Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : Richard Linklater

Porque Birdman é o favorito do Oscar 2015
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Ana Maria Bahiana

79th Academy Awards Rehearsals Fri

Sim, eu sei. A temporada de prêmios 2015 começou e eu sumi. Desculpem, foi mal. Muita coisa ao mesmo tempo, o que, é claro, me adoeceu brabo.

Então vamos tentar recuperar o tempo perdido.

Neste momento o que eu havia pressentido lá atrás, em setembro-outubro, está se confirmando. Como em quase todos os anos, a corrida tem dois líderes, com um correndo por fora e outros disputando categorias específicas. Este ano, os dois líderes tem um nome só, começam pela letra B e são independentes, de baixo orçamento, intensamente autorais e completamente pelo avesso do que a indústria (que é quem escolhe esta etapa final da premiação) vem praticando nos últimos dez anos: Boyhood, de Richard Linklater, e Birdman, de Alejandro Iñarritu. Correndo por fora vem o charmoso Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson, que também tem B no nome (os cabalistas devem estar se divertindo) e também é autoral, pessoal, de baixo orçamento e na contramão da indústria em tudo – inclusive no fato de ter sido rodado em película, o único assim na categoria “melhor fotografia”.

Depois da dupla vitória neste fim de semana, nos prêmios da Producers Guild e da Screen Actors Guild, acredito que a sorte está lançada para Birdman. Existe o fator matemático: praticamente todos os membros da PGA e da SAG são membros do corpo votante da Academia, os atores são o departamento mais numeroso entre os acadêmicos, e não vejo porque mudariam suas escolhas no Oscar (lembrando: na fase de indicação, são os departamentos e comissões que votam, com exceção de “melhor filme”, que todo mundo escolhe; na fase final, de premiação, todos os acadêmicos votam em todas as categorias.)

Mas existe também o fator psicológico. Esse é mais difícil de quantificar, mas é capaz de alterar ou confirmar o que a matemática aponta. E não adianta olhar para o passado e tentar fazer cálculos estatísticos : não foi indicado a isso, a estatística diz que não vai ganhar aquilo; x filmes desse tipo ganharam o Oscar, portanto o filme xx vai ganhar. Como não canso de dizer: um prêmio, qualquer prêmio, inclusive e principalmente o Oscar, é apenas a opinião de um grupo de pessoas num determinado momento. Sofre as influências do tempo, do momento, das crises, problemas, celebrações, preocupações que essas pessoas estejam enfrentando, individualmente e como uma comunidade.

Um elemento importante na hora de tentar pensar quem é a pedra da vez é um pêndulo que tem marcado as escolhas da Academia nos últimos 40 anos: a autocrítica de um lado e a autocelebração do outro.

Quando a Academia está feliz consigo mesma, e seus integrantes tem orgulho do que fizeram dentro da estrutura e dos recursos dos grandes estúdios, um filme “grande”, de orçamento vasto e muitas vezes pontilhado de estrelas, tem mais chances de ser o escolhido. Foi assim em 1979 com Kramer vs.Kramer, em 1982 com Gandhi, em 1989 com Conduzindo Miss Daisy, em 1993 com A Lista de Schindler, em 1994 com Forrest Gump, em 1997 com Titanic_ só para dar alguns exemplos.

Quando o pessoal está de farol baixo, trabalhando mas sem muito brio, jogando para cumprir o contrato mas secretamente invejando o povo que arrisca tudo para executar obras pessoais, autorais, com pontos de vista fortes, quem tem mais chances é o filme menor, financiado independentemente. Foi assim entre 1975 e 1978, quando a independente United Artists e, em 1978, a EMI Films, de breve vida, emplacaram vitórias seguidas, de Um Estranho no Ninho a O Franco Atirador. Foi assim em 1981 com Carruagens de Fogo (que nem americano era), em 1994 com Amadeus, em 1991 com O Silêncio dos Inocentes, em 1996 com O Paciente Inglês, e, a partir de 1998, quase todos, numa dança das cadeiras entre Miramax, DreamWorks, Fox Searchlight, Summit, Lionsgate, Weinstein Co e companhia.

Este ano, os dois principais competidores ( e até o terceiro correndo-por-fora) tem exatamente essas características: são obras impossíveis de serem dissociadas de seus criadores, realizadas com paixão e um ponto de vista claro, voltadas exclusivamente para a expressão de uma ideia, e não de merchandising, continuações, produtos ancilares, etc. São, em essência, o oposto de tudo o que está acontecendo na indústria, agora.

A infinita delicadeza e elegância de Boyhood, o modo como lembra aos colegas suas raízes num cinema mais humano, as paixões que eles talvez tiveram quando eram estudantes da arte, a ousadia em usar plenamente o tempo como um elemento narrativo são os trunfos que levaram o minúsculo filme de Linklater até agora. Mas quando, outro dia, eu ouvi um acadêmico dizendo que “não entendia como” o filme tinha sido indicado para melhor roteiro, e outro afirmando que era “um absurdo” que ele estivesse entre os nominados para melhor montagem eu comecei a desconfiar que apenas suas qualidades sutis não fossem o bastante para levá-lo até a reta final.

Birdman, por outro lado, tem o tipo de bravura fulgurante que enche os olhos até de quem é capaz de dizer as asneiras acima. O plano sequência fake! As meta referências! A trilha em solos de bateria! E ainda por cima é violentamente, passionalmente, ácidamente crítico do estado de coisas na indústria. Como resistir, num momento de depressão como este?

Neste momento, ponho minhas apostas em Birdman para levar o Oscar de melhor filme, e talvez mais alguns outros (fotografia? Roteiro original?). Talvez resolvam adotar a solução salomônica (herdada dos festivais, que usam o “prêmio do júri” para o mesmo fim) de presentear Linklater com melhor diretor, como consolação. Mas não consigo tirar da cabeça que Birdman é, agora, o filme que mais expressa o momento que esse povo todo tá vivendo. Pulando de prédios (com asas?) em um, dois…


Doze anos de uma história, um momento depois do outro
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Ana Maria Bahiana

boyhood abre 2 Boyhood, Ellar Coltrane Na última cena de Boyhood (Richard Linklater, 2014) , Mason (Ellar Coltrane) e uma amiga contemplam o céu em chamas e o horizonte infinito do majestoso parque Big Bend, no extremo sudoeste do Texas. Os dois estão meio viajandões de cogumelo, ocorrência não incomum quando se tem 18 anos e se está pousado no gume da lâmina entre o não saber bem quem se é e as portas escancaradas do futuro.Em alguns dias Mason e seus amigos de excursão pelo Big Bend começarão suas aulas na universidade. É possível que Mason e sua amiga se tornem um casal. É possível que Mason se forme com louvor em fotografia, sua paixão até o momento, que já lhe rendeu um prêmio no ginásio. É possível que ele troque tudo, que largue tudo, que se case, que  mude de cidade, ou de país… Tudo é possível, e é isso que a imensa paisagem vermelha, que imediatamente remete aos westerns clássicos, imprime em nossas retinas.

Mason e a amiga trocam um breve diálogo, que a princípio parece coisa de doidão. Ela acha que “carpe diem”, aproveite o dia, aproveite o momento, deveria ser ao contrário, que o momento é que nos pega, nos envolve, toma conta de nós. Mason concorda. “O momento é tudo”, ele diz, enquanto a câmera se aproxima lentamente, delicadamente, de seu rosto.

Esta cena, simples e maravilhosa, é o fecho perfeito para um filme enganosamente simples e cem por cento maravilhoso. Durante duas horas e 45 minutos – que passam com a mesma rapidez de um momento fugidio – vimos Mason/Ellar crescer diante de nossos olhos, do moleque de 6 anos que ainda se refugia no colo da mãe (Patricia Arquette) para ouvir histórias ao rapaz de 18 que compreende, afinal, que fantástica, penosa, complicada, única é essa estrada que trilhamos desde nossa primeira inspiração.

A absoluta insanidade de Linklater – filmar uma história ao longo de 12 anos, com os mesmos atores e não-atores – só havia sido tentada, que eu saiba, no território do documentário, com a série Up, de Michael Apted, que seguiu um grupo de crianças desde a escola até a meia idade. Mas a ousadia aqui é outra: o autor não está removido da história, não é o ser onipotente que, de fora, registra as trajetórias de outros. Em Boyhood Linklater está no centro de tudo: na concepção e planejamento do projeto (só a pré-produção levou mais de um ano, e a pós-produção, dois); no roteiro, que sem sombra de dúvida espelha sua própria vida crescendo no oeste do Texas num família instável centrada numa figura materna forte e progressista; e finalmente no olhar calmo, preciso, com que deixa que as duas histórias – a sua e a de Mason/Ellar – se desenrolem ao sabor do tempo.   Boyhood, Ellar Mason., Ethan HwakeCom certeza muita gente vai sair desse filme dizendo “mas é só isso? Isso não é nada demais”. Compreendo _ décadas de fogos de artifício visual de todos os tipos, de efeitos espetaculares a dramas e terrores absurdos, complicadas estruturas narrativas e outros adornos nos deixaram viciados naquilo que é ruidosamente “difícil”. Boyhood não é ruidoso, mas não é fácil – e a simplicidade do olhar de Linklater é o mais complicado de tudo, permitindo que, sobre a sua proposta, a vida e o tempo, em si, construissem um filme. Drama e comédia acontecem, mas Linklater não força a mão em momento algum, não sublinha, não grita – estamos com ele na casa da familia, no banheiro da escola, no assento do carona, na garagem, no almoço de domingo, respirando livremente o momento. Em breve outro momento virá, e outro, e mais outro, o rio do tempo mudando pessoas e paisagens, tecendo uma trama em parte inventada, em parte vivida . Como eu cheguei aqui? , o filme pergunta. Deixando os dias passarem, é a resposta, como na canção dos Talking Heads.

Mas Boyhood não é apenas a vida de um garoto – é a vida de seus pais (Arquette e Ethan Hawke), de sua família, de suas comunidades, de seu estado, de seu país, de todos nós. Somos nós todos atravessando 12 anos, mudando de roupa, de tecnologia, de trilha musical. Somos nós todos crescendo, amadurecendo, envelhecendo – palmas extras para Arquette e Hawke, que chutam o balde do convencional e se permitem envelhecer diante dos nossos olhos – ganhando, perdendo.

Vendo Boyhood eu pensei imediatamente em SlackerDazed and Confused, os filmes de Linklater que, para mim, mais se aproximam em conceito e estética deste. Mas um minuto depois eu vi, escondido em Boyhood, o olhar delicado e generoso de François Truffaut, seu comprometimento inequívoco com a verdade de cada pessoa, seu jeito despojado e poético de enquadrar, escolher, mostrar. Mason poderia ser Antoine Doinel no oeste do Texas, crescendo com os mesmos pequenos-grandes dramas que são os de todos nós e que, às vezes, o olhar do cinema captura tão precisamente.

E, no final, o momento é tudo.

Boyhood está em cartaz nos EUA e estréia no Brasil dia 30 de outubro.

 


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