Blog da Ana Maria Bahiana

Jogos Vorazes na tela: bem-vindos a Panem

Ana Maria Bahiana

Gosto muito da trilogia Jogos Vorazes. Por um milhão de motivos que não cabem aqui tenho especial interesse no que se produz para o público adolescente, em livro, cinema ou TV. Chama a minha atenção, imediatamente, quando um título trata o adolescente como o adulto que ele já é, sem insultar sua inteligência ou menosprezar sua capacidade de compreender as complicações do mundo à sua volta. E é exatamente por isso que tenho especial predileção e carinho pela obra de Suzanne Collins.

Collins garante que a inspiração para sua obra veio de uma noite em que ela viu na TV, em rápida sucessão, jovens competindo num reality show e jovens lutando no Oriente Médio. Mas vejo raízes ou pelo menos paralelos claros entre Jogos Vorazes e outras obras literárias e cinematográficas: o mundo totalitário do livro 1984, de George Orwell; o reality show onde os participantes tem que matar-se mutuamente do filme indie Series 7:The Contenders, de 2001; e principalmente o japonês Battle Royale, de Kinji Fukasaku onde, num Japão dilacerado do futuro, adolescentes são anualmente encerrados numa ilha e obrigados a combater até a morte. Lançado em 2000, Battle Royale provocou tamanha controvérsia no Japão e em vários outros países que sua exibição foi suspensa ou mesmo vetada (para felicidade dos cinéfilos, Battle Royale acaba de ser lançado em DVD/Blu-ray. Vale conferir.)

Quem, como eu, gosta dos livros, não vai se decepcionar com o filme de Gary Ross, que estreia no EUA, no Brasil e no mundo nesta sexta feira, dia 23. Com todas as dificuldades que fazem parte do processo de adaptar uma obra literária para a tela, Jogos Vorazes é um dos filmes mais fiéis ao texto original desde, pelo menos, Onde os Fracos Não tem Vez, dos irmãos Coen, em 2007.

O que, em si só, não é pouca coisa. Para quem passou os últimos dois anos em Marte: Jogos Vorazes (e seus dois livros seguintes), passa-se num futuro não muito distante, em Panem, o país totalitário que restou da América do Norte depois de uma série de desastes ecológicos e guerras civis. O governo, ditatorial e riquíssimo, controla uma população mantida em estado perpétuo de carência e fome. E, todos os anos os “tributos”, dois jovens de cada um dos 12 distritos de Panem, são escolhidos por sorteio para lutarem entre si até a morte, diante das câmeras de um reality show assistido em todo o país _ os Jogos Vorazes do título.

Um dos principais desafios do livro de Suzanne Collins é sua narrativa na primeira pessoa. O leitor só sabe o que a heroína Katniss Everdeen – um dos “tributos”  do paupérrimo Distrito 12 – sabe, só vê o que ela vê, só sente e percebe as emoções dos outros à sua volta pelo prisma de seus sentimentos e emoções. Num filme  que, além de outras coisas, espera atrair para o cinema pessoas que não leram e não conhecem o livro, isso é um problemão _ é preciso achar um modo de explicar e contextualizar um monte de coisas que impulsionam e justificam a ação.

O roteiro – da própria Suzanne Collins com Ross e  Billy Ray (A Guerra de Hart, Intrigas de Estado) – resolve perfeitamente a questão, tomando pequenas mas eficientes liberdades. Não estamos mais, como no livro, dentro da cabeça de Katniss, mas o seu ponto de vista é o que impera. E Jennifer Lawrence, que praticamente fez uma prévia do papel em outra sobrevivente indômita, a Ree de Inverno da Alma, é mesmo a escolha perfeita para viver Katniss.

Ross (Seabiscuit, Pleasantville)  imprime ao roteiro um ritmo perfeito, abrindo espaços para o contexto do medonho mundo de Panem, com pequenos mas importantes detalhes adicionais como (SPOILER !) uma sequência de insurreição filmada, em segunda unidade, por seu amigo Steve Soderbergh. É um modo de  deixar claros, com este e outros detalhes, os elementos que levarão a história mais adiante.

Os 80 milhões de dólares do orçamento parecem muito comparados com filmes independentes, mas na verdade são um custo modesto para uma produção com esta amplitude. E olhos espertos poderão notar que, embora a direção de arte seja impecável, informada tanto pelos Estados Unidos da Grande Depressão dos anos 1930 quanto pela França totalitária e dividida de Luis XVI e Maria Antonieta, os efeitos digitais flertam com o desapontamento. Talvez por isso não fiquem muito tempo na tela _ porque um pouco mais de tempo e eles não segurariam o impacto.

Como no texto de Collins, a violência de Jogos Vorazes nunca é gratuita ou sem consequências. A simples existência da violência na história é um comentário sobre seu uso perverso como instrumento de opressão. Ao sadismo de uma sociedade entusiasmada pelo espetáculo de jovens se matando o filme, como o livro, propõe a dignidade da caçadora Katniss, que sabe o valor da vida porque, diariamente, precisa decidir sobre ela _ matar o animal na floresta ou permitir que sua familia morra de fome?

Ross abrandou a violência em Jogos Vorazes, colocando alguns momentos mais sangrentos fora da câmera e detendo-se o mais breve e delicadamente possível sobre algumas mortes essenciais. Violência não é diversão, seu filme diz. Violência tem um custo e um peso.

Onde tenho mais respeito e admiração pelo trabalho de Ross é por isso, por sua integridade em manter o compromisso do livro com  temas complicados e espinhosos: o poder do indivíduo e da consciência, a violência institucionalizada como método de controle, o interminável sacrifício da juventude no altar do jogo de poder.

São ideias que se encontram também nas obras que citei lá em cima, mas a oportunidade e a precisão com que elas foram expressas por Collins em seus livros explica porque eles se tornaram um sucesso tão imenso _ porque num mundo em que adolescentes são exterminados diariamente em guerras, atentados, tiroteios, na miséria, no abandono, recrutados como bombas humanas, aviões do narcotráfico, vítimas de guerras civis, enfiados em escolas sem professores, familias fraturadas, cidades doentes, a história de Katniss e seus companheiros de mortandade de Jogos Vorazes faz muito sentido, real e imediato.