Blog da Ana Maria Bahiana

Categoria : Estreias

Em Cisne Negro, a agonia e o êxtase da perfeição
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Ana Maria Bahiana

A possibilidade da perfeição, a transcendência da perfeição, a loucura da perfeição _ em Cisne Negro Darren Aronofsky nos convida não a  ver, mas a viver estes caminhos, em plena comunhão com sua protagonista, Nina (Natalie Portman) a primeira bailarina de uma fictícia companhia dirigida pelo autoritário e possivelmente brilhante Thomas (Vincent Cassel).

Há duas histórias secundárias correndo no fundo do brilhante roteiro  (de Andres Heinz,  Mark Heyman (de O Lutador) John McLaughlin , a partir de um argumento de Heinz adaptando seu roteiro original The Understudy ): o passado de Erica (Barbara Hershey) ex-bailarina, mãe de Nina; e o da ex-primeira bailarina Beth (Winona Ryder) bruscamente aposentada por Thomas no início do filme.

Mas essas tramas são afluentes do rio que realmente importa e sobre o qual quanto eu menos falar, melhor: a história de Nina, que por sua vez se confunde com o próprio enredo do balé Lago dos Cisnes. Tchaikovsky compôs Lago em 1875-76, inspirado numa série de lendas russas que por sua vez se baseavam em mitos germânicos ainda mais antigos. E, se continuarmos neste mergulho, vamos dar num arquétipo de quase todas as culturas: o da mulher-que-muda, a sereia, a selkie, a mulher-lobo, a mulher-garça. A possibilidade do outro, de habitar o outro, de ser a natureza selvagem.

Combinado com a rigorosa disciplina do balé, o mito adquire um poder imenso, que Aronofsly explora como gosta: num mergulho em queda livre, mas absolutamente controlada. Nina é feita prima ballerina, estreando no papel da Odette, a princesa encantada em cisne,  numa nova produção de Lago dos Cisnes “mais moderna, mais nua, mais sensual”,  nas palavras enfáticas de Thomas.

Responsabilidade, ansiedade e estresse são imensos. Como em toda montagem do Lago, Nina terá que dançar não apenas Odette mas sua arqui-rival, sua sombra, Odile, o Cisne Negro, que irrompe num furacão de jetés e fouettés en tournant no terço final do balé, toda paixão, impulso, inconsciente. Como em toda companhia, Nina tem uma bailarina alternativa, que aprende a coreografia para poder substitui-la em caso de necessidade _a mais jovem Lilly (Mila Kunis). E por aqui ficamos.

Como em O Lutador, Aronofsky escolhe um ponto de vista e permanece nele, disciplinado como um dançarino. Vivemos a jornada de Nina com ela, nas aulas, na barra, nos ensaios, nos espelhos, nos múltiplos , pequenos e precisos rituais do balé : as camadas de malhas, o preparo das sapatilhas, as dolorosas sessões de fisioterapia, os calos, as bolhas, os tombos, as equimoses.  É tortura, agonia e é êxtase, transcendência _  nunca, nem nos maravilhosos All That Jazz e The Red Shoes, eu vi um filme traduzir tão perfeitamente a experiência física, emocional e sensorial de dançar (nota pessoal: danço balé desde os 5 anos. Sou uma dedicadissima bailarina sem talento. Tem gente que corre, joga tênis, faz ioga. Eu danço balé.)

Aronofosky tem dois parceiros preciosos nesta formidável experiência sensual:  a fotografia de Matthew Libatique, que enquadra e se movimenta com a  inteligência do gesto repleto de controle e intenção, e a música de Clint Mansell, que parte de Tchaikovsky para um outro lugar mais sombrio, mais íntimo. O elenco está uniformemente excelente, com destaque para o rigor da abordagem de Natalie Portman, perfeita no entendimento profundo da  vertigem da perfeição (que me fez lembrar a peça Nijinsky,  o Palhaço de Deus).

É filme para não se perder, mas para se perder nele.

Cisne Negro estreia sexta feira dia 3 aqui nos EUA e 4 de fevereiro no Brasil. Em breve, matéria com entrevistas sobre os bastidores de Cisne Negro no UOL Cinema, e 15 minutos de papo com Darren Aronofsky, aqui.


Harry Potter e as trevas dos tempos
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Ana Maria Bahiana

“Vivemos em tempos sombrios”, é a primeira frase que se ouve, logo na abertura de Harry Potter e as Relíquias da Morte, parte I, penúltimo filme da bilionária franquia criada a partir dos best sellers de J K Rowling. “Tempos realmente sombrios, como nunca enfrentamos antes”, continua a voz que, em breve, veremos pertencer ao Ministro da Magia (Bill Nighy) em super close.  Estamos no terceiro e último ato da jornada do herói Harry Potter (Daniel Radcliffe) , da inocência ao despertar do seu destino e, agora, sua conclusão. As perspectivas, como as de todos os seres humanos, não são amenas: testados pelos desafios da adolescência, Potter e seus companheiros Ron e Hermione (Rupert Grint, Emma Watson) são agora adultos, em confronto com as forças da mortalidade, do tempo e do legado de suas famílias.

Uma das (muitas) formas de compreender a obra de Rowling é como um grande arco metafórico sobre a difícil tarefa de viver: da infância à primeira maturidade, perdendo a inocência, ganhando sabedoria, descobrindo um lugar no mundo e, com ele, aliados e inimigos. Cada gesto mágico que Rowling oferece a seus personagens é, também, um processo de crescimento interior, um modo de resolver, em sua narrativa cheia de fantasia, os dilemas e encruzilhadas que fazem parte do trabalho de ser humano.

Outro modo é ver a saga de Potter e seus amigos como um comentário social e político. É interessante, por exemplo, notar como os livros, escritos entre 1997 e 2007, perdem progressivamente o tom alegre e otimista à medida em que o próprio mundo fora de Hogwarts – o nosso mundo, dos muggles  do outro lado da página, e, por consequencia, de Rowling, também – se torna mais desesperadoramente complicado.

Concluída, a saga é também uma grande metáfora sobre nossa luta, como espécie, para suplantar o nosso “lado sombrio”, a eterna fome de poder e controle que nos leva aos desatinos que pontuam nossa breve história neste planeta. É a mesma jornada de JRR Tolkien em Senhor dos Anéis, escrito antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, e por sua vez sugerido por um dos mais antigos mitos sobre a corrupção do poder, o ciclo de histórias do Anel dos Nibelungos que inspirou Wagner em sua obra magna.

Levar tudo isso para o cinema de um modo que, nas palavras do roteirista Steve Koves, “respeite o universo de Rowling e inclua os elementos necessários para um blockbuster” é um desafio de fino equilíbrio. Quando finalmente a saga cinematográfica se concluir, em julho de 2011, que filmes serão lembrados como obras de cinema que caminham pelos próprios pés? Aposto em Prisioneiro de Azkaban, de Alfonso Cuarón.

Mas no final das contas o competente David Yates, que dirigiu mais filmes Harry Potter que qualquer outro realizador, possivelmente será lembrado como a pessoa que cristalizou a forma cinematográfica da série. Yates desimcumbe-se bravamente desta primeira parte do difícil e sombrio Relíquias da Morte. Fãs dos livros (e até não-leitores) provavelmente vão estranhar a ênfase em sequencias de ação _ a perseguição pelas ruas de Londres, por exemplo, com toda cara de videogame. A enorme quantidade de informação que precisa ser passada às vezes congestiona o fluir da narrativa, mas tudo é resgatado pela maravilhosa maneira que Yates encontrou para contar a história das relíquias da morte em si, numa sequencia de animação que é puro lirismo.

O recurso de dividir o último livro em dois filmes cheira  a ganância _ como muito bem aponta Todd McCarthy em sua resenha, o mais longo dos livros, A Ordem da Fênix, foi resolvido em um só filme por  Yates.. Mas agora, como a maturidade de Harry, Ron e Hermione, o exílio do paraíso de Hogwarts, o Ministério da Magia corrompido e a sombra onipresente de Voldemort (Ralph Fiennes)  isso é um fato consumado.

Harry Potter e as Reliquias da Morte, parte I estreia aqui e no Brasil dia 19 de novembro.


Fair Game: o jogo do poder é imundo, mas Naomi Watts é emocionante
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Ana Maria Bahiana

Naomi Watts e Sean Penn em Fair Game...

... e os verdadeiros Joe Wilson e Valerie Plame.

Em 2002, determinada a achar uma razão para invadir o Iraque, a administração W. Bush pressionava todas as agências de inteligência  dos EUA: elas tinham de qualquer maneira que achar  as tais armas de destruição em massa que estariam sendo preparadas desde os tempos de Bush, pai.  No esforço de descobrir o que, soube-se depois, não havia, a CIA despachou o ex-diplomata Joe Wilson, grande conhecedor da África sub-saariana, para o Níger, com a missão de confirmar a venda de um enorme volume de urânio para o Iraque. Wilson não achou coisa alguma e disse isso, com todas as letras, em seu relatório.

Quando, um ano depois, Bush, em seu discurso anual para o Congresso, afirmou que a venda tinha sido efetuada. Wilson – famoso por ter o pavio curto – escreveu um artigo para o New York Times que, já no título, tirava o tapete do presidente e sua turma: “O que eu não encontrei na África.”

Seis meses depois, um jornalista conservador e enturmado com a Casa Branca foi o porta voz do troco: um artigo no Washington Post no qual levantava dúvidas sobre o caráter e as intenções de Wilson e revelava que a mulher dele, Valerie Plame, não era a executiva de uma empresa de investimentos como até seus amigos mais íntimos pensavam e sim uma agente da CIA – que, não por acaso, também não conseguira “achar” as armas de destruição em massa no Iraque.

Esta rede federal de mentiras é o foco de Fair Game (Jogo de Poder, 14 de janeiro no Brasil), o filme de Doug Liman que estreou neste fim de semana nos EUA, em lançamento limitado). Liman é um diretor interessante: começou sua carreira com filmes super indie (Swingers, Go), escreveu a gramática do que viria a ser a triunfante franquia Bourne com o primeiro filme da série (do qual quase foi demitido) e criou Brangelina com Sr. e Sra Smith.

Em Fair Game Liman está a meio caminho entre o blockbuster de ação e o estudo de personagem do cinema independente. Operando ele mesmo a câmera (a digital Red) com a urgência de um documentário e trabalhando com o orçamento de 22 milhões, modesto para um filme desta categoria, com locações em vários países, Liman captura o espectador abrindo a trama com uma sequencia que  cairia bem num thriller de espionagem; e, depois, concentra-se no que realmente quer dizer: o quanto uma trama mentirosa a serviço da manutenção do poder fraciona a vida de um país, de uma sociedade e, no caso de Wilson e Plame, uma família.

É um filme sólido e emocionante, em grande parte por conta da maravilhosa interpretação de Naomi Watts como Plame.  Com um rosto que é uma paisagem emocional em movimento – coisa rara na era do botox- Naomi revela toda a complexidade e humanidade de um tipo de personagem- o espião- que no cinema, em geral, tem uma nota só, na linha “atire primeiro e faça perguntas depois”. Sean Penn é ótimo para papéis de figuras difíceis como Wilson, mas é a mistura de força e delicadeza que Naomi traz para sua Valerie que nos prende à tela, além das imundícies do poder.


Danny Boyle fala sobre 127 Horas: “É um thriller, um drama e não uma reflexão pastoral”
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Ana Maria Bahiana

Estréia amanhã aqui nos EUA  127 Horas, o novo filme de Danny Boyle  que, me  parece, bateu o recorde de O Exorcista em número de pessoas passando mal no cinema (e antes mesmo  de ir para o circuito comercial!).

Seria pena se 127 Horas entrasse na narrativa do cinema apenas como provedor de sustos e horrores – como o filme de William  Friedkin foi, no início. É um belo filme, uma jornada interior traduzida em imagens.

Achei que seria uma boa ocasião para deixar o próprio Danny Boyle falar _ Boyle passou feito um relâmpago por Los Angeles para promover a estréia norte americana de 127 Horas_ e depois, de volta a Londres onde está adiantado o desenvolvimento de mais um Extermínio (desta vez, 28 Months Later, e Boyle, além de produtor, quer pilotar a direção).

AVISO: se você realmente não sabe quem é Aron Ralston e o que aconteceu com ele em maio de 2003 – e que inspirou seu livro Between A Rock and A Hard Place e 127 Horas – você tem duas opções: se informar ou  ler esta entrevista sem entender muito bem o que estamos debatendo (porque, como disse antes, não vou ser eu quem vai contar…)

Você estava trabalhando nesse projeto há muito tempo?

_ Acompanhei o acidente de Aron pela mídia e li o livro dele. Mas foi quando conheci Aron em 2006  que senti que havia um filme ali. Conversei na época com Christian (o produtor Christian Colson, parceiro de Boyle em seus projetos) e ele não concordou. Queria fazer um documentário, e eu sempre quis fazer uma narrativa na primeira pessoa, uma experiência de imersão na jornada interior de Aron _ que, para mim, sempre foi o mais fascinante. Na minha cabeça o que eu queria era estar no canyon com ele, em seus pensamentos, suas alucinações… Escrevi uma sinopse e finalmente convenci Christian. E aí veio o sucesso de Quem Quer Ser Um Milionário e de repente algo que podia ser muito difícil se tornou possível…

Muita gente não teria a mesma visão que você. É um drama tão  individual, tão pessoal, um homem preso no fundo de um canyon…

_ Exatamente, por isso imediatamente eu vi uma narrativa completamente imersiva, em que as pessoas pudessem estar naquele canyon com ele e… sei que parece pretensioso mas.. eu vi que o único modo que a história poderia funcionar seria se o público pudesse, por assim dizer, ajudar Aron a fazer o que ele precisa fazer. Porque de outro modo…. Eu teria multidões saindo correndo do cinema, berrando “isso é insuportável, não consigo ver uma coisa assim!”..

Algumas pessoas estão passando mal mesmo assim…

_ Bom, não dava para não mostrar o momento que, nas palavras do próprio Aron, mudou e redefiniu a vida dele. Eu precisava honrar esse momento, a coragem dele. E não podia ser um segundinho e cortamos para ele fora do canyon. Na realidade ele levou 44 minutos fazendo o que fez. Era fundamental manter essa perspectiva e, mais uma vez, colocar o público junto com ele.

Como você escolheu James Franco para viver Aron Ralston? Fisicamente, não há muita semelhanca, pelo menos à primeira vista..

_ Mas há uma tremenda conexão emocional. James tem um tremendo senso de humor, e uma enorme capacidade dramática. É um espectro de desempenho muito vasto , ele pode nos levar ao drama e ao sofrimento e ao mesmo tempo ser um palhaço, brincar. Quando se passa um tempo com Aron você vê que ele é exatamente assim.

Você é uma pessoa que curte montanhismo, aventura, esportes radicais? A natureza é um grande personagem de 127 Horas.

_ Sou uma pessoa completamente urbana. Simon (Beaufroy, roteirista) é que gosta de escalada e acampamento. E foi por isso que pensei nele em primeiro lugar para fazer o roteiro comigo. Eu acho que, como espécie, nós, humanos, gostamos de estar juntos. Há algo no nosso DNA que nos compele a buscar uns aos outros e por isso estamos em geral aglomerados em cidades. Mas em toda tribo há os outsiders e na nossa, muitas vezes, são pessoas como Aron, que só se sentem realmente felizes sozinhos na natureza, e que, acho, nos desprezam um pouco.  Não pude deixar minha sensibilidade urbana de lado _ filmei 127 Horas com uma linguagem completamente urbana, dinâmica. Para mim é um thriller e um drama pessoal, não uma reflexão pastoral sobre a natureza.

127 Horas estréia dia 18 de fevereiro no Brasil. Volto a esta entrevista, com mais detalhes da produção, nessa época.


Em Hereafter, o além é muito chato
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Ana Maria Bahiana

A primeira pergunta que me ocorreu assim que os créditos de Hereafter/Além da Vida começaram a rolar na tela, ao final do filme, foi: como é possível que dois realizadores deste nível – o roteirista Peter Morgan, o diretor Clint Eastwood- tenham conseguido fazer um filme tão chato? O tema é fascinante, intrigante, emocionante: como as vidas de três pessoas tocadas por experiências de perda e morte podem se entrelaçar num plano que, na realidade, transcende tudo isso. Morgan é o brilhante autor dos roteiros de A Rainha e Frost/Nixon, claramente capaz de controlar uma narrativa e  criar nuances em seus personagens. E Clint é…. Clint (e eu ainda não me conformo com a esnobada que Gran Torino recebeu. Creio que a história vai corrigir isso…)

E no entanto… Hereafter/Além da Vida (que está em cartaz em algumas telas neste fim de semana, expandindo seu circuito sexta que vem; no Brasil, dia 7 de janeiro) começa maravilhosamente bem, recriando com perfeição e intensidade o tsunami que arrasou o Sudeste Asiático em 2004. É ali que a jornalista Marie (Cecile de France) tem seu encontro “além da vida”, momento decisivo que vai levá-la a uma jornada de autoconhecimento. A segunda história que a dobradinha Morgan/Eastwood nos apresenta  já vem com menos embalo : em Londres, dois gêmeos (vividos adoravelmente por gêmeos de verdade, George e Frankie McLaren) são separados em circunstâncias trágicas (e, como Morgan não consegue resistir a um fato histórico, os atentados ao metrô de Londres, em 2005, são incorporados à narrativa mais adiante).

Por fim, conhecemos o médium menos carismático da história da parapsicologia: George (Matt Damon), um sensitivo de extraordinários poderes que abandonou esse tipo de trabalho porque, como ele diz à guisa de explicação, “viver em contato com a morte não é vida.”. George, como interpretado por Damon sob a orientação de Eastwood, é um enigma, mas não dos bons. Seus poderes de contato com o além, quando praticados, não parecem perturbá-lo ou sequer emocioná-lo. É mais fácil acompanhar sua paixão por Charles Dickens do que entender o que deveria ser o coração da história: por que ele se sente tão perturbado/assombrado/desencantado com o seu dom de entrar em contato com os que se foram deste mundo.

Esse tom gelado e monótono impera durante todo o filme, depois que as águas do tsunami recuam. Abordar a possibilidade de vida depois da morte, no cinema, é escolha que pode ir pelo viés do terror, do suspense, do drama e até do romance e da comédia. Mas é algo sempre impactante, que exige e merece nossa atenção. O além de Morgan/ Eastwood não tem emoção alguma.

Fiquei intrigada quando Morgan disse que a inspiração para seu roteiro veio da perda súbita de um amigo e a sensação de vazio que sua morte deixou. É material forte, emocionalmente rico, perfeito para um mergulho profundo. Teria Morgan tentado não se envolver mais com a dor da perda? Ou ele é do tipo de escritor que só consegue se expressar através e a partir de fatos reais?

No final – que aliás, é uma das coisas mais forçadas e previsíveis que já vi no filme de um diretor respeitado – uma única pessoa no cinema aplaudiu. Muita gente se virou para ver quem era a alma penada. “Deve ser da família”, o jornalista ao meu lado comentou.


Sexo, drogas e revolução: o terrorista como rockstar no “Carlos” de Olivier Assayas
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Ana Maria Bahiana

Está no ar esta semana no Sundance Channel a minissérie Carlos, de Olivier Assayas, sensação em Cannes e primeiro lançamento de um belo pacote de projetos de ficção do canal – que inclui Tríplice Fronteira, de José Padilha.

Carlos é um banquete de cinema, não importa em que tela esteja. Como todo banquete – são quase seis horas de duração, divididas em três partes – tem momentos deliciosos e nem tanto, altos e baixos. Poderia ser mais curto, mais concentrado, menos disperso – depois de algum tempo é fácil perder o rumo entre tantos personagens, cidades, países e intrigas políticas. Mesmo assim é uma experiência cinematográfica de imenso vigor e ousadia, uma releitura ao mesmo tempo pensativa e insolente das raízes do drama geopolítico que vivemos hoje. Pensar que algo assim, filmado em oito locações em três continentes, foi possível graças à parceria de duas independentes de TV – o Canal Plus francês e o Sundance norte-americano – dá mais elementos para o debate TV-como-novo-cinema que ocupa as melhores mentes da indústria, hoje.

A comparação com o igualmente vasto Che de Steve Soderbergh é imediata e natural. Ambos focalizam figuras históricas com os mesmos traços – Che Guevara, o argentino apóstolo da luta armada na América Latina nos anos 1960; Ilich Ramirez Sanchez, codinome “Carlos”, o venezuelano responsável, entre 1975  1985, por algumas das mais espetaculares ações terroristas em solo europeu, em nome da Frente Pela Libertação da Palestina.

Mas enquanto o Che Guevara de Soderbergh/Benicio del Toro era um idealista consumido pela paixão de suas ideias, o Carlos de Assayas/Édgar Ramirez é, acima de tudo, um rockstar: vaidoso, temperamental, arrogante, incapaz de resistir às mulheres e à celebridade. Fala muito em seu compromisso com “a luta internacionalista”, “a defesa dos oprimidos”e “a derrota do imperialismo” – mas quase sempre quando quer finalizar uma nova conquista. No primeiro episódio , confessa: “minha religião é o marxismo”. No terceiro, abre uma negociação com “é claro que sou muçulmano”. Jeans, casaco de couro, costeletas, cabeleira, uma boina-Che no auge de sua glória, Carlos vive na estrada, coleciona groupies, exige obediência cega de seus subordinados, cheira cocaína no meio de um sequestro e detesta longos compromissos.

Quando ele diz que quer “criar um novo grupo” é com a mesma animação de quem diria “quero criar uma nova banda”. Cada ação que planeja é coreografada para máximo impacto de mídia, e Carlos apregoa seu nome enquanto dá tiros e faz reféns. Suas trocas de lealdade a sortidos grupos extremistas – as Células Revolucionárias alemãs, o Exército Vermelho japonês, os palestinos, os sírios, os iraquianos, os líbios – são motivadas e executadas como quem troca de gravadora. Carlos acompanha com prazer a cobertura de seus feitos na mídia; em dado momento, sentindo a queda em sua “popularidade”,  coordena uma entrevista exclusiva com um jornalista sírio _ mas quando a matéria publicada não sai como queria, manda matar o pobre repórter.

Assayas enfatiza esse olhar ao rechear a trilha de Carlos com rock dos anos 70-80, não necessariamente contemporâneo a cada data da narrativa, mas extremamente coerente com o espírito da obra: ambos expressam a mesma mistura de raiva e vaidade, desejo de destruição e de sucesso, uma espécie de brilho caótico sonhando, em tese, com uma vida breve e uma morte gloriosa – mas tentando adiá-la ao máximo. É particularmente feliz e dramático o uso de “Dreams Never End”, do New Order, como assinatura musical do personagem Carlos, e as duas canções que encerram os episódios:”El sueno americano” , da banda argentina La Portuaria, nos episódios 1 e 2, e “La pistola y el corazon”, dos angelenos Los Lobos, no episódio final.

Assayas e o co-roteirista Dan Franck dizem ter baseado a minissérie em pesquisa independente, e não nos muitos livros já escritos sobre ou inspirados pela legendária figura, apelidado pela mídia da época de Carlos, O Chacal. Um aviso no início de cada episódio alerta para a natureza fictícia de muitas passagens da história . Assayas está no comando, e seu Carlos é um personagem cuidadosamente calibrado para nos fascinar e repugnar em rápida sequência, muitas vezes ao mesmo tempo.

O fascinante da série, especialmente seus dois primeiros episódios, é seu ritmo impecável, um verdadeiro thriller internacional  com notável controle da narrativa. O terceiro e mais longo episódio é o mais fraco, talvez porque o mundo em que Carlos habita – o universo pós-guerra-fria, onde militantes são antes de tudo fundamentalistas religiosos – seja mais complicado que as claras trincheiras dos 70. No final, Carlos não tem a morte gloriosa com que sonha – apenas esmaece aos poucos, isolado , rancoroso e incompreendido como um rockstar sem plateia.


Como o garoto de Liverpool se transformou em John Lennon: a delicada saga de Nowhere Boy
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Ana Maria Bahiana

Porque hoje é dia 9 de outubro e John Lennon faria 70 anos se sua história não tivesse sido brutalmente interrompida 30 anos atrás achei que seria a hora certa de falar de Nowhere Boy – que estreou aqui neste final de semana e chega ao Brasil, com o título O garoto de Liverpool, dia 3 de dezembro.

Tenho problemas com a maioria das cinebios rock – acho banais, meio com cara de fime-de -TV- pré-HBO, assépticas, sem o pulso vital que  é a essência dessas vidas.  Tanta coisa nessas vidas é  além de imagens. Tanta coisa é intraduzível, ou infinitamente particular, ou misteriosa no modo como foi apropriada e reinterpretada nas vidas menores de todos nós, nas platéias, do outro lado das caixas de som, dos rádios.

Talvez porque a diretora  Sam Taylor Wood tenha nascido em 1967, quando a Beatlemania já tinha passado  de histeria para fenômeno cultural e se fundia com a contracultura, ela tem a distância necessária para compreender John Winston Lennon como o garoto de Liverpool – alguém tão perdido como qualquer garoto pode ser aos 16 anos, tateando na escuridão da adolescência em busca de um rosto, uma identidade, um destino.

Seus parceiros nesta deliciosa jornada cinematográfica são o preciso roteiro  de Matt Greenhalgh (Control) a partir das memórias de Julia Baird, meio-irmã de Lennon; e Aaron Johnson, que encarna John de dentro para fora, de tal forma que é como se sua alma desse forma ao corpo, em princípio não muito semelhante ao verdadeiro personagem (a colaboração foi tão perfeita que Taylor-Wood e Johnson estão juntos até hoje e tiveram uma filha).

O John de Nowhere Boy é o herói inconsciente do mito – ele realmente não sabe quem é e o que faz na Liverpool do pós-guerra, ainda ecoando histórias de bombardeios e pais perdidos em batalhas. A tia Mimi (Kristin Scott Thomas, maravilhosa como sempre) que lhe serve de mãe é a imagem da Grã -Bretanha dos anos 50- estóica, aferrada a códigos de conduta que já não fazem sentido num mundo que em breve será virado do avesso. Julia (Anne Marie Duff, ótima), a verdadeira mãe que ele acha que perdeu é, na verdade, exatamente como ele – solta no mundo, naturalmente charmosa, fã de blues e jazz, irreverente, irresponsável.

Descobrir, quase ao mesmo tempo, que Elvis Presley existe e que  Julia mora, na verdade, a algumas quadras de sua casa  são as epifanias que vão impulsionar o garoto de lugar nenhum para um destino que ele mesmo, a princípio, não consegue nem imaginar – tudo o que ele quer é cabelo gomalinado, jeans justos, andar no teto do ônibus e impressionar as garotas com uma bandinha furreca na festa na igreja.

Um dos elementos mais delicados e precisos de Nowhere Boy é como ele mantém essa inocência do olhar – nada da onisciência que marca tantos filmes do gênero (aquele clima eles-não-sabiam-mas-estavam-destinados-para-a-glória que é  puro truque cinematográfico).  John e seus improvisados discípulos na banda que muda constantemente de nome e direção musical são exatamente como milhares de outros nas décadas que viriam, adolescentes curando a ressaca da embriaguez de viver com o elixir do rock ‘n roll.

Taylor-Wood ancora a realidade de sua história com os pequenos detalhes que, futuramente, serão parte do mito: a bicicleta passando diante do orfanato Strawberry Fields, o ônibus cujo trajeto inclui Penny Lane, o Cavern Club onde a banda sonha tocar, um dia.  O outro encontro que mudaria completamente a jornada do nosso herói – com Paul McCartney na tal quermesse de igreja – é tratado com igual simplicidade. Paul  (Thomas Sangster, preciso) é o pé no chão, pragmático, já enrijecido pela realidade de praticar o que prega, musicalmente. O excelente trabalho dos dois atores sublinha claramente a faísca entre eles, partes iguais de atração e repulsa, admiração e desprezo, cumplicidade e rivalidade. Em suma: Lennon e McCartney. Ou: “John, seu amiguinho está aqui!”, na voz de Mimi/Kristin Scott Thomas).

Taylor-Wood, que começa seu filme com o acorde de abertura de “A Hard Day’s Night” – num sonho, como um eco distante de chamados futuros – termina sua história um minuto antes  do garoto de Liverpool se transformar em John! Lennon!. Há uma conversa na sala, a luz da tarde pela janela, Mimi e sua xícara de chá.  “Qual é mesmo o nome de seu conjunto?”, Mimi pergunta. “Vocês já mudaram tantas vezes…” John não responde.

O resto será o destino.


Só para os fortes: vem aí o cinema-claustrofobia
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Ana Maria Bahiana

Não sei se poderíamos chamar de sub-gênero, mas dois filmes de alta visibilidade que estarão em cartaz en breve nos EUA tem tanto em comum que não resisto a chamá-los de cinema claustrofobia: Buried (Enterrado Vivo), que estreia neste fim de semana (12 de novembro no Brasil) e 127 Hours (127 Horas), que vai para as telas, aqui, dia 5 de novembro (18 de março no Brasil). Um é cem por cento ficção, o outro baseia-se em fatos reais. Ambos são criaturas da produção globalizada de hoje,  co-produções entre estúdios independentes de luxo norte americanos e empresas europeias. Ambos têm um único protagonista em, praticamente, um único cenário, foram dirigidos por europeus- o espanhol Rodrigo Cortés e o inglês Danny Boyle- trabalhando com orçamentos reduzidos e tecnologia de ponta, capaz de suplantar os apertos financeiros com engenho e arte.

Os dois se seguram em fiapos de narrativa, às vezes titubeiam e muitas vezes alcançam  momentos de alto brilho . Mas, mais importante, ambos são muito bons _ embora não aconselháveis para pessoas impressionáveis, como se dizia antigamente.

Enterrado Vivo é meu favorito.  A espoleta da narrativa é tão absoluta que, muitas vezes, parece forçada – mas outros filmes já gastaram muito mais dinheiro e tempo de nossas vidas com muito menos… Paul Conroy (Ryan Reynolds) é um motorista de caminhão trabalhando no Iraque  na entrega de suprimentos. Quando seu comboio é atacado, Paul é nocauteado e acorda num caixão  enterrado em algum ponto da área de conflito, com um celular, um isqueiro e um cantil. Vozes diversas, ao telefone, alternam-se ao longo dos concentrados 90 minutos do filme (o tempo que Paul  tem de oxigênio em seu cativeiro) .  Algumas, ameaçadoras, explicam que ele é um refém cuja libertação custa, em princípio, muitos dólares  (as exigências aumentam com o passar do tempo); outras, indiferentes ou compassivas, vão compondo a reação do mundo da superfície à tragédia de Paul.

O diretor Rodrigo Cortés – que filmou Enterrado Vivo na Espanha pelo ínfimo orçamento de 3 milhões de dólares – mantém o olhar do filme estritamente dentro dos limites do caixão. É um feito que daria orgulho a Alfred Hitchcock e que, para muitas pessoas da plateia, causa acessos muito reais de falta de ar. A espetacular fotografia de Eduard Grau (cujo talento vimos recentemente em A Single Man) explora cada ângulo possível para manter a composição ao mesmo tempo clara e opressiva. E como o roteiro (do americano Chris Sparling) é fictício e define Paul como um civil sofrendo as consequencias da guerra alheia, a conexão com a plateia é muito fácil, ultrapassando posturas políticas e indo direto ao coração humano da trama – e Ryan Reynolds trabalha esses contornos com enorme talento.

127 Horas baseia-se numa história verdadeira : em maio de 2003 o engenheiro civil e  alpinista Aron Ralston, de 28 anos, sofre um acidente num remoto canyon do Utah, e se vê aprisionado no fundo de uma ravina, a mão direita esmagada por uma enorme rocha. Aron sobrevive cinco dias – as 127 horas do título – nessas condições, até , em desespero, sem víveres e sem água, tomar uma decisão excruciante para salvar sua vida. Se você não sabe o que é, não vou contar – basta dizer que é dramático o bastante, no filme, para enviar pessoas mais sensíveis direto para o banheiro.

Boyle faz o que pode para elevar a narrativa acima do desesperador tédio de cinco dias solitários no fundo de um cânyon – Aron (James Franco) monologa, alucina, relembra. Como Boyle e seu co-roteirista Simon Beaufroy estão trabalhando com fatos reais, eles não têm a liberdade de Enterrado Vivo para armar tramas paralelas nos momentos cruciais, de forma a segurar o espectador. O foco precisa se manter inteiramente em Aron – e seu estoicismo, típico de alguém com grande preparo físico e íntimo conhecimento da natureza, muitas vezes parece indiferença ou até mesmo arrogância. Crédito a Boyle e aos DPs Enrique Chediak e Dod Mantle por criarem mini-poemas visuais de intensa beleza pontuando as 127 horas da provação de Aron, e por se recusarem a levar o filme para a apelação. Quando acidente e solução final acontecem, é com a exata simplicidade e até rispidez com que essas coisas realmente têm.

Para espíritos fortes, recomendo ambos.


Let Me In: um remake à altura do original
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Ana Maria Bahiana

Fim de semana interessante na bilheteria. Fiquei feliz ao ver a popularidade de The Social Network, o título número 1 nos EUA com 23 milhões de dólares de bilheteria. Para um filme que é  estudo de personagem, diálogo em alta intensidade e recusa de abraçar os padrões herói/vilão, é uma bem-vinda surpresa.

Fiquei triste, contudo, com o fraco desempenho de Let Me In, a refeitura do cultíssimo sueco Let the Right One In – um traço na bilheteria, com pouco mais que 5 milhões de dólares. Triste porque o filme é ótimo, reverente quanto ao material original, delicadamente adicionando referências que tornam a história enraizada não mais num subúrbio de Estocolmo, mas em Los Alamos, Novo México, nos primeiros anos da década de 1980.

Refeituras, em si mesmas, não são nem boas nem ruins – são apenas mais uma forma de abordar conteúdo pré-existente, como adaptações de livros, graphic novels, séries de TV. É verdade que a grande maioria das refeituras são bobagens colossais – banalizações de algo que fazia todo sentido do mundo na versão original. Mas um bom conceito e uma boa história, com sólida estrutura e personagens completos, pode, sim, ser transplantada de lugar, tempo e referência cultural e se transformar em algo muito interessante. Penso em Carne Trêmula, Os Infiltrados, Sete Homens e um Destino, entre outros.

Let Me In com certeza está nesta nobre lista. Antes de ser diretor no cinema (na TV ele já tinha vasta experiência) Matt Reeves era roteirista, assinando dois títulos excelentes: The Pallbearer, de 1996, e The Yards, de 2000. Ao trazer Let The Right One In da Suécia para o final do inverno no Novo México de 1983 Reeves fez, e primeiro lugar, um admirável trabalho de roteiro, simplificando elementos (que já haviam sido sintetizados pelo próprio autor , John Lindqvist,  no filme original, uma adaptação do  seu bem mais complicado livro) e firmando a tragédia da história em cultura pop, religiosidade e hábitos sociais coerentes com a realidade norte americana na era Reagan.

O elenco é excepcional – com destaque para Chloe Moretz, nova iteração de Jodie Foster,  Kodi Smit-McPhee, vindo de A Estrada, e o sempre ótimo Richard Jenkins, como o guardião da menina. E a trilha de Michael Giacchino tem a dose certa de lirismo e treva que a história exige.

Boas refeituras tem um elemento em comum – ao levar uma história de um meio ambiente para outro, ressaltam o que havia de essencialmente brilhante no material original. A profunda solidão de todos os protagonistas de Let Me In – não apenas as crianças, mas os adultos à sua volta, também – a escuridão de um mundo que fala muito em “bem”  e “mal” mas não consegue definir nem um nem outro iluminam o filme de Matt Reeves como um sol da meia noite bizarramente perdido sobre as mesas do Novo México.