorazes nunca é gratuita ou sem consequências. A simples existência da violência na história é um comentário sobre seu uso perverso como instrumento de opressão. Ao sadismo de uma sociedade entusiasmada pelo espetáculo de jovens se matando o filme, como o livro, propõe a dignidade da caçadora Katniss, que sabe o valor da vida porque, diariamente, precisa decidir sobre ela _ matar o animal na floresta ou permitir que sua familia morra de fome?

Ross abrandou a violência em Jogos Vorazes, colocando alguns momentos mais sangrentos fora da câmera e detendo-se o mais breve e delicadamente possível sobre algumas mortes essenciais. Violência não é diversão, seu filme diz. Violência tem um custo e um peso.

Onde tenho mais respeito e admiração pelo trabalho de Ross é por isso, por sua integridade em manter o compromisso do livro com  temas complicados e espinhosos: o poder do indivíduo e da consciência, a violência institucionalizada como método de controle, o interminável sacrifício da juventude no altar do jogo de poder.

São ideias que se encontram também nas obras que citei lá em cima, mas a oportunidade e a precisão com que elas foram expressas por Collins em seus livros explica porque eles se tornaram um sucesso tão imenso _ porque num mundo em que adolescentes são exterminados diariamente em guerras, atentados, tiroteios, na miséria, no abandono, recrutados como bombas humanas, aviões do narcotráfico, vítimas de guerras civis, enfiados em escolas sem professores, familias fraturadas, cidades doentes, a história de Katniss e seus companheiros de mortandade de Jogos Vorazes faz muito sentido, real e imediato.

 


Lobos, anti-heróis e fantasmas ocupam o terreno baldio do começo do ano
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Ana Maria Bahiana

Começo de ano é uma época esquisita por aqui. Os “grandes” filmes foram todos descarregados em dezembro, para consideração dos votantes. Alguns começaram em janeiro uma expansão para mais telas além de Los Angeles e Nova York.  Mas, na maior parte dos casos, janeiro-fevereiro-março são meio os terrenos baldios do calendário de lançamentos, onde são descarregados títulos sem vaga nos outros meses mais concorridos.

A quantidade de ervas daninhas, como vocês podem imaginar, é enorme. Mas de vez em quando há lançamentos dignos de nota. Como estes:

Quase todo início de ano, desde 2009, estréia um mesmo filme com títulos, diretor, locação e elencos diferentes, todos estrelados por Liam Neeson. A história é essencialmente a mesma: ameçado por algo terrível, sozinho contra tudo e contra todos, Neeson abre caminho na porrada para resolver o problema.  A história já se chamou Busca Implacável e Desconhecido (Neeson fez uma pausa em 2010 por conta de Esquadrão Classe A) e, este ano, voltou com uma versão atualizada: A Perseguição (The Grey), dirigida pelo mesmo Joe Carnahan de Classe A.

Na lista dos pontos positivos, A Perseguição começa maravilhosamente, definindo de forma rápida e poderosa o perfil do personagem de Neeson, um atirador de mira perfeita, contratado para proteger uma equipe de trabalhadores numa base de prospecção de petróleo nos cafundós do Alasca. A fotografia de Masanobu Takayanagi (Babel, Warrior) é excelente, contribuindo para estabelecer o clima de isolamento gélido que é essencial para a história.

As coisas ficam bem menos interessantes depois que a trama se muda para uma região ainda mais remota e entram em cena os vilões da história: os lobos. Infelizmente os lobos que o orçamento podia custear se parecem muito com versões menores daqueles de Crepúsculo. Para complicar ainda mais, a história entra no velho esquema um-a-um-o-grupo-é-atacado, com uma adesão tão completa aos clichês que qualquer pessoa que já tenha visto filmes de sobrevivência na natureza selvagem (ai que saudade de O Sobrevivente, de Werner Herzog…) é capaz de antecipar cada passo do malsinado grupo liderado por Neeson.

A Perseguição foi a bilheteria número 1 nos EUA em sua estréia semana passada, e sai no Brasil dia 20 de abril.

Denzel Washington é outro que tem o hábito de fazer o mesmo filme _ só que ele se dá ao luxo de fazê-lo com o mesmo diretor, Tony Scott. “É, eu sei, mas a verdade é que gosto muito de trabalhar com ele, e ele vive me telefonando…”, Denzel me disse. “E eu acabo dizendo sim, automaticamente…”

Ainda bem que, desta vez, quem ligou não foi Tony Scott mas o interessantíssimo diretor sueco-de-origem-chilena Daniel Espinosa. Espinosa dirigiu o maior blockbuster da Suécia, o altamente recomendável Snabba Cash (que, entre outras coisas, lançou internacionalmente a carreira de Joel Kinnaman). E agora, em Protegendo o Inimigo (Safe House) trouxe um novo vigor a este bom roteiro de David Guggenheim sobre um ex-agente da CIA (Denzel Washington) em fuga porque sabe demais.

Washington e Ryan Reynolds (como seu relutante captor) fazem uma boa dupla, polos opostos de cinismo e convicção. E Espinosa mantem o ritmo em pulso perfeito, com algumas sequências de ação dignas dos melhores momentos da trilogia Bourne. Detalhe curioso: no roteiro original a ação se passava em Buenos Aires, mas nossos vizinhos portenhos não foram hospitaleiros o bastante para que valesse a pena transferir a produção para lá. A Cidade do Cabo, na África do Sul, correu para oferecer seus serviços _ e valeu a pena. Entre outras coisas, há uma perseguição no estádio da Copa, com vuvuzelas e tudo, que é sensacional, lembrando a caçada na estação do metrô londrino de Ultimato Bourne.

Protegendo o Inimigo estréia nos EUA dia 10 de fevereiro e no Brasil dia 9 de março.

Depois de tantos e tantos filmes de tortura e sadismo empurrados para dentro da denominação  “terror”, é uma delícia altamente inspiradora ver um clássico do gênero, fiel às suas regras e reverente ao seu mandato fundamental: apertar os botões do nosso inconsciente, possibilitado a terrível, maravilhosa catarse pelo pavor.

A Mulher de Preto (Woman in Black) é exatamente isso. Seu material de base é um livro britânico de 1982- que já  foi adaptado para TV, rádio e teatro – mas sua inspiração vem mais de longe, das histórias de fantasmas da época vitoriana, ao mesmo tempo arrepiantes e líricas.

Trabalhando sob a bandeira da Hammer – sinônimo de terror britânico super-clássico – o diretor James Watkins (Sem Saída/Eden Lake, thriller imperdível de  2008, com Michael Fassbender) manteve-se completamente fiel às regras do gênero, usando a tecnologia de hoje para criar o ambiente ideal da boa obra de terror: o lugar, físico e emocional, onde moram as sombras, as portas fechadas, os segredos, os pântanos. E lembrando sempre o essencial: toda boa história de fantasma é uma história de seres humanos, suas perdas, suas culpas, suas coisas não ditas e não resolvidas.

Quem gosta muito de sangue e tormentos físicos não precisa comprar ingresso. Quem se arrisca a ter muito medo da melhor maneira possível – sob controle, e com toda a repercussão humana desse tipo de história – venha correndo.

Ok, eu podia viver sem a trilha barulhenta – precisamos mesmo sublinhar tanto os momentos-chave? Mas não poderia ficar sem Daniel Radcliffe perfeito  como o jovem viúvo remoído de sombras interiores, que finalmente encontra o espelho de sua alma no isolado lugarejo da costa britânica  .

A Mulher de Preto estréia hoje, dia 3, nos EUA, e em fevereiro ainda sem data no Brasil.

 


Na Academia, a eterna juventude de um filme de 85 anos
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Ana Maria Bahiana

É super interessante que esta temporada de prêmios tenha se tornado, de certa forma, um tributo aos pioneiros do cinema. Seria coincidência o fato de estarmos entrando num ciclo de celebrações centenárias da arte e indústria da imagem em movimento?

O cinema em si já completou mais de um século de vida. Mas os grande estúdios que deram o formato e o impulso global do cinema tem datas de nascimento entre 1912 – a Pathé francesa (que começou em 1896 como empresa ótica), a Paramount e a Universal – e 1933, quando surge o mais jovem dos estúdios, a 20th Century Fox. No meio do caminho há poderosa UFA alemã (1917), a Columbia ( 1920), a Warner Brothers (1923)  e a MGM (1924). Esperem muitas comemorações no futuro imediato _ e, com elas, quem sabe, um desejo de voltar às origens e rever o que, realmente, torna o cinema tão vital, universal e importante.

Esta semana a Academia deu partida no ciclo de celebrações do centenário da Paramount – 100 aninhos no próximo dia 12 de julho – com a exibição de uma cópia restaurada de Asas, o primeiro filme a receber um Oscar.  A sincera empolgação do teatro Samuel Goldwyn lotado deixou bem claro – como O Artista prova –  que o poder de uma narrativa impecável transcende tempo e espaço e não depende nem de som, nem de cor nem de tela gigantesca.

Abrindo os trabalhos, o presidente da Academia, Tom Sherak, apresentou a estatueta que Asas recebeu nos idos de 1928 e lembrou que a própria Academia estava celebrando uma data importante: uma semana atrás em 1927, no dia 11 de janeiro, 36 dos mais poderosos da indústria emergente se reuniam num salão do (extinto) hotel Ambassador, aqui em Los Angeles, e decidiam criar o que viria a ser a Academia.

E  William Wellman Jr,  filho mais velho do diretor William A. Wellman – que mais tarde assinaria Inimigo Público e Nasce uma Estrela, entre muitos outros – deu a dimensão humana desse pioneiro do cinema: ele tinha 29 anos quando dirigiu Asas, e foi escolhido por ser, ele mesmo, veterano da aviação na Primeira Guerra Mundial, fanático por aviões e tão destemido que ganhara o apelido de “Wild Bill”.

"Wild Bill" no set de Asas, 1927

 

Filmado inteiramente em locação nas redondezas de San Antonio, no Texas, Asas custou a fortuna de 2 milhões de dólares em 1927 – o filme mais caro jamais produzido até aquela época, o equivalente a um arrasa quarteirão de 200 milhões de dólares, hoje. Exército e Aeronáutica forneceram soldados, armamentos e aviões e Wellman, fazendo algo absolutamente inédito no cinema, até então, tinha a liberdade dos estreantes. As pesadas câmeras da época eram colocadas nos frágeis monomotores, de frente para os atores. Os aviões decolavam, as câmeras rodavam. Sem dublês, sem digital, sem ensaio.

 

Foi um sucesso extraordinário, “o Star Wars de sua época”, disse Brad Grey, presidente da Paramount: dois anos em cartaz, continuamente.

85 anos depois, Asas continua ousado. O melodrama que enquadra a trama principal – a história da rivalidade e amizade entre dois pilotos da Primeira Guerra vindos da mesma cidadezinha do interior – é típico da época.  Mas o vigor das sequencias de ação,  a modernidade dos enquadramentos, a pura audácia das batalhas aéreas empolga hoje como deve ter empolgado as primeiras platéias. E ainda há Gary Cooper numa ponta, dominando cada um dos cinco minutos em que está na tela…

Lição aprendida: bom cinema é bom cinema, sem idade, sem limites.

 

 

Todas as fotos deste post pertencem aos arquivos da Biblioteca Margaret Herrick, da Academia.

O mundo dos animais: Steven Spielberg e Cameron Crowe em busca do coração selvagem
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Ana Maria Bahiana

Se era preciso mais prova de que a safra 2011 do cinema tem saudade de sua infância e adolescência, Cavalo de Guerra, de Steven Spielberg (dia 25 de dezembro nos EUA, 6 de janeiro no Brasil) e Compramos um zoológico, de Cameron Crowe (23 de dezembro nos EUA e Brasil) seriam a prova final. Em ambos, seus realizadores buscam um estado de pureza, uma inocência desprovida do cinismo e amargura dos nossos tempos, apostam no potencial para nobreza e  coragem da natureza humana e usam animais como metáforas daquilo que ainda é possível salvar na humanidade.

Cameron Crowe é um diretor/roteirista com tanta fé no ser humano que seus filmes muitas vezes são tidos como “ingênuos”. É um risco que ele prefere correr para se manter fiel  a si mesmo e a uma linhagem de outros otimistas que o influenciaram e que ele admira : Frank Capra, Billy Wilder, François Truffaut. Seres humanos fazem muita besteira, os filmes de Crowe dizem (ecoando o espírito de seus ídolos) mas tem em si mesmos a capacidade de fazer por merecer sua redenção.

Em Compramos um zoológico – paráfrase de uma história verdadeira acontecida na Grã Bretanha – o herói improvável é o jovem viúvo Benjamin (Matt Damon), e o risco que ele decide correr é, como o título diz, comprar um parque zoológico decadente e ameaçado de fechar.

Benjamin e seus filhos (Colin Ford e Maggie Elizabeth Jones) ainda não se recuperaram inteiramente da morte da esposa e mãe, com a vida diária atropelando, em sua implacável rotina, os sentimentos profundíssimos de dor e perda irreparável de toda a familia. Lançar-se de corpo inteiro num projeto que parece completamente absurdo parece, num primeiro momento, uma dose gigante de anestésico. Mas o ritmo pausado da vida longe da cidade e a realidade de lidar diretamente com a natureza e a vida em estado puro, através dos animais do zoo, tem o efeito oposto : a perda absoluta se torna completamente real, para todos. E fazer as pazes com ela torna-se a única opção.

É um riff em cima de Momento Inesquecível, o filme de Bill Forsyth de 1983 que Cameron usou para guiar a interpretação de Damon. Nele, um executivo da indústria de petróleo encontra a si mesmo, sua consciência e a possibilidade da magia ao se ver num vilarejo remoto da costa da Escócia, sem nenhum dos artifícios de sua vida anterior.  Aqui, Benjamin e sua familia estão diante da vida em estado bruto, sem distração alguma que os separe de decisões realmente elementares e fatais.

Crowe povoa o zoo com  animais que espelham as emoções da familia e um grupo de figuras levemente excêntricas – entre elas sua própria mãe e Patrick Fugit, de Quase Famosos, sem muito o que fazer além de andar com um macaco no ombro. E dá ao Benjamin de Matt Damon um interesse romântico que não existiu na história real, e que se torna absolutamente irresistível na pessoa de Scarlett Johansson.

Como um show dos Rolling Stones, todo o filme parece estar sempre a um breve passo do caos, neste caso um caldeirão de melaço capaz de por o espectador em coma hiperglicêmica. E, como os melhores shows dos Stones, ele resvala pela borda do abismo sem cair nele , desafio que o próprio Crowe se impõe, quem sabe como exercício para  provar seus próprios “20 segundos de coragem absurda”, a frase-chave de Zoológico. Neste caso, a coragem de sentir plenamente, sem ironia e sem sarcasmo, correndo todos os belos riscos de um coração vivo e aberto.

Cavalo de Guerra ecoa outro tipo de filme, o épico em grande escala de David Lean e John Ford, e de certa forma o mesmo tema – a coragem e a possibilidade do coração aberto. Mas enquanto Zoológico é uma peça de câmara, Cavalo de Guerra é uma sinfonia para grande orquestra, com harpa e tudo.

Não é figura de linguagem: os primeiros 15 minutos de Cavalo de Guerra são apenas música – a maravilhosa trilha de John Williams – e a paisagem de Devon, na Grã Bretanha, contando a história do nascimento do potrinho que será herói de guerra.

É o primeiro toque para a espectadora/especetador do que realmente importa no filme: o cavalo e a terra. Os humanos, diminutos em suas batalhas entre si, seus planos de glória, sua crueldade, sua arrogância, são engolfados por algo mais antigo e maior que eles algo que, novamente, fala diretamente sobre o pulsar essencial da vida.

São os humanos que tomam as decisões da vida do potro alazão e lhe dão vários nomes ao longo da história (e é interpretado por vários cavalos, mas menos do que o costume em filmes assim; Spielberg queria “manter a personalidade individual” do personagem equino). Mas nenhum desses humanos é o protagonista desta história: a verdadeira coragem, o verdadeiro grande coração, são do cavalo, inexplicáveis e absolutos como são as coisas na natureza selvagem.  O que os humanos podem esperar – e o que acontece, episódicamente, ao longo do filme – é que tenham a graça de serem tocados por essa energia.

Como Crowe, mas numa escala maior, Spielberg é frequentemente acusado de sentimentalismo e de uma filmografia menor, inconsequente. São acusações das quais não compartilho e que são brilhantemente desmontadas por uma recente série de ensaios visuais do site Indiewire. Suspeito que uma grande parte desta cisma é que Spielberg, de novo como Crowe, recusa-se a ser cínico e a tratar emoções e sentimentos como coisas irônicas e triviais. Ele é essencialmente um humanista, correndo os riscos do que isso quer dizer numa sociedade fraturada.

Usando a espetacular fotografia de seu parceiro, o mestre Janusz Kaminski, Spielberg deixa a história do livro de Michael Morpurgo respirar em amplos espaços, grandes movimentos de câmera. É um filme gloriosamente à moda antiga, com efeitos reduzidos a um mínimo essencial, e que exige que a espectadora/espectador se entregue a ele sem reservas.

E, no final, a aventura vale a pena.


David Fincher e a trilogia Millenium: o dragão tem duas cabeças
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Ana Maria Bahiana

Para os fãs da trilogia Millenium o que vou dizer a seguir é o equivalente a uma blasfêmia, mas lá vai: o principal efeito do impacto visual da versão David Fincher de Homens Que Não Amavam as Mulheres é revelar o quanto a história é, em essência, capenga.

A versão original, de 2009, dirigida por Niels Arden Oplev, era tão …humm… sueca que os altos e baixos da história se diluíam entre imagens de pitorescas festas de Natal com almôndegas, prisões que pareciam uma loja de design, e campos de neve pontuados por pinheiros, onde de vez em quando algo violento ou sinistro se insinuava quase que pedindo desculpas.

David Fincher arromba o universo de Stieg Larsson  com uma versão épica da história de Mikael Blomkvist, o jornalista investigativo caído em desgraça (Daniel Craig), Lisbeth Salander, a cyber punk com um passado de dor e vingança  (Rooney Mara) e a família milionária numa ilha na costa da Suécia, na qual metade tem um passado nazista e a outra metade tem mais esqueletos no armário que  faculdade de medicina.

Fincher é mestre em criar ambientes que transcendem imagens: tudo é maior, mais ameaçador, mais espetacular, mais rápido, mais explícito. A ilha dos milionários é o inferno da mitologia nórdica: isolado, gelado, sem saída, pontuado de sangue. A trillha de Trent Reznor é deliciosamente sinistra e frígida. E Rooney Mara… ah! Rooney Mara! Sua Lisbeth Salander faz justiça à genial criação de Noomi Rapace no filme sueco, mas é um riff pessoal na personagem. Há uma fragilidade mais claramente expressa em seus olhos, nos seus gestos. É uma combinação fascinante de extrema dureza, raiva absoluta e um oceano de emoções puras por baixo de tudo.

E no entanto… tudo o que estes elementos adicionais fazem é realçar o quanto da trama de Larsson tem buracos. Não vou mencionar os ditos cujos em detalhes, para não me acusarem de spoiler, mas só adianto que 1. a matemática de membros da familia não parece fazer sentido; 2. a motivação dos crimes, idem. 3. Aquele trecho final , pós-resolução dos crimes, faz menos sentido que os itens anteriores.

O que fascina na obra de Larsson, me parece, é a existência de Lisbeth Salander, a metade feminina, violenta e explosiva do passivo, confuso Mikael Blomkvist _e ambos, juntos, o alter ego de Larsson. Fincher explora muito bem o poder deste dragão de duas cabeças, e cria magníficos panoramas sensoriais de estranheza e impacto. O segredo é não fazer muitas perguntas…

Homens Que Não Amavam Mulheres (alguém tem o mesmo problema que eu com este título, que é o original do livro sueco? O fato dele entregar, de cara, um elemento importante da trama? Enfim…) estréia nos EUA dia 20; no Brasil, dia 27 de janeiro.


Nove minutos com The Dark Knight Rises: “é um épico”
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Ana Maria Bahiana

 

Muito chique no seu habitual modelo -terno preto com colete- Christopher Nolan saudava os convidados na porta do cinema IMAX do complexo da Universal com o orgulho de pai em festa de escola.  Noite fria de quinta feira em Los Angeles, e a sala do IMAX não estava lotada como seria de se esperar: muita gente desanimou quando soube que a tão badalada “sessão mistério” de The Dark Knight Rises teria apenas 9 minutos.

“Eu sei, é estranho vir até aqui apenas para poucos minutos, mas eu realmente queria que vocês tivessem uma ideia de como o filme é em IMAX”, disse Nolan. “ É uma tecnologia criada no ano em que eu nasci, mas ainda é a maior qualidade de imagem que conheço, e a maneira mais imersiva de apreciar um filme. É minha contribuição para evitar o encolhimento do cinema que, infelizmente, vem acontecendo nos últimos tempos.”

As luzes se apagam (vocês podem achar SPOILER o que vem a seguir…) e com a tela negra ouve-se a voz de Gary Oldman/Comissário Gordon dizendo “Harvey Dent era meu amigo. Eu acreditava em Harvey Dent.” Rapidamente as coisas ficam menos filosóficas: há uma ação da CIA, homens encapuzados, o Dr. Pavel (Alon Aboutboul) da campanha viral defechada hoje (quinta) à tarde, equipamentos médicos, Bane (Tom Hardy)  e o mais inacreditável sequestro de avião que eu pelo menos já vi em filme. Seguem-se imagens do batmóvel disparando por Gotham, multidões em fúria, a Mulher Gato em toda a sua glória.

Com a música de Hans Zimmer bombando e as imagens de Tom Hardy, Joseph Gordon Leavitt e Marion Cotillard,  em alguns momentos tem-se a impressão de estar vendo Inception. E se vocês acharam difícil entender o que Christian Bale diz quando põe a máscara de Batman, esperem para (tentar) ouvir os grunhidos de Tom Hardy atrás da sua engenhoca de Bane…

A tela gigante do IMAX de fato  coloca o espectador no meio da ação, e compreende-se porque Nolan prefere este formato ao 3D que encanta tantos dos seus contemporâneos.

E de repente… pronto, acabou, entre muitos aplausos. “Não me perguntem o que acontece depois disso”, Nolan brinca. “Estou começando agora a montar o filme.”

Mais relaxado depois da exibição, Nolan conversava sobre sua paixão pelos grandes formatos: “O cinema que me apaixonou, o cinema da minha infância e adolescência, era o grande cinema, o que me transportava para além da vida cotidiana. Essa sempre foi minha meta como realizador, recapturar essa magia do cinema.” Sobre o repeteco de tantos atores de Inception Nolan tem uma explicação simples: “Por que não usar de novo atores tão maravilhosos, que se adaptam tão perfeitamente  aos papéis? Sim, sou um privilegiado em ter essa oportunidade.”

Este aperitivo (ou “prólogo”, como Nolan o chama)  , reduzido para sete minutos- estreará nos Estados Unidos no próximo dia 16 e na Grã Bretanha dia 21, antes das exibições de Missão Impossível 4. “É uma estratégia que já usamos em Cavaleiro das Trevas e que me agradou muito”, diz Nolan.

É claro que Nolan não espera que todo mundo vá ver Dark Knight Rises em IMAX, em julho – afinal existem apenas 100 telas pelo mundo afora. “Os fãs não vão ter dificuldade em achar lugares que estejam exibindo o filme em 35 mm. Mas espero que eles façam um esforço para ver em IMAX, nem que tenham que esperar um pouco mais. Pensei o filme com estas dimensões, filmei com estas dimensões. É um épico. É assim que tem de ser visto.”


A vida secreta dos espiões, parte 2: a claustrofobia da vida na casa de vidro
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Ana Maria Bahiana

 

Há uma assinatura visual clara em O espião que sabia demais,  a adaptação do livro homônimo de John Le Carré (estréia dia 9 de dezembro nos EUA e  20 de janeiro no Brasil) pelo diretor sueco Tom Alfredson (Deixe ela entrar) : vidro. Janelas, divisórias e telhados de vidro enquadram o grupo de agentes de elite do serviço de inteligência britânico, o MI6, enquanto eles se debatem num jogo de intrigas e traições. Num lugar onde não há como se esconder, o único refúgio é dentro de si mesmo.

O fato do grupo estar sendo encarnado por uma outra elite, a dos atores britânicos, ajuda muito. John Hurt, Gary Oldman, Colin Firth, Ciaran Hinds, Toby Jones, Benedict Cumberbatch, Tom Hardy, Kathy Burke debatem-se nesta série de gaiolas de vidro com precisão, elegância e garra, cada um a sombra do outro, todos mantendo o oposto da transparência que o vidro sugere: um universo de segredos, cada um deles capaz de destruir o suposto companheiro de batalha.

Quem leu o livro ou viu a série da BBC onde Alec Guiness fazia o papel que Gary Oldman vive a tela – Smiley, o espião encarregado de espionar os espiões – estará preparado, mas os demais podem achar que próximo parágrafo é um SPOILER. Fica o aviso, portanto.

A ciranda perversa em que todos esses personagens rodam tem como pano de fundo o auge da guerra fria nos anos 1960. Lá fora é a Swingin’ London, a explosão de hedonismo, aventura e paixão. Dentro do “circo” – que é como os agentes chamam o MI6- o clima é de ansiedade e paranóia. Um deles pode ser um agente soviético. Ou tudo não passa de intriga na batalha por uma promoção. Ou vingança de marido traído. Ou… O circo tem telhado de vidro: não adianta tentar passar adiante a suspeita ou a acusação; de alguma forma ela volta, estilhaçando vidraças.

Alfredson dirige esta dança mortal com calma e rigor. Em suas próprias palavras, o objetivo era criar uma atmosfera tão palpável que fosse possível notar a cor da pele dos personagens – “palidez úmida de suor, de medo”, nas palavras do diretor – e o cheiro de suas roupas – “tweed molhado de chuva e pavor”. Trabalhando com o diretor de fotografia Hoyte van Hoytema (Deixe Ela Entrar, O Vencedor), Alfredson realiza plenamente sua visão, e somos inexoravelmente sugados para dentro desse redemoinho, passo a passo, sem as distrações comuns em filmões americanos – explosões, perseguições catastróficas- mas com a ainda mais aterrorizante lucidez de quem vê muito bem como tudo vai acabar.

Com um elenco dessa categoria é até injustiça destacar alguém, mas o Smiley de Gary Oldman merece um lugar à parte. Implacável mas frágil, cerebral mas completamente emotivo – cada gota de sentimento cuidadosamente trancada – seu Smiley é triunfo de interpretação, um momento que este grande ator merecia há muito tempo.

Não percam.


Angelina Jolie plagiou mesmo seu primeiro filme como diretora?
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Ana Maria Bahiana

 

Angelina Jolie no set

Então vocês já sabem sobre o processo de plágio movido contra Angelina Jolie? Estou tentando desembaraçar os fios desta teia desde ontem, quando In the Land of Blood and Honey, o filme dirigido por Jolie, teve pré-estréia em Nova York e os papéis do processo chegaram, não por acaso, aos escritórios de sua produtora e da GK Films, que bancou o projeto. Ainda não tenho respostas claras sobre as muitas dúvidas que um caso assim provoca, mas já sei mais do que sabia ontem – e, pelo que estou lendo, mais do que tem saído por aí.

A coisa em si: um jornalista bósnio, que se assina tanto James J. Braddock quanto Josip J. Knesevic, acusa Angelina Jolie e seus produtores de terem copiado ilegalmente a trama de seu livro The Soul Shattering, publicado em 2007. Na ação, Braddock/Knesevic, como é de costume, exige reparação e o cancelamento da distribuição de In the Land of Blood and Honey.

Seus argumentos (e aqui há óbviamente SPOILERS, se você pretende ver o filme…) : filme e livro tratam do mesmo assunto, uma mulher muçulmana que é estuprada e aprisionada por soldados sérvios durante a guerra de 1992-1995, e seu relacionamento com o comandante da guarnição onde está aprisionada.

Zana Marjanovic e Goran Kostic em In The Land of Blood and Honey

Braddock/Knesevic argumenta mais: que em 2007, ele teria se reunido com Edin Sarkic, que veio a se tornar um dos produtores de Blood and Honey, e mostrado a ele uma súmula de seu livro. O que alega em seu processo é que Sarkic teria conhecimento do livro e teria usado o material como base do que viria a ser o roteiro que Angelina assina.

Em troca, a GK Films diz que Jolie nunca leu o livro ( e nem poderia, a não ser que ela falasse bósnio, como se verá a seguir) e que os protestos de Knesevic não tem fundamento.

Agora vamos ao que está além disso:

O livro não foi publicado fora da Bósnia. Como o próprio Knesevic descreve, seu manuscrito foi encaminhado para e rejeitado por “centenas de editoras”. Por um ótimo motivo: pelo que se pode ler nos trechos do próprio site do autor, ele é muito ruim.

Seu livro não é uma obra original, única _ é uma reportagem (bastante caótica) sobre as condições em torno de Sarajevo durante a guerra, e inclui uma multidão de personagens e situações. Várias outros documentos, entre reportagens, livros e dossiês, contém ampla documentação dos fatos medonhos ocorridos durante o conflito, inclusive e principalmente o estupro e humilhação sistemática das mulheres. Existe inclusive um vasto livro de entrevistas com mulheres vítimas da guerra, publicado em 1997 sob os auspícios do Comitê para os Direitos Humanos na Sérvia, intitulado exatamente The Shattering of the Soul.

Os elementos que Knesevic alega serem semelhantes entre seu livro e In the Land of Blood and Honey podem ser encontrados na maior parte desses documentos e obras.

Quem negocia uma obra para adaptação cinematográfica toma algumas precauções básicas, como registrar seu trabalho e obter uma carta de intenções de produtores com quem se reune. Que se saiba, Knesevic não tomou nenhuma dessas providências, o que revela pelo menos que ele não é um profissional.

Meu palpite: isso vai morrer na praia.

E o que, para mim, é mais espantoso: o filme é bom. É o filme de uma estreante, mas não é preciso nem dar esse desconto. O complicado relacionamento entre Alya (a sensacional Zana Marjanovic_ quero ver mais filmes com ela!) e Danijel (Goran Kostic, muito bom) vai além do conflito étnico – ela muçulmana, ele sérvio, filho de um general linha-dura ( o sempre competente Rade Serbedzija) para refletir sobre paixão, lealdade, desejo e compaixão. Nada é simplificado, nada é facilitado _ e tanto quanto uma pessoa de fora pode compreender algo tão complexo e doloroso quanto os conflitos na ex-Iugoslávia, o impacto da tragédia na vida cotidiana de seus habitantes é mostrado com clareza.

Independente das confusões, uma bela estréia.

In the Land of Blood and Honey estréia nos EUA (dublado em inglês) dia 23 de dezembro e na Europa, no original em bósnio, a partir de janeiro; ainda não tem data para lançamento no Brasil.


O Artista, Hugo Cabret: na temporada ouro, gestos de puro amor ao cinema
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Ana Maria Bahiana

 

No momento em que o  cinema vive uma intensa discussão de seus caminhos tecnológicos, em que a exibição em película está em vias de extinção, e a distinção entre “real” e “digital” para todos os efeitos dilui-se, um desejo intenso de voltar ao passado parece estar baixando nos realizadores. Vários títulos com destaque na temporada ouro vão além das características do “filme de época” _ eles não apenas se passam no passado, mas incorporam, referenciam e celebram a estética e as técnicas dos tempos em que o cinema era jovem.

A Invenção de Hugo Cabret (em cartaz nos EUA, dia 17 de fevereiro no Brasil) e O Artista (em circuito limitado nos EUA, ainda sem data no Brasil graças à ganância dos Weinstein) são os mais claros tributos ao cinema em seus primeiros passos, o cinema da alvorada do século 20. Mas há também um mundo de referências e homenagens ao cinema dos anos 1940 e 1950 no magnífico Cavalo de Guerra, de Steven Spielberg, assunto de um próximo post.

Em Hugo e Artista, Martin Scorsese e Michel Hazanavicius partiram exatamente do mesmo ponto- uma sincera e profunda homenagem às raízes da imagem em movimento- para chegar a destinos diferentes, com diferentes escolhas diante do banquete tecnológico dos nossos tempos.

O Artista é um artifício _ um delicioso, inteligente artifício, mas um artifício assim mesmo, uma brincadeira superbem realizada por um cinéfilo para outros cinéfilos. Em seus filmes anteriores, a dupla OSS 117, Hazanavicius fazia mais ou menos o mesmo com o gênero filme-de-espionagem, carregando a mão no pastiche. O genial de O Artista não é ele  ser mudo, preto e branco e no velho formato 1.37: 1 ( que dá ao filme um visual literalmente quadradão). É o fato de Hazanavicius estar contando a história do mesmo  modo como o cinema dos anos 1920 contava, usando os mesmos recursos, da fotografia à cenografia. E nós, os espectadores blasés do século 21, estarmos completamente envolvidos por ela.

A história de amor entre o galã veterano (Jean Dujardin) e a starlet emergente (Berenice Bejo) seria banal se não fosse um melodrama como os que faziam nos idos dos 1920, repletos de súbitas guinadas do destino, com o mandatório cachorrinho adorável, os panos de fundo  obviamente pintados, os enquadramentos que contam o máximo de história possível no mínimo de tempo _ porque não há palavras para impulsionar a trama, só rostos, ações, gestos.

Nos últimos minutos deste elegante exercício formal, Hazanavicius se permite um comentário sobre o próprio uso do som no cinema,  a espoleta do drama que, ao mesmo tempo, destrói a vida do galã, eleva a da mocinha e aproxima os dois. É uma piscadela para todos os cinéfilos na plateia, um modo de explicar porque um realizador do século 21 abriu mão voluntáriamente das riquezas à sua volta para criar algo como seus antepassados. É um pouco a mesma razão que leva místicos e ascetas de todas as tradições e escolher o jejum e a privação: para, através deles, produzir a iluminação e transcendência.

Em O Artista elas nem sempre acontecem, mas sempre vale a pena tentar.

Martin Scorsese seguiu o caminho oposto em A Invenção de Hugo Cabret, abraçando todas as conquistas do século 21 para celebrar as visões de um pioneiro do cinema.

Uma verdadeira enciclopédia ambulante de cinema, Scorsese interessou-se em adaptar o livro de Brian Selznick por três motivos: porque seu autor pertence à familia de outro pioneiro do cinema, o produtor David Selznick (…E o Vento Levou, Nasce uma Estrela, Rebecca, A Mulher Inesquecível); porque o principal elemento da trama é o cinema de George Méliès, o grande visionário dos primeiros anos do cinema; e porque o próprio livro, com suas elaboradas ilustrações, muitas vezes em relevo, sugeria tridimensionalidade, imersão.

Como muitos admiradores do criador de Viagem à Lua, Sorsese tem certeza de que Méliès adoraria viver e fazer cinema hoje _ “toda sua vida foi a busca de empurrar os limites do que era possível fazer, e tornar cada vez mais fantástica e extraordinária a experiência do espectador”, Scorsese me disse.

Nos momentos mais fantásticos de extraordinários de Hugo Cabret, Scorsese usa o digital e o 3D impecável da câmera Cameron-Pace (sim, aquele Cameron..) para apresentar as visões de Méliès às plateias deste novo século, possivelmente já entediadas com a quase sempre inútil fartura tecnológica e seus produtos recentes. E não importa quantos filmes high-tech você já tenha visto: o arrepio vem, nascido da emoção porfunda, da admiração sincera que Scorsese tem pelos que tornaram possível a arte da imagem em movimento.

Para cinéfilos hardcore vale a pena conferir as muitas referências diretas a clássicos dos primeiros anos do cinema, de Lumiére a Harold Lloyd, escondidas nas dobras da história do órfão (Asa Butterfield) que vive numa estação ferroviária da Paris de 1930 com um misterioso autômato deixado por seu pai (Jude Law). Aliás, essa história é o único grande problema de Hugo Cabret _ comédia e estrepolias infantis ainda parecem ser coisas complicadas até para um gênio como Scorsese. Mas quando as rocambolescas perseguições dão lugar ao Palácio de Vidro de Méliès, toda a magia que embala nossos sonhos há mais de um século se torna completamente real.


Vida, amor e morte no paraíso havaiano: por que Os Descendentes está na frente da corrida do ouro
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Ana Maria Bahiana

Quando a plateia inteira do teatro Samuel Goldwyn, da Academia, se levantou para aplaudir assim que a última imagem de Os Descendentes – George Clooney e as meninas Shailene Woodley e Amara Miller num sofá, comendo pipoca e vendo o documentário A Marcha dos Pinguins, cobertos por uma manta amarela- desapareceu da tela, eu tive a nítida impressão de que sabia quem era, enfim, a pole position na corrida do ouro.

Certo, a exibição  era uma premiere e não a sessão oficial para a Academia (se fosse, eu não estaria lá…) mas com certeza uma boa parte das pessoas que aplaudiam entusiasticamente o filme de Alexander Payne era votante. Uma rápida olhada sobre o salão da Academia superlotado para a recepção depois do filme revelou uma dúzia de cabeças coroadas de estúdios, outra de produtores, e um bom contingente de atores, atrizes e técnicos.

Numa coisa eu concordo com todos eles: Os Descendentes merece todos os aplausos e a dianteira na disputa. É um belíssimo filme, adaptado do livro (igualmente belo) de Kaui Hart Hemming e interpretado por George Clooney e um excelente elenco de apoio com o tipo de sutileza e complexidada raras no cinemão norte-americano. Especialmente notável é o trabalho de Shailene Woodley como a filha mais velha de Matt (Clooney) o advogado de sangue-azul havaiano  ( descente de uma princesa nativa e um banqueiro norte americano) que precisa, ao mesmo tempo, decidir o que fazer com a esposa, que o traiu e agora jaz em coma no hospital, e com um enorme pedaço de terra, intocado e espetacular, que pertence à familia.

Laços de sangue e laços de terra formam a delicada teia da trama, onde as coisas que acontecem fora – os confrontos entre pai e filhas, a aparição de um hilário amigo cabeção da filha mais velha, a busca do amante da esposa, as divergências entre os primos a respeito do destino das terras – são menos importantes do que as acontecem dentro dos personagens. Principalmente o longo, penoso, lindo arco entre decepção e perdão, passando por fúria, desespero e compaixão, que o Matt de George Clooney faz, literalmente diante de nossos olhos, e que certamente vai (com justiça) lhe valer indicações.

Alexander Payne, afastado das telas desde Sideways-Entre Umas e Outras, é um desses raros, preciosos diretores sem o desespero de impulsionar a narrativa a todo custo, com a calma e a precisão capazes de deixar a história e as emoções respirarem através de seus atores e dos detalhes, da luz, da maravilhosa fotografia de Phedon Papamichael ( seu colaborador também em Sideways).

A trilha, composta unicamente de gravações originais de música havaiana – inclusive o mega-mestre da guitarra slack key, Gabby Pahinui – sublinha delicadamente essa jornada.

No final tudo termina naquele sofá, com pipoca e A Marcha dos Pinguins, os descendentes da princesa havaiana e do banqueiro ha’ole cobertos pela mesma colcha amarela que embalou  a esposa em coma. Morte, vida, sangue, terra, família, compreendida, aqui, como algo maior que a mera sucessão de gerações, algo que vai até raízes profundas e ramos vastos da árvore da vida.

Somos todos descendentes, diz o filme de Payne. E, um dia, seremos todos ancestrais.

Os Descendentes estreou esta semana nos EUA ; no Brasil, estréia dia 27 de janeiro.