Blog da Ana Maria Bahiana

O mundo dos animais: Steven Spielberg e Cameron Crowe em busca do coração selvagem
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Ana Maria Bahiana

Se era preciso mais prova de que a safra 2011 do cinema tem saudade de sua infância e adolescência, Cavalo de Guerra, de Steven Spielberg (dia 25 de dezembro nos EUA, 6 de janeiro no Brasil) e Compramos um zoológico, de Cameron Crowe (23 de dezembro nos EUA e Brasil) seriam a prova final. Em ambos, seus realizadores buscam um estado de pureza, uma inocência desprovida do cinismo e amargura dos nossos tempos, apostam no potencial para nobreza e  coragem da natureza humana e usam animais como metáforas daquilo que ainda é possível salvar na humanidade.

Cameron Crowe é um diretor/roteirista com tanta fé no ser humano que seus filmes muitas vezes são tidos como “ingênuos”. É um risco que ele prefere correr para se manter fiel  a si mesmo e a uma linhagem de outros otimistas que o influenciaram e que ele admira : Frank Capra, Billy Wilder, François Truffaut. Seres humanos fazem muita besteira, os filmes de Crowe dizem (ecoando o espírito de seus ídolos) mas tem em si mesmos a capacidade de fazer por merecer sua redenção.

Em Compramos um zoológico – paráfrase de uma história verdadeira acontecida na Grã Bretanha – o herói improvável é o jovem viúvo Benjamin (Matt Damon), e o risco que ele decide correr é, como o título diz, comprar um parque zoológico decadente e ameaçado de fechar.

Benjamin e seus filhos (Colin Ford e Maggie Elizabeth Jones) ainda não se recuperaram inteiramente da morte da esposa e mãe, com a vida diária atropelando, em sua implacável rotina, os sentimentos profundíssimos de dor e perda irreparável de toda a familia. Lançar-se de corpo inteiro num projeto que parece completamente absurdo parece, num primeiro momento, uma dose gigante de anestésico. Mas o ritmo pausado da vida longe da cidade e a realidade de lidar diretamente com a natureza e a vida em estado puro, através dos animais do zoo, tem o efeito oposto : a perda absoluta se torna completamente real, para todos. E fazer as pazes com ela torna-se a única opção.

É um riff em cima de Momento Inesquecível, o filme de Bill Forsyth de 1983 que Cameron usou para guiar a interpretação de Damon. Nele, um executivo da indústria de petróleo encontra a si mesmo, sua consciência e a possibilidade da magia ao se ver num vilarejo remoto da costa da Escócia, sem nenhum dos artifícios de sua vida anterior.  Aqui, Benjamin e sua familia estão diante da vida em estado bruto, sem distração alguma que os separe de decisões realmente elementares e fatais.

Crowe povoa o zoo com  animais que espelham as emoções da familia e um grupo de figuras levemente excêntricas – entre elas sua própria mãe e Patrick Fugit, de Quase Famosos, sem muito o que fazer além de andar com um macaco no ombro. E dá ao Benjamin de Matt Damon um interesse romântico que não existiu na história real, e que se torna absolutamente irresistível na pessoa de Scarlett Johansson.

Como um show dos Rolling Stones, todo o filme parece estar sempre a um breve passo do caos, neste caso um caldeirão de melaço capaz de por o espectador em coma hiperglicêmica. E, como os melhores shows dos Stones, ele resvala pela borda do abismo sem cair nele , desafio que o próprio Crowe se impõe, quem sabe como exercício para  provar seus próprios “20 segundos de coragem absurda”, a frase-chave de Zoológico. Neste caso, a coragem de sentir plenamente, sem ironia e sem sarcasmo, correndo todos os belos riscos de um coração vivo e aberto.

Cavalo de Guerra ecoa outro tipo de filme, o épico em grande escala de David Lean e John Ford, e de certa forma o mesmo tema – a coragem e a possibilidade do coração aberto. Mas enquanto Zoológico é uma peça de câmara, Cavalo de Guerra é uma sinfonia para grande orquestra, com harpa e tudo.

Não é figura de linguagem: os primeiros 15 minutos de Cavalo de Guerra são apenas música – a maravilhosa trilha de John Williams – e a paisagem de Devon, na Grã Bretanha, contando a história do nascimento do potrinho que será herói de guerra.

É o primeiro toque para a espectadora/especetador do que realmente importa no filme: o cavalo e a terra. Os humanos, diminutos em suas batalhas entre si, seus planos de glória, sua crueldade, sua arrogância, são engolfados por algo mais antigo e maior que eles algo que, novamente, fala diretamente sobre o pulsar essencial da vida.

São os humanos que tomam as decisões da vida do potro alazão e lhe dão vários nomes ao longo da história (e é interpretado por vários cavalos, mas menos do que o costume em filmes assim; Spielberg queria “manter a personalidade individual” do personagem equino). Mas nenhum desses humanos é o protagonista desta história: a verdadeira coragem, o verdadeiro grande coração, são do cavalo, inexplicáveis e absolutos como são as coisas na natureza selvagem.  O que os humanos podem esperar – e o que acontece, episódicamente, ao longo do filme – é que tenham a graça de serem tocados por essa energia.

Como Crowe, mas numa escala maior, Spielberg é frequentemente acusado de sentimentalismo e de uma filmografia menor, inconsequente. São acusações das quais não compartilho e que são brilhantemente desmontadas por uma recente série de ensaios visuais do site Indiewire. Suspeito que uma grande parte desta cisma é que Spielberg, de novo como Crowe, recusa-se a ser cínico e a tratar emoções e sentimentos como coisas irônicas e triviais. Ele é essencialmente um humanista, correndo os riscos do que isso quer dizer numa sociedade fraturada.

Usando a espetacular fotografia de seu parceiro, o mestre Janusz Kaminski, Spielberg deixa a história do livro de Michael Morpurgo respirar em amplos espaços, grandes movimentos de câmera. É um filme gloriosamente à moda antiga, com efeitos reduzidos a um mínimo essencial, e que exige que a espectadora/espectador se entregue a ele sem reservas.

E, no final, a aventura vale a pena.


Indicações aos Globos de Ouro 2012: o ano da volta ao essencial do cinema
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Ana Maria Bahiana

Com um grupo tão pequeno e tão diverso quanto nós, os correspondentes estrangeiros em Hollywood, todo ano eu prendo um pouco a respiração na hora do anúncio das indicações ao Globo de Ouro? Que coisa esquisita, bizarra e fora de qualquer compasso meus colegas vão aprontar ?

Este ano, pude respirar mais cedo. Bizarrice mesmo não houve, embora eu ainda não tenha entendido o que o pedestre My Week With Marilyn estava fazendo entre os melhores filmes, comédia/musical, Puss in Boots e Cars 2 entre os longas de animação (em vez de Rio, por exemplo), Callie Thorne entre as atrizes/TV/Drama e, principalmente, a indescritivelmente ruim American Horror Story entre as melhores séries de TV/drama.

Algumas indicações podiam ser melhores – duas para o W. E. da Madonna? Mesmo? Pelo menos foi na música que, de fato, se salva. Imagino que os votantes talvez estivessem querendo garantir a presença da Divina Miss M. na festa do dia 15 de janeiro, o que não é má ideia.

Outras indicações me pareciam ter sido feitas no piloto automático: Glee já passou do prazo de validade; Modern Family poderia ter dado sua vaga perpétua para outra série (Community?); e… The Good Wife? De novo? Nada de novo no front? (Me lembrou a indicação perpétua para House que assombrou o prêmio nos últimos anos…)

Há ausências notáveis, para mim: O Espião Que Sabia Demais, Árvore da Vida entre os filmes/drama; Win Win e Beginners entre os filmes/comédia; Carey Mulligan, tanto por Drive quanto por Shame; Jessica Chastain como qualquer coisa – ela deveria ter sido indicada por conjunto de obra, este ano! ; Ewan McGregor, que também merecia estar lembrado por Beginners, além do seu genial coadjuvante Christopher Plummer; senti falta também das canções de Muppets e das maravilhosas trilha de Hannah e Drive. E, é claro, estava torcendo deseperadoramente por Drive (que afinal emplacou Albert Books entre os coadjuvantes). Mas esse era um sonho impossível. (E se meus colegas quisessem realmente colocar a corrida do ouro num outro nível, teriam indicado Andy Serkis por qualquer uma de suas atuacões mocap…)

Por outro lado, meus colegas me deixaram orgulhosa, também. Quase uma década atrás os Globos destacaram uma série estreante que quase ninguem tinha visto: Mad Men. Este ano, indicaram duas vezes – série/comédia e atriz, para Laura Dern – Enlightened, sensacional reflexão sobre a natureza humana em tempos de crise, criada e executada por um talentoso grupo de criadores vindos do cinema independente, e, neste momento, ameçada de ser cancelada. As indicações para Michael Fassbender (pelo difícil mas belo Shame), Tilda Swinton (pelo provocador Precisamos Falar Sobre Kevin) e Joseph Gordon-Leavitt (pelo pequeno 50/50) mostraram que meus colegas estão atentos.

Liderando com cinco indicações num ano extremamente dividido, O Artista tem uma vantagem interessantíssima _ numa época de apogeu tecnológico, ele aponta para o essencial do cinema, sua capacidade mais profunda e simples de contar histórias visualmente. É um estranho no ninho do espetáculo, e sua trajetória, nesta temporada de prêmios, pode ficar na história.

Os Globos de Ouro serão entregues dia 15 de janeiro em Los Angeles.


David Fincher e a trilogia Millenium: o dragão tem duas cabeças
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Ana Maria Bahiana

Para os fãs da trilogia Millenium o que vou dizer a seguir é o equivalente a uma blasfêmia, mas lá vai: o principal efeito do impacto visual da versão David Fincher de Homens Que Não Amavam as Mulheres é revelar o quanto a história é, em essência, capenga.

A versão original, de 2009, dirigida por Niels Arden Oplev, era tão …humm… sueca que os altos e baixos da história se diluíam entre imagens de pitorescas festas de Natal com almôndegas, prisões que pareciam uma loja de design, e campos de neve pontuados por pinheiros, onde de vez em quando algo violento ou sinistro se insinuava quase que pedindo desculpas.

David Fincher arromba o universo de Stieg Larsson  com uma versão épica da história de Mikael Blomkvist, o jornalista investigativo caído em desgraça (Daniel Craig), Lisbeth Salander, a cyber punk com um passado de dor e vingança  (Rooney Mara) e a família milionária numa ilha na costa da Suécia, na qual metade tem um passado nazista e a outra metade tem mais esqueletos no armário que  faculdade de medicina.

Fincher é mestre em criar ambientes que transcendem imagens: tudo é maior, mais ameaçador, mais espetacular, mais rápido, mais explícito. A ilha dos milionários é o inferno da mitologia nórdica: isolado, gelado, sem saída, pontuado de sangue. A trillha de Trent Reznor é deliciosamente sinistra e frígida. E Rooney Mara… ah! Rooney Mara! Sua Lisbeth Salander faz justiça à genial criação de Noomi Rapace no filme sueco, mas é um riff pessoal na personagem. Há uma fragilidade mais claramente expressa em seus olhos, nos seus gestos. É uma combinação fascinante de extrema dureza, raiva absoluta e um oceano de emoções puras por baixo de tudo.

E no entanto… tudo o que estes elementos adicionais fazem é realçar o quanto da trama de Larsson tem buracos. Não vou mencionar os ditos cujos em detalhes, para não me acusarem de spoiler, mas só adianto que 1. a matemática de membros da familia não parece fazer sentido; 2. a motivação dos crimes, idem. 3. Aquele trecho final , pós-resolução dos crimes, faz menos sentido que os itens anteriores.

O que fascina na obra de Larsson, me parece, é a existência de Lisbeth Salander, a metade feminina, violenta e explosiva do passivo, confuso Mikael Blomkvist _e ambos, juntos, o alter ego de Larsson. Fincher explora muito bem o poder deste dragão de duas cabeças, e cria magníficos panoramas sensoriais de estranheza e impacto. O segredo é não fazer muitas perguntas…

Homens Que Não Amavam Mulheres (alguém tem o mesmo problema que eu com este título, que é o original do livro sueco? O fato dele entregar, de cara, um elemento importante da trama? Enfim…) estréia nos EUA dia 20; no Brasil, dia 27 de janeiro.


Nove minutos com The Dark Knight Rises: “é um épico”
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Ana Maria Bahiana

 

Muito chique no seu habitual modelo -terno preto com colete- Christopher Nolan saudava os convidados na porta do cinema IMAX do complexo da Universal com o orgulho de pai em festa de escola.  Noite fria de quinta feira em Los Angeles, e a sala do IMAX não estava lotada como seria de se esperar: muita gente desanimou quando soube que a tão badalada “sessão mistério” de The Dark Knight Rises teria apenas 9 minutos.

“Eu sei, é estranho vir até aqui apenas para poucos minutos, mas eu realmente queria que vocês tivessem uma ideia de como o filme é em IMAX”, disse Nolan. “ É uma tecnologia criada no ano em que eu nasci, mas ainda é a maior qualidade de imagem que conheço, e a maneira mais imersiva de apreciar um filme. É minha contribuição para evitar o encolhimento do cinema que, infelizmente, vem acontecendo nos últimos tempos.”

As luzes se apagam (vocês podem achar SPOILER o que vem a seguir…) e com a tela negra ouve-se a voz de Gary Oldman/Comissário Gordon dizendo “Harvey Dent era meu amigo. Eu acreditava em Harvey Dent.” Rapidamente as coisas ficam menos filosóficas: há uma ação da CIA, homens encapuzados, o Dr. Pavel (Alon Aboutboul) da campanha viral defechada hoje (quinta) à tarde, equipamentos médicos, Bane (Tom Hardy)  e o mais inacreditável sequestro de avião que eu pelo menos já vi em filme. Seguem-se imagens do batmóvel disparando por Gotham, multidões em fúria, a Mulher Gato em toda a sua glória.

Com a música de Hans Zimmer bombando e as imagens de Tom Hardy, Joseph Gordon Leavitt e Marion Cotillard,  em alguns momentos tem-se a impressão de estar vendo Inception. E se vocês acharam difícil entender o que Christian Bale diz quando põe a máscara de Batman, esperem para (tentar) ouvir os grunhidos de Tom Hardy atrás da sua engenhoca de Bane…

A tela gigante do IMAX de fato  coloca o espectador no meio da ação, e compreende-se porque Nolan prefere este formato ao 3D que encanta tantos dos seus contemporâneos.

E de repente… pronto, acabou, entre muitos aplausos. “Não me perguntem o que acontece depois disso”, Nolan brinca. “Estou começando agora a montar o filme.”

Mais relaxado depois da exibição, Nolan conversava sobre sua paixão pelos grandes formatos: “O cinema que me apaixonou, o cinema da minha infância e adolescência, era o grande cinema, o que me transportava para além da vida cotidiana. Essa sempre foi minha meta como realizador, recapturar essa magia do cinema.” Sobre o repeteco de tantos atores de Inception Nolan tem uma explicação simples: “Por que não usar de novo atores tão maravilhosos, que se adaptam tão perfeitamente  aos papéis? Sim, sou um privilegiado em ter essa oportunidade.”

Este aperitivo (ou ''prólogo'', como Nolan o chama)  , reduzido para sete minutos- estreará nos Estados Unidos no próximo dia 16 e na Grã Bretanha dia 21, antes das exibições de Missão Impossível 4. “É uma estratégia que já usamos em Cavaleiro das Trevas e que me agradou muito”, diz Nolan.

É claro que Nolan não espera que todo mundo vá ver Dark Knight Rises em IMAX, em julho – afinal existem apenas 100 telas pelo mundo afora. “Os fãs não vão ter dificuldade em achar lugares que estejam exibindo o filme em 35 mm. Mas espero que eles façam um esforço para ver em IMAX, nem que tenham que esperar um pouco mais. Pensei o filme com estas dimensões, filmei com estas dimensões. É um épico. É assim que tem de ser visto.”


A vida secreta dos espiões, parte 2: a claustrofobia da vida na casa de vidro
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Ana Maria Bahiana

 

Há uma assinatura visual clara em O espião que sabia demais,  a adaptação do livro homônimo de John Le Carré (estréia dia 9 de dezembro nos EUA e  20 de janeiro no Brasil) pelo diretor sueco Tom Alfredson (Deixe ela entrar) : vidro. Janelas, divisórias e telhados de vidro enquadram o grupo de agentes de elite do serviço de inteligência britânico, o MI6, enquanto eles se debatem num jogo de intrigas e traições. Num lugar onde não há como se esconder, o único refúgio é dentro de si mesmo.

O fato do grupo estar sendo encarnado por uma outra elite, a dos atores britânicos, ajuda muito. John Hurt, Gary Oldman, Colin Firth, Ciaran Hinds, Toby Jones, Benedict Cumberbatch, Tom Hardy, Kathy Burke debatem-se nesta série de gaiolas de vidro com precisão, elegância e garra, cada um a sombra do outro, todos mantendo o oposto da transparência que o vidro sugere: um universo de segredos, cada um deles capaz de destruir o suposto companheiro de batalha.

Quem leu o livro ou viu a série da BBC onde Alec Guiness fazia o papel que Gary Oldman vive a tela – Smiley, o espião encarregado de espionar os espiões – estará preparado, mas os demais podem achar que próximo parágrafo é um SPOILER. Fica o aviso, portanto.

A ciranda perversa em que todos esses personagens rodam tem como pano de fundo o auge da guerra fria nos anos 1960. Lá fora é a Swingin’ London, a explosão de hedonismo, aventura e paixão. Dentro do “circo” – que é como os agentes chamam o MI6- o clima é de ansiedade e paranóia. Um deles pode ser um agente soviético. Ou tudo não passa de intriga na batalha por uma promoção. Ou vingança de marido traído. Ou… O circo tem telhado de vidro: não adianta tentar passar adiante a suspeita ou a acusação; de alguma forma ela volta, estilhaçando vidraças.

Alfredson dirige esta dança mortal com calma e rigor. Em suas próprias palavras, o objetivo era criar uma atmosfera tão palpável que fosse possível notar a cor da pele dos personagens – “palidez úmida de suor, de medo”, nas palavras do diretor – e o cheiro de suas roupas – “tweed molhado de chuva e pavor”. Trabalhando com o diretor de fotografia Hoyte van Hoytema (Deixe Ela Entrar, O Vencedor), Alfredson realiza plenamente sua visão, e somos inexoravelmente sugados para dentro desse redemoinho, passo a passo, sem as distrações comuns em filmões americanos – explosões, perseguições catastróficas- mas com a ainda mais aterrorizante lucidez de quem vê muito bem como tudo vai acabar.

Com um elenco dessa categoria é até injustiça destacar alguém, mas o Smiley de Gary Oldman merece um lugar à parte. Implacável mas frágil, cerebral mas completamente emotivo – cada gota de sentimento cuidadosamente trancada – seu Smiley é triunfo de interpretação, um momento que este grande ator merecia há muito tempo.

Não percam.


Angelina Jolie plagiou mesmo seu primeiro filme como diretora?
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Ana Maria Bahiana

 

Angelina Jolie no set

Então vocês já sabem sobre o processo de plágio movido contra Angelina Jolie? Estou tentando desembaraçar os fios desta teia desde ontem, quando In the Land of Blood and Honey, o filme dirigido por Jolie, teve pré-estréia em Nova York e os papéis do processo chegaram, não por acaso, aos escritórios de sua produtora e da GK Films, que bancou o projeto. Ainda não tenho respostas claras sobre as muitas dúvidas que um caso assim provoca, mas já sei mais do que sabia ontem – e, pelo que estou lendo, mais do que tem saído por aí.

A coisa em si: um jornalista bósnio, que se assina tanto James J. Braddock quanto Josip J. Knesevic, acusa Angelina Jolie e seus produtores de terem copiado ilegalmente a trama de seu livro The Soul Shattering, publicado em 2007. Na ação, Braddock/Knesevic, como é de costume, exige reparação e o cancelamento da distribuição de In the Land of Blood and Honey.

Seus argumentos (e aqui há óbviamente SPOILERS, se você pretende ver o filme…) : filme e livro tratam do mesmo assunto, uma mulher muçulmana que é estuprada e aprisionada por soldados sérvios durante a guerra de 1992-1995, e seu relacionamento com o comandante da guarnição onde está aprisionada.

Zana Marjanovic e Goran Kostic em In The Land of Blood and Honey

Braddock/Knesevic argumenta mais: que em 2007, ele teria se reunido com Edin Sarkic, que veio a se tornar um dos produtores de Blood and Honey, e mostrado a ele uma súmula de seu livro. O que alega em seu processo é que Sarkic teria conhecimento do livro e teria usado o material como base do que viria a ser o roteiro que Angelina assina.

Em troca, a GK Films diz que Jolie nunca leu o livro ( e nem poderia, a não ser que ela falasse bósnio, como se verá a seguir) e que os protestos de Knesevic não tem fundamento.

Agora vamos ao que está além disso:

O livro não foi publicado fora da Bósnia. Como o próprio Knesevic descreve, seu manuscrito foi encaminhado para e rejeitado por “centenas de editoras”. Por um ótimo motivo: pelo que se pode ler nos trechos do próprio site do autor, ele é muito ruim.

Seu livro não é uma obra original, única _ é uma reportagem (bastante caótica) sobre as condições em torno de Sarajevo durante a guerra, e inclui uma multidão de personagens e situações. Várias outros documentos, entre reportagens, livros e dossiês, contém ampla documentação dos fatos medonhos ocorridos durante o conflito, inclusive e principalmente o estupro e humilhação sistemática das mulheres. Existe inclusive um vasto livro de entrevistas com mulheres vítimas da guerra, publicado em 1997 sob os auspícios do Comitê para os Direitos Humanos na Sérvia, intitulado exatamente The Shattering of the Soul.

Os elementos que Knesevic alega serem semelhantes entre seu livro e In the Land of Blood and Honey podem ser encontrados na maior parte desses documentos e obras.

Quem negocia uma obra para adaptação cinematográfica toma algumas precauções básicas, como registrar seu trabalho e obter uma carta de intenções de produtores com quem se reune. Que se saiba, Knesevic não tomou nenhuma dessas providências, o que revela pelo menos que ele não é um profissional.

Meu palpite: isso vai morrer na praia.

E o que, para mim, é mais espantoso: o filme é bom. É o filme de uma estreante, mas não é preciso nem dar esse desconto. O complicado relacionamento entre Alya (a sensacional Zana Marjanovic_ quero ver mais filmes com ela!) e Danijel (Goran Kostic, muito bom) vai além do conflito étnico – ela muçulmana, ele sérvio, filho de um general linha-dura ( o sempre competente Rade Serbedzija) para refletir sobre paixão, lealdade, desejo e compaixão. Nada é simplificado, nada é facilitado _ e tanto quanto uma pessoa de fora pode compreender algo tão complexo e doloroso quanto os conflitos na ex-Iugoslávia, o impacto da tragédia na vida cotidiana de seus habitantes é mostrado com clareza.

Independente das confusões, uma bela estréia.

In the Land of Blood and Honey estréia nos EUA (dublado em inglês) dia 23 de dezembro e na Europa, no original em bósnio, a partir de janeiro; ainda não tem data para lançamento no Brasil.


O Artista, Hugo Cabret: na temporada ouro, gestos de puro amor ao cinema
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Ana Maria Bahiana

 

No momento em que o  cinema vive uma intensa discussão de seus caminhos tecnológicos, em que a exibição em película está em vias de extinção, e a distinção entre “real” e “digital” para todos os efeitos dilui-se, um desejo intenso de voltar ao passado parece estar baixando nos realizadores. Vários títulos com destaque na temporada ouro vão além das características do “filme de época” _ eles não apenas se passam no passado, mas incorporam, referenciam e celebram a estética e as técnicas dos tempos em que o cinema era jovem.

A Invenção de Hugo Cabret (em cartaz nos EUA, dia 17 de fevereiro no Brasil) e O Artista (em circuito limitado nos EUA, ainda sem data no Brasil graças à ganância dos Weinstein) são os mais claros tributos ao cinema em seus primeiros passos, o cinema da alvorada do século 20. Mas há também um mundo de referências e homenagens ao cinema dos anos 1940 e 1950 no magnífico Cavalo de Guerra, de Steven Spielberg, assunto de um próximo post.

Em Hugo e Artista, Martin Scorsese e Michel Hazanavicius partiram exatamente do mesmo ponto- uma sincera e profunda homenagem às raízes da imagem em movimento- para chegar a destinos diferentes, com diferentes escolhas diante do banquete tecnológico dos nossos tempos.

O Artista é um artifício _ um delicioso, inteligente artifício, mas um artifício assim mesmo, uma brincadeira superbem realizada por um cinéfilo para outros cinéfilos. Em seus filmes anteriores, a dupla OSS 117, Hazanavicius fazia mais ou menos o mesmo com o gênero filme-de-espionagem, carregando a mão no pastiche. O genial de O Artista não é ele  ser mudo, preto e branco e no velho formato 1.37: 1 ( que dá ao filme um visual literalmente quadradão). É o fato de Hazanavicius estar contando a história do mesmo  modo como o cinema dos anos 1920 contava, usando os mesmos recursos, da fotografia à cenografia. E nós, os espectadores blasés do século 21, estarmos completamente envolvidos por ela.

A história de amor entre o galã veterano (Jean Dujardin) e a starlet emergente (Berenice Bejo) seria banal se não fosse um melodrama como os que faziam nos idos dos 1920, repletos de súbitas guinadas do destino, com o mandatório cachorrinho adorável, os panos de fundo  obviamente pintados, os enquadramentos que contam o máximo de história possível no mínimo de tempo _ porque não há palavras para impulsionar a trama, só rostos, ações, gestos.

Nos últimos minutos deste elegante exercício formal, Hazanavicius se permite um comentário sobre o próprio uso do som no cinema,  a espoleta do drama que, ao mesmo tempo, destrói a vida do galã, eleva a da mocinha e aproxima os dois. É uma piscadela para todos os cinéfilos na plateia, um modo de explicar porque um realizador do século 21 abriu mão voluntáriamente das riquezas à sua volta para criar algo como seus antepassados. É um pouco a mesma razão que leva místicos e ascetas de todas as tradições e escolher o jejum e a privação: para, através deles, produzir a iluminação e transcendência.

Em O Artista elas nem sempre acontecem, mas sempre vale a pena tentar.

Martin Scorsese seguiu o caminho oposto em A Invenção de Hugo Cabret, abraçando todas as conquistas do século 21 para celebrar as visões de um pioneiro do cinema.

Uma verdadeira enciclopédia ambulante de cinema, Scorsese interessou-se em adaptar o livro de Brian Selznick por três motivos: porque seu autor pertence à familia de outro pioneiro do cinema, o produtor David Selznick (…E o Vento Levou, Nasce uma Estrela, Rebecca, A Mulher Inesquecível); porque o principal elemento da trama é o cinema de George Méliès, o grande visionário dos primeiros anos do cinema; e porque o próprio livro, com suas elaboradas ilustrações, muitas vezes em relevo, sugeria tridimensionalidade, imersão.

Como muitos admiradores do criador de Viagem à Lua, Sorsese tem certeza de que Méliès adoraria viver e fazer cinema hoje _ “toda sua vida foi a busca de empurrar os limites do que era possível fazer, e tornar cada vez mais fantástica e extraordinária a experiência do espectador”, Scorsese me disse.

Nos momentos mais fantásticos de extraordinários de Hugo Cabret, Scorsese usa o digital e o 3D impecável da câmera Cameron-Pace (sim, aquele Cameron..) para apresentar as visões de Méliès às plateias deste novo século, possivelmente já entediadas com a quase sempre inútil fartura tecnológica e seus produtos recentes. E não importa quantos filmes high-tech você já tenha visto: o arrepio vem, nascido da emoção porfunda, da admiração sincera que Scorsese tem pelos que tornaram possível a arte da imagem em movimento.

Para cinéfilos hardcore vale a pena conferir as muitas referências diretas a clássicos dos primeiros anos do cinema, de Lumiére a Harold Lloyd, escondidas nas dobras da história do órfão (Asa Butterfield) que vive numa estação ferroviária da Paris de 1930 com um misterioso autômato deixado por seu pai (Jude Law). Aliás, essa história é o único grande problema de Hugo Cabret _ comédia e estrepolias infantis ainda parecem ser coisas complicadas até para um gênio como Scorsese. Mas quando as rocambolescas perseguições dão lugar ao Palácio de Vidro de Méliès, toda a magia que embala nossos sonhos há mais de um século se torna completamente real.


Vida, amor e morte no paraíso havaiano: por que Os Descendentes está na frente da corrida do ouro
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Ana Maria Bahiana

Quando a plateia inteira do teatro Samuel Goldwyn, da Academia, se levantou para aplaudir assim que a última imagem de Os Descendentes – George Clooney e as meninas Shailene Woodley e Amara Miller num sofá, comendo pipoca e vendo o documentário A Marcha dos Pinguins, cobertos por uma manta amarela- desapareceu da tela, eu tive a nítida impressão de que sabia quem era, enfim, a pole position na corrida do ouro.

Certo, a exibição  era uma premiere e não a sessão oficial para a Academia (se fosse, eu não estaria lá…) mas com certeza uma boa parte das pessoas que aplaudiam entusiasticamente o filme de Alexander Payne era votante. Uma rápida olhada sobre o salão da Academia superlotado para a recepção depois do filme revelou uma dúzia de cabeças coroadas de estúdios, outra de produtores, e um bom contingente de atores, atrizes e técnicos.

Numa coisa eu concordo com todos eles: Os Descendentes merece todos os aplausos e a dianteira na disputa. É um belíssimo filme, adaptado do livro (igualmente belo) de Kaui Hart Hemming e interpretado por George Clooney e um excelente elenco de apoio com o tipo de sutileza e complexidada raras no cinemão norte-americano. Especialmente notável é o trabalho de Shailene Woodley como a filha mais velha de Matt (Clooney) o advogado de sangue-azul havaiano  ( descente de uma princesa nativa e um banqueiro norte americano) que precisa, ao mesmo tempo, decidir o que fazer com a esposa, que o traiu e agora jaz em coma no hospital, e com um enorme pedaço de terra, intocado e espetacular, que pertence à familia.

Laços de sangue e laços de terra formam a delicada teia da trama, onde as coisas que acontecem fora – os confrontos entre pai e filhas, a aparição de um hilário amigo cabeção da filha mais velha, a busca do amante da esposa, as divergências entre os primos a respeito do destino das terras – são menos importantes do que as acontecem dentro dos personagens. Principalmente o longo, penoso, lindo arco entre decepção e perdão, passando por fúria, desespero e compaixão, que o Matt de George Clooney faz, literalmente diante de nossos olhos, e que certamente vai (com justiça) lhe valer indicações.

Alexander Payne, afastado das telas desde Sideways-Entre Umas e Outras, é um desses raros, preciosos diretores sem o desespero de impulsionar a narrativa a todo custo, com a calma e a precisão capazes de deixar a história e as emoções respirarem através de seus atores e dos detalhes, da luz, da maravilhosa fotografia de Phedon Papamichael ( seu colaborador também em Sideways).

A trilha, composta unicamente de gravações originais de música havaiana – inclusive o mega-mestre da guitarra slack key, Gabby Pahinui – sublinha delicadamente essa jornada.

No final tudo termina naquele sofá, com pipoca e A Marcha dos Pinguins, os descendentes da princesa havaiana e do banqueiro ha’ole cobertos pela mesma colcha amarela que embalou  a esposa em coma. Morte, vida, sangue, terra, família, compreendida, aqui, como algo maior que a mera sucessão de gerações, algo que vai até raízes profundas e ramos vastos da árvore da vida.

Somos todos descendentes, diz o filme de Payne. E, um dia, seremos todos ancestrais.

Os Descendentes estreou esta semana nos EUA ; no Brasil, estréia dia 27 de janeiro.


Numa semana tumultuada, o futuro dos dois prêmios mais importantes da temporada
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Ana Maria Bahiana

Os storm troopers abrem a festa de entrega dos Oscars honorários

 

Mas que semana, hein?  Tudo começou sexta feira passada, no final do dia, quando a verificação de dados dos  filmes inscritos para a categoria “filme estrangeiro” revelou que Tropa de Elite 2 estava fora do prazo necessário para a competição. E terminou com o anúncio da volta de Ricky Gervais como host dos Globos 2012, pela terceira vez.

Entre uma coisa e outra, a Academia distribuiu seus prêmios  honorários num almoço de gala, em clima  Star Wars. O presidente Tom Sherak entrou no salão de festas do complexo Hollywood/Highland (onde está o teatro Kodak) vestido de Darth Vader e acompanhado por um pelotão de “storm troppers”. “Como foi  a semana de vocês?”, ele disse saudando a ilustre plateia de acadêmicos e convidados, que desatou a gargalhar. Era ao mesmo tempo uma referência a um dos premiados da tarde,  James Earl Jones, a eterna voz de Lord Vader, e ao tumulto que quase paralisou os preparativos para o Oscar 2012 e terminou com a troca de produtor e apresentador.

Estas mudanças foram inesperadas, mas fãs da corrida do ouro já podem se preparar para mais novidades a partir de 2013. Com certeza teremos indicados e prêmios mais cedo : a entrega do Oscar  de 2013 está marcada para 27 de janeiro, o que pode alterar também as datas dos Globos de Ouro. E, se uma ala muito ativa da diretoria da Academia triunfar, teremos também o exílio dos prêmios técnicos – som, fotografia, efeitos, maquiagem, figurino, direção de arte, montagem – para uma cerimônia separada, prévia, como a que hoje abriga os Oscars honorários.

“Posso ser sincero? Nós estamos no meio do maior tumulto. Vocês, pelo contrário, estão tranquilos”, me confessou um acadêmico ( que estava mesmo usando um terno Armani, saindo do almoço).

“Nós”, no caso, somos os votantes dos Globos de Ouro. Que, na verdade, também não passamos uma semana muito tranquila. Entendo perfeitamente os dois lados da discussão pró e contra a volta de Ricky Gervais. Os 16 colegas que votaram contra tem uma metáfora válida: você convidaria para sua festa uma pessoa que só fala mal dos outros convidados? Os Globos tem mesmo um clima de festança informal e divertida, onde astros e estrelas se sentem à vontade _ é uma parte importante do charme do evento.

Mas o executivo da NBC e os que  votaram a favor também tem razão. Os tempos mudaram, a competição ficou mais agressiva na selva da TV, há mais prêmios que coisas a serem premiadas, e a mistura de estabilidade e crescimento que os Globos  tem mantido  tem que ser defendida cuidadosamente. Todo mundo – votantes e emissora- concorda que Gervais errou no tom, em janeiro deste ano. Falha de todos porque, ao contrário do que o público pensa, todo show que é transmitido ao vivo é rigorosamente roteirizado e ensaiado. Quem tivesse comparecido aos ensaios saberia em que direção Gervais estava indo.

Sim, o público adora ver os famosos em saia justa. Os Oscars e Emmys, quando acertam, fazem isso muito bem. O segredo está em achar o tom certo, equilibrar a piada de modo a não tirar o gume cortante do apresentador nem deixar na distinta plateia o clima de mal-estar que reinava no salão do Beverly Hilton em janeiro deste ano.

É o desafio dos Globos este ano. A maioria das estrelas vai comparacer, não se preocupem. Na verdade, Kate Winslet e George Clooney já aceitaram convites para apresentar prêmios. Todo mundo é profissional e sabe desenvolver defesas, ser imune a alfinetas  e gozações. É tudo parte do ofício _ e da corrida do ouro.