Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : Matt Damon

Quando os humildes herdaram a Terra: todo o poder de Elysium
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Ana Maria Bahiana

A melhor ficção científica não é sobre o futuro: é sobre o presente, e tudo aquilo que nos assusta, angustia, empolga e intriga no presente. Dois alicerces do gênero no cinema – Le Voyage Dans La Lune, de Georges Méliès, 1902, e Metropolis, de Fritz Lang, 1927 -falavam, na aurora do século 20, dos medos do que a muito recente revolução industrial poderia fazer com o planeta e seus habitantes.  Chaminés fumegantes inspiram os cientistas de Voyage Dans La Lune a buscar novos horizontes na Lua. Uma sociedade radicalmente dividida entre  operários oprimidos, vivendo em miséria, e oligarcas opressores, vivendo no luxo, gera uma revolução em Metropolis.

Há um tanto de ambos, Metropolis e Le Voyage Dans La Lune, em Elysium, o arrasa-quarteirão mais inteligente desta (fraquíssima) temporada pipoca.  Porque seu realizador, Neil Blomkamp, não deixa o cérebro na prateleira quando cria, todo o poder do sci-fi, sua capacidade de especular sobre o que estamos vivendo agora, com a liberdade de ver os problemas na distância do futuro, passa, intocado, da tela para a plateia.

Em seu sensacional filme de estreia, Distrito 9, Blomkamp refletia profundamente sobre os conceitos de raça, espécie e a infinita arrogância dos humanos, colocando em nossas mãos um novo tipo de ET – o ET das comunidades carentes, dos marginalizados, dos segregados.

De muitos modos Elysium continua o raciocínio de Distrito 9, adicionando boas doses das ideias dos prioneiros da sci fi. Como em Voyage, a Terra em Elysium é um planeta devastado e, como em Metropolis, quem a herdou foram de fato os humildes _ todos aqueles pobres demais, marginalizados demais para se mudar para o novo paraíso celeste, Elysium, uma espécie de mega-condomínio fechado, exclusivo para ricos e bem nascidos, valsando acima da Terra como uma perversão sinistra da estação espacial de 2001 Uma Odisséia no Espaço, imune a pobreza, violência e doença.

Os melhores achados de Elysium estão em sua abordagem do que foi feito da Terra, pelo microcosmo de Los Angeles. No século 22, LA terá se transformado, dependendo do ponto de vista, numa imensa Tijuana ou num interminável Complexo do Alemão, hiper-poluída, desprovida de serviços  públicos  e controlada ou por um sortimento de gangues e mercenários, ou por robocops que chamam todo mundo de “cidadão” enquanto baixam o sarrafo.

É uma vida em círculos, onde quem tem sorte, como Max (Matt Damon) trabalha , por trocados , em condições precaríssimas, em grandes fábricas de bens de luxo e segurança, ganhando tempo até que alguma trivialidade – um encontro mais brusco ou com os robocops ou com os mercenários, uma doença – ponha um ponto final. Uma das melhores cenas desse primeiro ato envolve Max e um robojuiz, que vai fazer a delícia (ou a agonia) de qualquer pessoa que algum dia teve que resolver um caso complicado com um burocrata.

Sobre esse inferno terrestre paira Elysium, acessível apenas aos seus cidadãos, e governado com elegante mão de ferro por uma Jodie Foster em seu melhor modo vilanesco,bebendo champanhe e falando francês enquanto ordena ataques mortais a dezenas de pessoas, à distância e sem elevar o tom de voz.

Eu só lamentaria uma coisa, mas ao mesmo tempo compreendo o que aconteceu. Enquanto Distrito 9 deixava que os personagens contassem a história – e nós nos envolvíamos a partir do que íamos descobrindo sobre eles – Elysium, a partir do meio, apoia-se no velho modelo das repetidas cenas de ação e enfrentamento para tocar a narrativa.

Mas eu entendo: ao contrário de Distrito 9, este é um filme de grande orçamento, com grandes expectativas de um grande estúdio – a Sony – que teve uma temporada pipoca atribulada. Posso imaginar perfeitamente o quanto de interferência o roteiro original sofreu para incluir “mais efeitos!”, “mais ação!”, “mais perseguições!”, “mais explosões!”.

 

A presença de Alice Braga e Wagner Moura num ótimo elenco multicultural que inclui também Diego Luna e  Sharlto Copley merece uma conversa à parte. Ambos estão excelentes e tenho certeza de que, bem administrada, essa exposição pode ser um salto quântico em suas já luminosas carreiras. Eu espero apenas que Alice faça, em breve, um papel num grande projeto internacional onde ela não seja a boa moça em perigo. Sei, sabemos, que ela é capaz de muito, muito mais. Wagner criou seu líder bandido Spider com impressionante presença e fisicalidade _ agora é só esperar as próximas ofertas (e escolher bem).

Elysium estreia aqui nesta sexta feira, dia 9, e no Brasil dia 20 de setembro.


O adeus de Soderbergh: sexo, mentiras e um candelabro
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Ana Maria Bahiana

Revi recentemente Sexo, Mentiras e Videotape, o filme que , em 1989, apresentou Steve Soderbergh ao mundo e, praticamente sozinho, reviveu o cinema independente norte-americano. Foi um acaso feliz: no momento em que,  28 anos e 36 títulos depois, Soderbergh anuncia que vai se aposentar, senão do cinema, pelo menos do “cinema narrativo” (palavras dele), foi importante voltar onde tudo começou e ter, com uma perspectiva nova, um olhar sobre o olhar soderberghiano.

Eis o que aprendi: dividido entre ter fé e desprezar o ser humano, Soderbergh usa sua câmera como uma mistura de telescópio e microscópio, procurando sinais distantes ou mínimos que comprovem um ou outro sentimento. A conexão sueca (Soderbergh, nascido em Atlanta, é de família sueca, e fala o idioma com certa facilidade) me traz à cabeça o nome “Bergman”, mas vou parar por aqui, porque a equivalência areia=caminhão ainda está desequilibrada.

Digo isto: Bergman e Soderbergh são realizadores filosóficos. Andariam pelas colinas com uma lanterna procurando o Homem Justo, se fossem Diógenes e vivessem na Grécia antiga. Em vez disso, andam pelo mundo com a lanterna mágica de suas câmeras- no caso de Soderbergh, literalmente, já que em quase todos os seus filmes ele é seu próprio diretor de fotografia.

Há muito sexo e mentiras nos dois filmes que marcam o “adeus” de Soderbergh, Terapia de Risco (Side Effects) e Behind the Candelabra.  Sexo e mentiras são constantes na filmografia soderberghiana, as duas moedas correntes com que mulheres e homens negociam, arriscam e apostam suas vidas.

Trabalhando com um roteiro de seu colaborador de fé, Scott Z. Burns (Traffic, Contágio, O Desinformante!), Terapia é construído como um thriller psicológico à moda antiga, meio Hitchcock , meio drama político dos anos 1970. A trama em si _ moça (Rooney Mara) começa a apresentar estranhos e perigosos efeitos colaterais depois de medicada com um novo antidepressivo prescrito por seu psiquiatra (Jude Law) _ é quase um artifício para Soderbergh fazer o que mais ama: trabalhar com seus atores nas muitas camadas de verdade e mentira, afeição e manipulação com que todos os personagens tratam-se uns aos outros.

Não é à toa que os atores disputam a tapa a oportunidade de trabalhar com Soderbergh: mesmo em seu modo mais light, como na franquia 11 Homens, ele é um mestre na sutil colaboração entre rosto, corpo, luz e câmera, incentivando, compreendendo e captando o modo como o desempenho do ator conta a verdadeira história: a história atrás da história, escondida nas palavras do roteiro.

Com a possível exceção de Che e talvez Erin Brockovich, Soderbergh tende a descrer do idealismo puro e simples. Sua atração por histórias de golpes, traições, vidas duplas (Romance Perigoso, O Estranho, Traffic, O Desinformante!, O Segredo de Berlim, À Toda Prova , a franquia 11 Homens, até mesmo Contágio) confirma que ele duvida muito que os humanos façam jornadas firmes e retas na direção dos seus objetivos. Ou, mesmo que o façam, talvez não tenham a menor ideia dos verdadeiros impulsos que os estão empurrando.

É esse trabalho que ele tece com seus atores e que, com sua câmera altamente inteligente e sensível, capta com todo rigor.

 Terapia de Risco é a história dos efeitos colaterais causados pelas mentiras que contamos a nós mesmos. Behind the Candelabra, que, oficialmente, é o canto do cisne de Soderbergh, aprofunda essa indagação de forma vertiginosa. Seu exterior de excessos, ouros, peles, plumas e paetês (execução maravilhosa da direção de arte de outro colaborador constante de Soderbergh, Howard Cummings) é essencial para enquadrar o drama que se passa no interior de seus protagonistas: Liberace (Michael Douglas), o pianista superstar, artista mais bem pago das décadas de 1950, 60 e 70, e Scott (Matt Damon), o garoto que rapidamente evolui de seu fã para namorado/assistente/motorista/objeto de cena.

A natureza sinistra, predatória, vampiresca, do relacionamento entre Liberace e Scott não é de modo algum restrita a casais gay, muito pelo contrário: o roteiro perfeito de Richard LaGravenese, a maestria de Soderbergh e o talento de todo o elenco deixam claro que se trata de um drama sobre o inevitável cabo-de-guerra de poder em qualquer relacionamento a dois.  Quem está usando quem? Quem é realmente o forte, quem é realmente o fraco? Quem domina, quem permite ser dominado? Quem compra, quem vende? E sobretudo: por que?

Baseado na autobiografia do mesmo nome de Scott Thorson, que teve um relacionamento intenso e secreto com Liberace entre 1977 e 1981, o filme se recusa a tomar partido nessa discussão, evitando a armadilha fácil de caracterizar Liberace como o predador eternamente emboscando jovens presas descartáveis e Scott como sua vítima inocente. Ambos são apresentados como homens complexos, com mais coisas em comum do que podem suspeitar ou admitir: famílias partidas, uma insaciável sede de aceitação e amor e um pavor paralisante de ser rejeitado e abandonado. Há uma forma muito especial de egoísmo que se desenvolve alimentado por esse tipo de fratura interior, e o filme de Soderbergh é absolutamente preciso em captá-lo.

Há algo naturalmente arriscado quando se coloca um drama dessas proporções (ou seria uma divina comédia?)  no ambiente de Las Vegas dos anos 1970, ainda mais no habitat de um popstar perto de quem Elton John e Lady Gaga são figuras discretas. O flerte com o ridículo está sempre presente em Candelabra, ampliando o drama humano e dando um gume de risco que  Douglas e Damon, em especial, surfam com a habilidade de mestres.

Além de todos esses temas Candelabra oferece mais alguns: uma discussão da ideia de masculinidade, e um olhar sobre um tempo em que ser gay era visto como algo pior que a lepra na Idade Média, capaz de sepultar a mais fulgurante das carreiras. O quanto o segredo _ e o medo e o poder que vêm  com o segredo _informa o comportamento amoroso dos dois? E seria possível que, mesmo na mais bizarra e doentia das circunstâncias, o amor realmente se dê entre eles?

 Behind the Candelabra começa com “I Feel Love”, de Donna Summer, e termina com “The Impossible Dream”, interpretado por Michael Douglas como Liberace. Entre uma e outra ideia, entre uma e outra canção, esconde-se a resposta.

 Terapia de Risco está disponível em DVD/BluRay nos Estados Unidos, e em cartaz no Brasil. Behind the Candelabra está no festival de Cannes e estreia domingo dia 26 na HBO, nos Estados Unidos.

 


Cannes 2013: a minha lista
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Ana Maria Bahiana

Embora Cannes tenha se tornado uma proposta financeiramente inviável para mim, todo ano sigo com maior interesse o que se passa na Croisette e arredores. Durante mais de 10 anos deixei sangue, suor e lágrimas entre o Palais e o Hotel du Cap, e tive algumas das mais maravilhosas experiências cinematográficas  da minha vida (combinadas com alguns dos momentos mais surreais, fora das salas de exibição…)

Mas estou sempre de olho em Cannes, por vários motivos. Um deles é porque dali saem sempre títulos que vão longe, marcando, influenciando e, ocasionalmente, acumulando prêmios pelo mundo afora. Os prêmios podem ser a parte mais visível (alô, O Artista!) mas o mais importante é como esses filmes dialogam com plateias e realizadores pelo mundo afora, a partir do impulso em Cannes.

Estes são os que estou acompanhando este ano:

Only God Forgives (em competição, Nicolas Widing Refn) Estou exagerando quando digo que Refn e o britânico Steve McQueen são dois dos realizadores mais interessantes neste momento? Vejo em ambos uma nova abordagem da violência que foge da noção de entretenimento e espetáculo e vai fundo nas causas e consequencias de atos que infelizmente nos acostumamos a ver como banais. Ryan Gosling como um traficante no submundo de Bangkok me interessa, também.

The Bling Ring (Un Certain Regard, Sofia Coppola) O caso foi manchete aqui em LA entre outubro de 2008 e agosto de 2009 _ casas de celebridades estavam sendo invadidas e roubadas. Quando finalmente os responsáveis foram apreendidos – depois de roubar 50 mansões e mais de três milhões de dólares – veio a surpresa maior: eram todos adolescentes ricos e mimados de um condomínio fechado numa região caríssima da cidade.  Há uma oprtunidade enorme, aqui, para Sofia Coppola exercitar sua sensibilidade em comentário social e seu mordaz senso de humor.

 

Soshite Chichi Ni Naru (em competição, Hirokaru Kore-eda) Sou fã de Kore-eda desde Além da Vida, um filme que me comoveu profundamente. Sua preocupação com a natureza humana e os laços de família estão todos aqui, na história de um homem de negócios ambicioso que descobre que o filho que criou não era, de fato, seu filho.

 

Inside Llewyn Davis (em competição, Joel e Ethan Coen) Mergulhar fundo e recriar micro-universos e subculturas – vagabundos profissionais em LA, família judaicas dos subúbrios, moradores de pequenas cidades do meio oeste- é algo que os irmãos Coen fazem como poucos. Neste caso, o microcosmo é a cena folk de Nova York nos anos 1960 e o elenco tem Carey Mulligan, Justin Timberlake e John Goodman. Já me interessei.

Le Passé (em competição, Asgar Farhadi) Para todo mundo (eu, inclusive) que queria saber o que Farhadi faria depois da perfeição de A Separação, esta é a resposta: um drama romântico em Paris, em Berenice Bejo (de O Artista) e  Tahar Rahim (Un Prophète). Pra mim já basta…

Behind the Candelabra (em competição, Steve Soderbergh) O fato deste ser, na verdade, um filme feito para TV já diz muita coisa sobre o nível da produção de TV, especialmente da TV por assinatura. Este também é o último filme de Sodebergh, pelo menos por algum tempo (se formos acreditar nas promessas dele de se aposentar da “narrativa formal”). Como se sabe, é a história do estranho amor entre Liberace (Michael Douglas), pianista e astro de Las Vegas, e seu motorista muito mais jovem, Scott (Matt Damon). Precisa dizer mais?

Nebraska (em competição, Alexander Payne) Como seus companheiros de geração, Alexander Payne tem a precisão do olhar necessária para compreender e compartilhar o universo individual de cada personagem e a sociedade à sua volta. Aqui, ele centra sua história num tema recorrente nesta safra de Cannes, a relação entre pais e filhos,mais especificamente um pai alcóolatra e o filho que ele perdeu de vista. E o elenco de Bob Odenkirk, o “Saul” de Breaking Bad!!!

 

All is Lost (fora de competição, J. C. Chandor) Li este roteiro muito cedo no processo de criação deste filme e quase me envolvi com ele. Fiquei absolutamente intrigada: a história tem apenas um personagem, um homem do lado de lá da meia idade, sobrevudendo a um naufrágio em alto mar, e não tem diálogo. Não, não é nem As Aventuras de Pi nem Náufrago, mas é uma pequena gema de estrutura e composição. Quero muito saber o que aconteceu com ele, agora que Robert Redford é o homem e Chandor (Margin Call) é o diretor…


O mundo dos animais: Steven Spielberg e Cameron Crowe em busca do coração selvagem
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Ana Maria Bahiana

Se era preciso mais prova de que a safra 2011 do cinema tem saudade de sua infância e adolescência, Cavalo de Guerra, de Steven Spielberg (dia 25 de dezembro nos EUA, 6 de janeiro no Brasil) e Compramos um zoológico, de Cameron Crowe (23 de dezembro nos EUA e Brasil) seriam a prova final. Em ambos, seus realizadores buscam um estado de pureza, uma inocência desprovida do cinismo e amargura dos nossos tempos, apostam no potencial para nobreza e  coragem da natureza humana e usam animais como metáforas daquilo que ainda é possível salvar na humanidade.

Cameron Crowe é um diretor/roteirista com tanta fé no ser humano que seus filmes muitas vezes são tidos como “ingênuos”. É um risco que ele prefere correr para se manter fiel  a si mesmo e a uma linhagem de outros otimistas que o influenciaram e que ele admira : Frank Capra, Billy Wilder, François Truffaut. Seres humanos fazem muita besteira, os filmes de Crowe dizem (ecoando o espírito de seus ídolos) mas tem em si mesmos a capacidade de fazer por merecer sua redenção.

Em Compramos um zoológico – paráfrase de uma história verdadeira acontecida na Grã Bretanha – o herói improvável é o jovem viúvo Benjamin (Matt Damon), e o risco que ele decide correr é, como o título diz, comprar um parque zoológico decadente e ameaçado de fechar.

Benjamin e seus filhos (Colin Ford e Maggie Elizabeth Jones) ainda não se recuperaram inteiramente da morte da esposa e mãe, com a vida diária atropelando, em sua implacável rotina, os sentimentos profundíssimos de dor e perda irreparável de toda a familia. Lançar-se de corpo inteiro num projeto que parece completamente absurdo parece, num primeiro momento, uma dose gigante de anestésico. Mas o ritmo pausado da vida longe da cidade e a realidade de lidar diretamente com a natureza e a vida em estado puro, através dos animais do zoo, tem o efeito oposto : a perda absoluta se torna completamente real, para todos. E fazer as pazes com ela torna-se a única opção.

É um riff em cima de Momento Inesquecível, o filme de Bill Forsyth de 1983 que Cameron usou para guiar a interpretação de Damon. Nele, um executivo da indústria de petróleo encontra a si mesmo, sua consciência e a possibilidade da magia ao se ver num vilarejo remoto da costa da Escócia, sem nenhum dos artifícios de sua vida anterior.  Aqui, Benjamin e sua familia estão diante da vida em estado bruto, sem distração alguma que os separe de decisões realmente elementares e fatais.

Crowe povoa o zoo com  animais que espelham as emoções da familia e um grupo de figuras levemente excêntricas – entre elas sua própria mãe e Patrick Fugit, de Quase Famosos, sem muito o que fazer além de andar com um macaco no ombro. E dá ao Benjamin de Matt Damon um interesse romântico que não existiu na história real, e que se torna absolutamente irresistível na pessoa de Scarlett Johansson.

Como um show dos Rolling Stones, todo o filme parece estar sempre a um breve passo do caos, neste caso um caldeirão de melaço capaz de por o espectador em coma hiperglicêmica. E, como os melhores shows dos Stones, ele resvala pela borda do abismo sem cair nele , desafio que o próprio Crowe se impõe, quem sabe como exercício para  provar seus próprios “20 segundos de coragem absurda”, a frase-chave de Zoológico. Neste caso, a coragem de sentir plenamente, sem ironia e sem sarcasmo, correndo todos os belos riscos de um coração vivo e aberto.

Cavalo de Guerra ecoa outro tipo de filme, o épico em grande escala de David Lean e John Ford, e de certa forma o mesmo tema – a coragem e a possibilidade do coração aberto. Mas enquanto Zoológico é uma peça de câmara, Cavalo de Guerra é uma sinfonia para grande orquestra, com harpa e tudo.

Não é figura de linguagem: os primeiros 15 minutos de Cavalo de Guerra são apenas música – a maravilhosa trilha de John Williams – e a paisagem de Devon, na Grã Bretanha, contando a história do nascimento do potrinho que será herói de guerra.

É o primeiro toque para a espectadora/especetador do que realmente importa no filme: o cavalo e a terra. Os humanos, diminutos em suas batalhas entre si, seus planos de glória, sua crueldade, sua arrogância, são engolfados por algo mais antigo e maior que eles algo que, novamente, fala diretamente sobre o pulsar essencial da vida.

São os humanos que tomam as decisões da vida do potro alazão e lhe dão vários nomes ao longo da história (e é interpretado por vários cavalos, mas menos do que o costume em filmes assim; Spielberg queria “manter a personalidade individual” do personagem equino). Mas nenhum desses humanos é o protagonista desta história: a verdadeira coragem, o verdadeiro grande coração, são do cavalo, inexplicáveis e absolutos como são as coisas na natureza selvagem.  O que os humanos podem esperar – e o que acontece, episódicamente, ao longo do filme – é que tenham a graça de serem tocados por essa energia.

Como Crowe, mas numa escala maior, Spielberg é frequentemente acusado de sentimentalismo e de uma filmografia menor, inconsequente. São acusações das quais não compartilho e que são brilhantemente desmontadas por uma recente série de ensaios visuais do site Indiewire. Suspeito que uma grande parte desta cisma é que Spielberg, de novo como Crowe, recusa-se a ser cínico e a tratar emoções e sentimentos como coisas irônicas e triviais. Ele é essencialmente um humanista, correndo os riscos do que isso quer dizer numa sociedade fraturada.

Usando a espetacular fotografia de seu parceiro, o mestre Janusz Kaminski, Spielberg deixa a história do livro de Michael Morpurgo respirar em amplos espaços, grandes movimentos de câmera. É um filme gloriosamente à moda antiga, com efeitos reduzidos a um mínimo essencial, e que exige que a espectadora/espectador se entregue a ele sem reservas.

E, no final, a aventura vale a pena.


É o fim do mundo como o conhecemos: vamos filmar
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Ana Maria Bahiana

Estamos todos com medo _ o presente é assustador, o futuro é incerto e instituições que tínhamos como excelentes, operantes e praticamente infalíveis estão desabando diante de nossos olhos, tais e quais aquelas duas torres altivas e belas, na Nova York de 2001.

Esta parece a soma de todos os medos como interpretada e recriada pelo cinema norte americano, nestes últimos anos. E pode muito bem ser um dos grandes temas desta recém- iniciada temporada-ouro que, suspeito, vai realmente pegar embalo com a estreia de J.Edgar no início de novembro, se Clint Eastwood e Dustin Lance Black cumprirem suas promessas de virar pelo avesso uma figura icônica e sua querida instituição intocável, o FBI.

Dois filmes em cartaz neste fim de semana nos EUA continuam essa narrativa de apreensões.

Dirigido por Steve Soderbergh – em seu modo não-autoral – a partir de um roteiro original (e muito bem pesquisado)  de Scott Z. Burns, Contágio (Contagion, 2011) é um competente exemplar do thriller-epidêmico, no qual cientistas substituem detetives e policiais em busca de um assassino em série poderoso, terrível e invisível a olho nu. É um sub-gênero que tem antecedentes tão distantes quanto o noir The Killer That Stalked New York, de 1950, ou O Enigma de Andrômeda (The Andromeda Strain), de 1971; e, mais recentemente, Epidemia (Outbreak, de 1995).

Como Soderbergh é Soderbergh, seu prestígio arregimentou um elenco de estrelas para compor o mandatório time de vítimas e  investigadores – Matt Damon, Gwyneth Paltrow, Kate Winslet, Jude Law, Laurence Fishburne, Marion Cotillard. E como os tempos são os atuais, voltou sua atenção menos ao vírus e a seus caçadores e mais ao gradual e violento desmantelar da sociedade, ao longo de um mês, enquanto a doença progride, muda, sobrecarrega hospitais, gera paranóia, greves, vandalismo.

Porque o vírus se propaga pelo toque – e porque vivemos numa era em que as pessoas mais e mais se isolam atrás de seus celulares, tabletes e computadores – Soderbergh volta seu olhar, insistentemente, para os pequenos gestos  que nossas mãos fazem o dia todo, sem que percebamos _ a ânsia ancestral por contato, atrofiada numa sociedade em crise.

São elementos assim, mais que qualquer outra coisa, que tornam Contágio interessante. Não é bem, como seus antecessores, uma luta-contra-o-tempo para salvar o mundo – tempo e vírus são inexoráveis, aqui, como seriam na vida real, é o que o roteiro de Burns nos diz- mas uma observação de nossa fragilidade como sociedade, confiantes em forças que, talvez, sejam mais vulneráveis do que pensamos.

E ainda não sei porque Contágio está sendo exibido, pelo menos aqui nos EUA, em IMAX. A não ser para quem queira muito ver uma autópsia de Gwyneth Paltrow numa tela de 22 metros de altura…

Contágio está em cartaz nos EUA e estreia no Brasil dia 28 de outubro.

Em Tudo pelo Poder (The Ides of March, 2011) são as instituições políticas que estão em risco, ameaçadas não por um micro-organismo daninho, mas por nossa próprias fraquezas.

Diretor , produtor e coadjuvante do seu projeto, George Clooney também é co-roteirista, adaptando com Grant Heslov (com quem ele já havia trabalhado em O Amor Não tem Regras) a peça Farragut North, de Beau Willimon, sobre o jovem e entusiasmado assessor  de um candidato a candidato a presidente dos EUA, e sua penosa curva de aprendizado.

Clooney pegou para si papel do candidato, Mike Morris, um governador estadual do partido Democrata, carismático, progressista e bonitão. Stephen Moyers, o  inocente em treinamento, é Ryan Gosling, mais uma vez dando um show de interpretação inteligente, bem pensada. Outros grandes atores completam o elenco: Philip Seyour Hoffman como o coordenador da campanha de Morris, Paul Giamatti como seu correspondente no campo do oponente, Jeffrey Wright como o senador republicano cujo apoio pode fazer a diferença na corrida para a Casa Branca, Marisa Tomei como a jornalista durona, incansável na busca de uma boa matéria, Evan Rachel Wood como a estagiária bonita e ambiciosa.

O genial de Tudo pelo Poder – além de como Clooney expandiu  a peça a ponto de parecer impossível que a trama possa ser contada num palco – é que, politicamente, tanto Morris quanto Moyers, seu aprendiz de feiticeiro, são inatacáveis. Um candidato a candidato, dizendo o que Morris diz, com a convicção com que ele diz, seria a salvação para uma América em crise _ e a fé de seu pupilo é verdadeira e íntegra.

Não são os princípios ideológicos que abalam suas estruturas _ são fraquezas humanas tão antigas quanto o tempo, desejos inscritos em livros muito anteriores à Constituição dos Estados Unidos, único documento no qual Morris diz ter fé (na sensacional cena de abertura, Moyers repete este credo ; é esta cena, em super close, que serve de tema ao filme, repetida depois, muito, muito diferente, no final).

É um belo filme, especialmente alvissareiro  depois do decepcionante O Amor Não Tem Regras.

Tudo pelo Poder estreia nesta sexta feira nos EUA e estréia no Brasil dia 23 de dezembro.


Em Hereafter, o além é muito chato
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Ana Maria Bahiana

A primeira pergunta que me ocorreu assim que os créditos de Hereafter/Além da Vida começaram a rolar na tela, ao final do filme, foi: como é possível que dois realizadores deste nível – o roteirista Peter Morgan, o diretor Clint Eastwood- tenham conseguido fazer um filme tão chato? O tema é fascinante, intrigante, emocionante: como as vidas de três pessoas tocadas por experiências de perda e morte podem se entrelaçar num plano que, na realidade, transcende tudo isso. Morgan é o brilhante autor dos roteiros de A Rainha e Frost/Nixon, claramente capaz de controlar uma narrativa e  criar nuances em seus personagens. E Clint é…. Clint (e eu ainda não me conformo com a esnobada que Gran Torino recebeu. Creio que a história vai corrigir isso…)

E no entanto… Hereafter/Além da Vida (que está em cartaz em algumas telas neste fim de semana, expandindo seu circuito sexta que vem; no Brasil, dia 7 de janeiro) começa maravilhosamente bem, recriando com perfeição e intensidade o tsunami que arrasou o Sudeste Asiático em 2004. É ali que a jornalista Marie (Cecile de France) tem seu encontro “além da vida”, momento decisivo que vai levá-la a uma jornada de autoconhecimento. A segunda história que a dobradinha Morgan/Eastwood nos apresenta  já vem com menos embalo : em Londres, dois gêmeos (vividos adoravelmente por gêmeos de verdade, George e Frankie McLaren) são separados em circunstâncias trágicas (e, como Morgan não consegue resistir a um fato histórico, os atentados ao metrô de Londres, em 2005, são incorporados à narrativa mais adiante).

Por fim, conhecemos o médium menos carismático da história da parapsicologia: George (Matt Damon), um sensitivo de extraordinários poderes que abandonou esse tipo de trabalho porque, como ele diz à guisa de explicação, “viver em contato com a morte não é vida.”. George, como interpretado por Damon sob a orientação de Eastwood, é um enigma, mas não dos bons. Seus poderes de contato com o além, quando praticados, não parecem perturbá-lo ou sequer emocioná-lo. É mais fácil acompanhar sua paixão por Charles Dickens do que entender o que deveria ser o coração da história: por que ele se sente tão perturbado/assombrado/desencantado com o seu dom de entrar em contato com os que se foram deste mundo.

Esse tom gelado e monótono impera durante todo o filme, depois que as águas do tsunami recuam. Abordar a possibilidade de vida depois da morte, no cinema, é escolha que pode ir pelo viés do terror, do suspense, do drama e até do romance e da comédia. Mas é algo sempre impactante, que exige e merece nossa atenção. O além de Morgan/ Eastwood não tem emoção alguma.

Fiquei intrigada quando Morgan disse que a inspiração para seu roteiro veio da perda súbita de um amigo e a sensação de vazio que sua morte deixou. É material forte, emocionalmente rico, perfeito para um mergulho profundo. Teria Morgan tentado não se envolver mais com a dor da perda? Ou ele é do tipo de escritor que só consegue se expressar através e a partir de fatos reais?

No final – que aliás, é uma das coisas mais forçadas e previsíveis que já vi no filme de um diretor respeitado – uma única pessoa no cinema aplaudiu. Muita gente se virou para ver quem era a alma penada. “Deve ser da família”, o jornalista ao meu lado comentou.


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