Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : Hugo Cabret

Em fim de semana de definições, a saudade vai dominar?
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Ana Maria Bahiana

Fim de semana importante na corrida do ouro: sábado saem os prêmios da Directors Guild e domingo, os vitoriosos da Screen Actors Guild. A essa altura da disputa pelo Oscar, nenhum dos dois tem peso em termos de números: os 367 diretores (liderados por Kathryn Bigelow, diretora do departamento) e os 1,183 atores da Academia (liderados por Annette Bening), quase todos membros da DGA e da SAG, estão agora diluídos nos mais de 6 mil votantes do Oscar que escolhem, juntos, os prêmios finais.

Mas tem importância como modo de chamar a atenção dos colegas de outros departamentos e estabelecer aquela coisa difusa mas muito poderosa que é a “vontade de votar”.

Quem especula sobre o resultado dos Oscars em geral usa fórmulas que levam em conta fatores concretos como bilheteria, data de estréia, gênero, comparações com anos anteriores, etc. Mas minha experiência me diz que o verdadeiro motor das escolhas é algo muito mais sutil, forte e impossível de quantificar: um desejo de premiar este ou aquele título, esta ou aquela atriz, diretor ou roteirista baseado em preferências que tem a ver com a época, o tempo em que vivemos, temas profundos que estão rolando quem sabe onde na cabeça de quem faz cinema, aqui.

Jung explicaria mas infelizmente Michael Fassbender não foi indicado.

Vamos ver, então, se DGA e SAG confirmam o que suspeito: que O Artista está na liderança este ano, e que A Invenção de Hugo Cabret passou Os Descendentes como seu rival mais importante.

Em outros anos, usando apenas as referências do passado, Os Descendentes seria o líder perfeito: independente, americano, abordando questões de familia, estrelado por um ator super popular, um diretor indicado (e vitorioso) anteriormente.

Mas algo diferente e especial está acontecendo nesta temporada 2011-2012: dois filmes lembraram, por caminhos diferentes, o que é essencial no cinema, qual o seu poder mais profundo, por que ele permaneceu contemporâneo e vital ao longo de mais de um século _ O ArtistaA Invenção de Hugo Cabret.

Jean Dujardin e Michel Hazanavicius no set de O Artista, nos estúdios RED, em Los Angeles (onde Matar ou Morrer foi filmado)

Tudo o mais empalidece diante desse elemento. Até mesmo o fato de Hugo Cabret só se tornar realmente genial quando Asa Butterfield encontra F.Murray Abraham. Ou a verdade de que O Artista se baseia num artifício, e não é um filme feito como o dos anos 1920, e sim um desejo, uma lembrança reconstruída de fragmentos e impressões, de um realizador do século 21, saudoso do que não viveu. Como a recente exibição de Asas  confirma, o cinema dos anos 1920 era muito mais ousado, complicado e arriscado que a doçura ingênua de O Artista (Metrópolis, Napoleão, Aurora…)

Filme por filme, Os Descendentes é superior a ambos.

Mas cinema é percepção. Ele é, em si mesmo, uma realidade alterada. E nessa realidade Artista e Hugo Cabret dizem a quem faz cinema que, voltando atrás, é possível recuperar a faísca com que tudo começou.

PS: Mas George Clooney e Viola Davis ainda são minhas apostas para ganhar ator/atriz/cinema nos SAGs…


O Artista, Hugo Cabret: na temporada ouro, gestos de puro amor ao cinema
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Ana Maria Bahiana

 

No momento em que o  cinema vive uma intensa discussão de seus caminhos tecnológicos, em que a exibição em película está em vias de extinção, e a distinção entre “real” e “digital” para todos os efeitos dilui-se, um desejo intenso de voltar ao passado parece estar baixando nos realizadores. Vários títulos com destaque na temporada ouro vão além das características do “filme de época” _ eles não apenas se passam no passado, mas incorporam, referenciam e celebram a estética e as técnicas dos tempos em que o cinema era jovem.

A Invenção de Hugo Cabret (em cartaz nos EUA, dia 17 de fevereiro no Brasil) e O Artista (em circuito limitado nos EUA, ainda sem data no Brasil graças à ganância dos Weinstein) são os mais claros tributos ao cinema em seus primeiros passos, o cinema da alvorada do século 20. Mas há também um mundo de referências e homenagens ao cinema dos anos 1940 e 1950 no magnífico Cavalo de Guerra, de Steven Spielberg, assunto de um próximo post.

Em Hugo e Artista, Martin Scorsese e Michel Hazanavicius partiram exatamente do mesmo ponto- uma sincera e profunda homenagem às raízes da imagem em movimento- para chegar a destinos diferentes, com diferentes escolhas diante do banquete tecnológico dos nossos tempos.

O Artista é um artifício _ um delicioso, inteligente artifício, mas um artifício assim mesmo, uma brincadeira superbem realizada por um cinéfilo para outros cinéfilos. Em seus filmes anteriores, a dupla OSS 117, Hazanavicius fazia mais ou menos o mesmo com o gênero filme-de-espionagem, carregando a mão no pastiche. O genial de O Artista não é ele  ser mudo, preto e branco e no velho formato 1.37: 1 ( que dá ao filme um visual literalmente quadradão). É o fato de Hazanavicius estar contando a história do mesmo  modo como o cinema dos anos 1920 contava, usando os mesmos recursos, da fotografia à cenografia. E nós, os espectadores blasés do século 21, estarmos completamente envolvidos por ela.

A história de amor entre o galã veterano (Jean Dujardin) e a starlet emergente (Berenice Bejo) seria banal se não fosse um melodrama como os que faziam nos idos dos 1920, repletos de súbitas guinadas do destino, com o mandatório cachorrinho adorável, os panos de fundo  obviamente pintados, os enquadramentos que contam o máximo de história possível no mínimo de tempo _ porque não há palavras para impulsionar a trama, só rostos, ações, gestos.

Nos últimos minutos deste elegante exercício formal, Hazanavicius se permite um comentário sobre o próprio uso do som no cinema,  a espoleta do drama que, ao mesmo tempo, destrói a vida do galã, eleva a da mocinha e aproxima os dois. É uma piscadela para todos os cinéfilos na plateia, um modo de explicar porque um realizador do século 21 abriu mão voluntáriamente das riquezas à sua volta para criar algo como seus antepassados. É um pouco a mesma razão que leva místicos e ascetas de todas as tradições e escolher o jejum e a privação: para, através deles, produzir a iluminação e transcendência.

Em O Artista elas nem sempre acontecem, mas sempre vale a pena tentar.

Martin Scorsese seguiu o caminho oposto em A Invenção de Hugo Cabret, abraçando todas as conquistas do século 21 para celebrar as visões de um pioneiro do cinema.

Uma verdadeira enciclopédia ambulante de cinema, Scorsese interessou-se em adaptar o livro de Brian Selznick por três motivos: porque seu autor pertence à familia de outro pioneiro do cinema, o produtor David Selznick (…E o Vento Levou, Nasce uma Estrela, Rebecca, A Mulher Inesquecível); porque o principal elemento da trama é o cinema de George Méliès, o grande visionário dos primeiros anos do cinema; e porque o próprio livro, com suas elaboradas ilustrações, muitas vezes em relevo, sugeria tridimensionalidade, imersão.

Como muitos admiradores do criador de Viagem à Lua, Sorsese tem certeza de que Méliès adoraria viver e fazer cinema hoje _ “toda sua vida foi a busca de empurrar os limites do que era possível fazer, e tornar cada vez mais fantástica e extraordinária a experiência do espectador”, Scorsese me disse.

Nos momentos mais fantásticos de extraordinários de Hugo Cabret, Scorsese usa o digital e o 3D impecável da câmera Cameron-Pace (sim, aquele Cameron..) para apresentar as visões de Méliès às plateias deste novo século, possivelmente já entediadas com a quase sempre inútil fartura tecnológica e seus produtos recentes. E não importa quantos filmes high-tech você já tenha visto: o arrepio vem, nascido da emoção porfunda, da admiração sincera que Scorsese tem pelos que tornaram possível a arte da imagem em movimento.

Para cinéfilos hardcore vale a pena conferir as muitas referências diretas a clássicos dos primeiros anos do cinema, de Lumiére a Harold Lloyd, escondidas nas dobras da história do órfão (Asa Butterfield) que vive numa estação ferroviária da Paris de 1930 com um misterioso autômato deixado por seu pai (Jude Law). Aliás, essa história é o único grande problema de Hugo Cabret _ comédia e estrepolias infantis ainda parecem ser coisas complicadas até para um gênio como Scorsese. Mas quando as rocambolescas perseguições dão lugar ao Palácio de Vidro de Méliès, toda a magia que embala nossos sonhos há mais de um século se torna completamente real.


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