Blog da Ana Maria Bahiana

Categoria : Estreias

A esperança brota, eterna, no novo filme de Meryl Streep
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Ana Maria Bahiana

Numa temporada em que tudo tem uma dimensão gigantesca, e cada lançamento parece querer derrubar o outro numa espécie de olimpíada do ruído, movimento, número de personagens, tiros e explosões, é um prazer estranho e delicioso ver um filme pequeno em todos os sentidos. Deliberadamente pequeno, como um concerto de música de câmara diante de uma sinfonia para coral e orquestra, um solo de violão versus um duelo de guitarras heavy metal.

Foi assim que me senti quando acabei de ver Um Divã Para Dois (Hope Springs, estreando hoje nos EUA e dia 17 no Brasil), uma iluminura de filme em tom menor, um concerto a oito mãos para três atores excelentes – Mery Streep, Tommy Lee Jones, Steve Carell- e o diretor David Frankel, trabalhando com uma partitura simples e perfeita de Vanessa Taylor, estreando no cinema depois de uma bela carreira na TV (Game of Thrones, Alias).

Fellini, Coppola e Chris Nolan sempre disseram que metade  -ou mais que isso- do trabalho de criação de um filme está na escolha do elenco. Este filme é uma prova eloquente disso : uma derrapagem na escolha desse trio e talvez o delicado roteiro de Taylor se transformaria em algo possivelmente sem graça. Porque toda a ação desse Divã se resume basicamente a quatro locações: a casa do casal Kay e Arnold (Streep e Jones), equipada com todos os confortos modernos mas vazia de filhos e emoções mais fortes que uma partida de golfe na TV gigantesca; o consultório do terapeuta Dr. Feld (Carell), ensolarado e, significativamente, caseiro; a boutique “para senhoras” onde Kay trabalha como vendedora; e o quarto de hotel, asséptico e indiferente, onde o casal se hospeda enquanto tenta, com a ajuda do psicólogo, reacender a chama do seu casamento de mais de três décadas.

E a história também se resume ao que se passa nesses poucos ambientes: um casal assentado confortavelmente em sua rotina de cuidadosa indiferença é acordado por uma incontrolável onda de desejo da mulher, Kay. Porque quem vive Kay é Meryl Streep, aprendemos logo , sem que ela diga coisa alguma, que esse mar de paixão não é um fenômeno recente mas vem, subterrâneo, há meses, anos, batendo contra os rochedos de um marido que fez da rotina sua defesa e seu castelo. Dois minutos de Meryl/Kay diante do espelho, logo na abertura no filme, nos contam mais sobre o mundo interior da personagem e as batalhas emocionais que teve que enfrentar, perder e negociar do que muitas linhas de diálogo interpretadas por atrizes de outro escalão. Essa onda do desejo e da esperança sacode a relação até as fundações _  cabe ao paciente e legitimamente interessado Dr. Feld propor  as saídas para o impasse – que, assustadoramente, incluem derrubar as estudadas defesas de Arnold.

Frankel é um diretor de rara sensibilidade, que fez de O Diabo Veste Prada um filme muito mais inteligente do que era preciso. Com este material mais sutil ele mostra o quanto compreende o ritmo da dramaturgia cinematográfica, o vai e vem das interações entre os atores, as pausas e os momentos mudos mas intensos de que grandes intérpretes são capazes. E, devo acrescentar, Jones e Carell estão absolutamente perfeitos em seus papéis, Jones olhando o mundo pelo visor estreito da armadura que construiu com tanto cuidado, Carell com uma mistura bem equilibrada de compaixão, rigor e entusiasmo. Há coisas hilariantes, há coisas comoventes, mas sobretudo há uma humanidade triunfante e sincera neste pequeno, delicioso filme.

E embora eu compreenda a necessidade da tradução brasileira, eu queria compartilhar com vocês o poema de Alexander Pope que inspirou o nome da cidadezinha fictícia – Hope Springs- que dá o título original do filme: “A esperança brota, eterna, no animal humano/ o homem nunca é mas sempre será abençoado/a alma, inquieta e confinada em sua casa/ repousa e se expatria numa vida que ainda virá.”

E este, amigas e amigos, é o tema desta obra-contraponto ao ruído dos acordes finais da temporada-pipoca.

 

 


Quando a força irresistível abraça o objeto imutável : a jornada do Cavaleiro das Trevas chega ao fim
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Ana Maria Bahiana

Atenção: todo cuidado foi tomado para evitar qualquer informação prejudicial à plena apreciação do filme. Mas se você é muito sensível a SPOILER, leia depois de ver.

 

“Coloque tudo o que você tem de melhor no terceiro ato. É isso que o público recorda mais.” – Billy Wilder

Para começar, pensem num Herói primordial. Hércules (ou Héracles, para os gregos), por exemplo. Nascido do mais poderoso dos deuses, Zeus, e uma bela humana, Alcmena, sua vida é, em essência, uma longa batalha contra as forças do caos, em defesa da frágil civilização dos humanos. Pensem em como ele, como todos os Heróis de nosso arsenal mitológico, funde o humano e o divino, ou seja, o  imortal, destinado ao Olimpo e a séculos e séculos em nossa memória, através de histórias, livros e, é claro, muitos filmes B italianos.

Não sei se Christopher e Jonathan Nolan releram seus livros de colégio sobre mitologia grega enquanto escreviam o ato final de sua trilogia Batman. Mas há uma distinta possibilidade de que isso tenha acontecido. Porque o que distingue a abordagem de Nolan da de seus colegas, em se tratando de super-heróis, é sua capacidade de ver, neles, o poder do mito _ a história básica, essencial, antiga como o cérebro humano, atrás da superfície pop da hq.

Seu desafio, em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, era encontrar um ato final digno da origem e da jornada  do herói. Entre muitas possibilidades, Hércules era um bom template _ como ele, Bruce Wayne é um humano nascido em berço esplêndido, protegendo a frágil civilização de Gotham City contra os monstros do caos. O fogo divino que torna possível suas proezas é o legado supremo de Prometeu: a tecnologia. E há em ambos uma atração pelo perigo que se aproxima do suicida.

Digo logo porque sei que muita gente está aturando esta conversa de mitologia clássica só para saber se ela chega aqui: sim, vale super a pena ver O Cavaleiro das Trevas Ressurge; não, ele não decepciona em nada os fãs da trilogia. O que já é dizer muito considerando a fraqueza crônica dos terceiros filmes de franquias …(com a brilhante exceção de O Retorno do Rei, um filme que, Nolan disse, estava “na nossa – dele e do irmão Jonathan – mente o tempo todo enquanto pensávamos este filme”).

O principal reparo que eu faria  é que Ressurge sofre de um problema comum nos  filmes de Nolan: excesso de história. Há tanta coisa jogada na tela nos dois primeiros atos – a conspiração de Bane, as intrigas políticas de Gotham City oito anos depois da morte de Harvey Dent , da queda de Batman e da destruição do Bat-Sinal, o estado das coisas na mansão e na sede do conglomerado Wayne – que só resta a Nolan uma solução: resolver tudo a toda velocidade no terceiro ato, usando um monte de diálogo explicativo (o que no jargão do ofício se chama “exposição”).

É, infelizmente, a solução menos sutil a que um realizador pode recorrer.  Mas a ambição e competência de Nolan são tamanhas que perdôo tudo. Por que reclamar? Todas as atuações são igualmente excelentes, da linguagem corporal com que Tom Hardy – incapacitado de usar o rosto como instrumento dramático – desenha o poder, o carisma e a absoluta devoção ao caos de Bane (“eu sou o mal. O mal necessário.”) a um tipo de atuação mais introspectiva e variada do que já vi Anne Hathaway fazer até agora, numa Selina que é uma parte Modesty Blaise (googleiem, leitores), duas partes todas as heroínas sofisticadas do cinema dos anos 1940. E prestem atenção ao colar de pérolas (alô, Édipo?).

Nolan usou a pesadíssima e hiper-precisa câmera IMAX para captar as cenas de perseguição e conflito, e os resultados são espetaculares _ principalmente na sequencia de abertura, que, levando muito adiante um momento de O Cavaleiro das Trevas, já se torna um clássico instantâneo. A escala gigante do IMAX torna épicas as  manobras dos bat-veículos, os embates entre grandes multidões, os vôos e mergulhos nos canyons noturnos de Gotham.

Mas creio que, acima de tudo, admirei em Ressurge a elegância com que Nolan concluiu sua bat-trilogia, o modo como o terceiro filme retorna aos elementos do primeiro filme, incorporando todo o drama do segundo, e oferecendo a única solução possível para uma verdadeira resolução de tantos temas. Uma trilogia, encarada com a profundidade e fôlego que Nolan dedicou a Batman (e que muitos poderiam ter ignorado, já que, afinal, trata-se de um produto pop…) tem muito em comum com uma sinfonia _ um tema, diversas variações, evoluindo, encontrando-se, desencontrando-se, tornando-se mais complexas, retornando e afinal concluindo em um acorde que tudo resume e ilumina.

Batman Begins era essencialmente sobre medo _ a natureza do medo, como reconhecê-lo, como respeitá-lo, como dominá-lo, como usá-lo. O Cavaleiro das Trevas adicionava a esse tema as harmonias e contrapontos da identidade – o que é rosto, o que é máscara, o que é cara, o que é coroa, onde se esconde a verdadeira natureza do indivíduo –e, por consequencia, a discussão moral do que é heroísmo e o que é vilania. O (clássico e ainda excepcional) Coringa de Heath Ledger, escrito pelos irmãos Nolan, diz as frases definidoras desse segundo movimento: o Coringa é necessário, essencial ao Batman, como o caos é necessário à ordem, o paradoxo supremo, eterno, da força irresistível contra o objeto imutável (Bang! Bang! Bang!, acrescentaria Jane’s Addiction).

 

O Cavaleiro das Trevas Ressurge começa com o contraponto entre raiva e resignação. O jovem e inquieto policial John Blake de Joseph Gordon-Levitt – uma interessantíssima adição ao repertório- introduz o tema em uma das grandes cenas do filme, discutindo com Bruce Wayne o quanto a dor primordial do abandono, da orfandade, cria raízes profundas na alma e, imperceptívelmente, dá forma a toda uma vida, criando máscara após máscara. Wayne não nega o que ele sabe ser a mais completa verdade, mas oferece o tema complementar da aceitação _ aceitação da dor, aceitação da raiva, aceitação da passagem do tempo e da idade que, a esta altura da saga, consumiu uma boa parte do seu corpo e do seu ânimo. Aceitação, sobretudo, do fato de que uma de suas identidades – o Batman – possa não mais existir, por não ser mais possível ou necessário (um tema levantado no filme anterior, e continuado aqui com precisão). Embutida nesta aceitação está um conceito que vem do primeiro filme: Batman é mais que um ser humano; é uma ideia, uma lenda ( ou talvez, como um fã imaginou, O Grande Truque com mais máscaras.)

 

A resolução se dá num grande acorde onde se misturam novos personagens e identidades – além de Blake/Levitt, Selina/Anne Hathaway e Miranda/Marion Cotillard – provocado pela introdução de mais uma força irresistível do caos: Bane, o antagonista que, mais uma vez, utiliza os instrumentos do medo e da raiva e, como o Coringa, é essencial para a identidade do herói. Mas que talvez seja o que ele não tem como resolver ou seja, derrotar. Porque talvez, como Ressurge sugere, a solução do paradoxo seja a união, a fusão, o abraço final entre a força e o objeto, ordem e caos, Batman e Bane. Para isso, Ressurge volta elegantemente ao princípio de tudo, re-enuncia o tema e traz, com tímpanos e metais, a grande harmonia final.

Quantos filmes de super-heróis conseguem trazer tantos elementos e merecer tanta reflexão?

Pois é.

E sim, a tentação de comparar o Bane de Tom Hardy com o Coringa de Heath Ledger vai ser imensa, mas não encorajo. São duas criaturas completamente diversas (ou seriam duas manifestações da sombra, do lado oculto do herói?), executadas com absoluta perfeição por dois atores muito diferentes e igualmente brilhantes. E por favor uma salva de palmas para Christian Bale, que envergou a pesadíssima dupla máscara de Bruce Wayne/Batman durante toda a trilogia com impecável precisão e profundidade.

Simplesmente apertem os cintos e embarquem (em IMAX de preferência). É uma grande e imperdível jornada ao inevitável fim. Batman- O Cavaleiro das Trevas Ressurge estreia dia 20 nos EUA e dia 27 no Brasil.


Quem é você, Peter Parker?
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Ana Maria Bahiana

 

“Eu sei qual é o seu nome. A questão é: será que você sabe?”, diz Gwen Stacy (Emma Stone) para um titubeante Peter Parker (Andrew Garfield), nos corredores da Midtown High School, logo nos primeiros momentos de O Espetacular Homem-Aranha. Pouco tempo depois, uma recepcionista vai mais além: “Você está tendo dificuldade em se encontrar?”, ela pergunta a um ainda mais confuso Peter Parker (a conversa é a respeito de um crachá, mas serve maravilhosamente aos propósitos da trama). E depois que tudo aconteceu, com aranhas, lagartos e tudo mais, uma professora explica, nos derradeiros minutos de imagem: “Um professor certa vez me disse que há apenas dez histórias no mundo. Mas para mim existe apenas uma única história: quem sou eu ?”

Identidade, acima de tudo, é o grande tema e o grande problema de O Espetacular Homem-Aranha. O diretor Marc Webb, que vem do cinema indie e ganhou notoriedade com o delicado (500) Dias Com Ela, tem o olhar perfeito para compreender o que muitas vezes escapa aos realizadores de filmes baseados em hq e que é, na verdade, a substancia sobre a qual se assenta todo o sucesso dos quadrinhos: o lado humano dos personagens. Quadrinhos funcionam através das décadas porque tem o poder das sagas mitólogicas: colocam em escala ampliada os obstáculos, frustrações e sofrimentos muito humanos de todos nós. E todos eles, em algum momento, tem a ver com a pergunta fatal: quem sou eu?

Trabalhando com um roteiro a seis mãos (embora todos escolados veteranos, inclusive um residente de Hogwarts, Steve Kloves) e, com certeza, o estúdio olhando por cima do seu ombro, Webb conseguiu o prodígio de, pelo menos na primeira parte de O Espetacular Homem-Aranha, manter uma visão coesa do drama da identidade – ou, como o próprio diretor disse, do “vácuo” – presente na vida de um adolescente inteligente e sensível demais para sua própria felicidade.

Onde seu filme é melhor e mais forte, reluzente com uma vivacidade que já começa a escapar do sub-gênero, é no estabelecer as origens do herói, a paixão por ciência que o conecta com o pai , preenche seu vazio e, inesperadamente, cria uma nova camada de identidade. De todas as lutas essenciais num bom filme de super-herói, a minha preferida é justamente a primeira, dentro de um vagão do metrô de Nova York, sem máscara e sem uniforme, uma parte da identidade se estabelecendo, a outra hesitando, pedindo desculpas. A opção de colocar Garfield, em muitas sequencias importantes, com o traje do Homem Aranha, mas sem a máscara, reforça a questão da identidade _ gradualmente, Peter é o Aranha, e o Aranha é Peter.

Webb tem em Andrew Garfield e Emma Stone seus parceiros ideais. Que me perdoem os fãs de Tobey Maguire, mas Garfield dá uma dimensão de complexidade e credibilidade a Peter Parker que eu ainda não tinha visto. A conexão com Emma Stone faz parte disso e a escolha de Gwen como a parceira/cúmplice do herói nascente funciona muito bem na exposição de sua questão essencial _ você sabe quem você é, Peter Parker?

Saber quem ele é também é uma questão para o próprio filme. Quando o Lagarto passa a dominar a narrativa, e até o Capitão Stacy, pai de Gwen (Denis Leary, muito bem escalado) passa a leva-lo a sério, tudo fica menos interessante, em grande parte porque o que havia mantido a história num plano mais vital e mais emocional vai embora. Claro, como é mandatório no gênero, temos muitas lutas, efeitos  digitais (nem todos me convenceram) e coisas atiradas na direção da plateia para justificar o 3D. Uma sequencia importante envolvendo uma sucessão de guindastes de obra é a mais poderosa de todas, e, possivelmente, a que mais reflete a sensibilidade de Webb na abordagem do material.

Eis o x da questão: até quanto tempo é possível fazer filmes de super herói sem repensar , mais uma vez, tudo a seu respeito? O Espetacular Homem-Aranha é um reboot razoavelmente precoce, motivado pelas duas grandes pressões da indústria : gastar menos e vender mais ingressos para novas plateias. Mas também pode ser uma oportunidade para rever o gênero. Sam Raimi concluiu sua jornada com o Homem Aranha em 2007. Christopher Nolan encerra este ano sua repensagem do Batman. X Men voltou ao passado do mito.Vem aí um reboot do Super Homem. Quem somos nós, na plateia, agora? E de que heróis precisamos?

O Espetacular Homem Aranha estreia nos EUA dia 3 de julho, e no Brasil dia 6 de julho.


Magic Mike: os garotos estão numa boa
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Ana Maria Bahiana

Se os irmãos Dardenne, por algum motivo bizarro, resolvessem fazer um filme sobre strippers masculinos, o resultado final provavelmente seria muito parecido com Magic Mike, o mais novo título da safra vou-fazer-um-monte-de-coisa-antes-de-me aposentar de Steve Soderbergh.

Baseado livremente nas experiências juvenis do astro e produtor Channing Tatum, Magic Mike tem aquela qualidade naturalista, calma, relax, do olhar dos Dardenne (e de boa parte do cinema norte-americano dos anos 1970). Até mesmo os shows dos rapazes – Tatum mais Joe Manganiello, Adam Hernandez, Alex Pettyfer, Matt Bomer, Kevin Nash e, num número especial, Matthew McConaughey, o dono do clube – são tratados como mais um elemento naquilo que é o foco do filme: as vidas dessas pessoas, com as simples e complicadas ramificações que as vidas de qualquer um de nós tem; só que, por acaso, eles rebolam e tiram a roupa, à noite, para ganhar uns trocados a mais.

É uma escolha interessante num projeto que poderia ter ido por muitos caminhos diferentes. Soderbergh acompanha sem assombros Magic Mike –  nome artístico do personagem de Tatum, que, fora do palco, é operário de construção, lavador de carros e artesão de móveis – e seus colegas enquanto eles raspam as pernas, estudam os movimentos mais eficientes de suas coreografias (os que geram mais gorjetas), preparam todos os elementos do seu arsenal corporal (absolutamente todos) para o espetáculo.

É uma qualidade que se revela super eficiente para pegar a plateia logo nos primeiros instantes do filme. O antepassado mais próximo de Magic Mike, o britânico Ou Tudo ou Nada (The Full Monty, dir. Peter Cattaneo, 1997), usava uma estratégia em muitos aspectos oposta: seus strippers começavam sua jornada como cidadãos de ocupações diversas, sem ambição alguma de provocar delirios femininos com seus rebolados. Soderbergh nos coloca desde o início, com extrema naturalidade e sem absolutamente nenhum julgamento, na dupla vida dos rapazes do Club Xquisite de Tampa, Florida. O melhor de Magic Mike está aí: na deliciosa reversão de papéis num medium  – o cinema- que nunca se cansa de objetificar as mulheres, executada com classe, sem alarde, sem problemas.

Magic Mike se torna menos interessante quando tenta espichar essa história e complica-la com um quase drama sobre os perigos da vida noturna : tráfico de drogas! Criminosos! Confusões amorosas! Dificuldade para conseguir crédito em banco! Nesse ponto Ou Tudo ou Nada era mais eficiente _ havia uma base dramática já estabelecida sobre a qual a novidade do tirar a roupa apenas adicionava mais uma camada de interesse.

Mas o filme de Soderbergh não deixa de ser tremendamente divertido _ a não ser que você seja como o rabugento rapaz ao meu lado na sessão para a imprensa, que resmungava alto e bom som ao primeiro sinal de nudez masculina, e saiu intempestivamente justo na hora em que os meninos do Club Xquisite começavam uma de suas coreografias mais artísticas.

 Magic Mike estreia amanhã, dia 29, nos EUA, e ainda não tem data no Brasil.


Coração valente, coração selvagem
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Ana Maria Bahiana

Fiquei muito supresa com as primeiras resenhas de Valente (Brave), aqui nos EUA. Senti uma má vontade generalizada, vinda não sei de onde nem por que (desconfiança –para não usar outra palavra- do sucesso prolongado da Pixar?), expressa em geral no ruminar constante do mesmo conjunto de ideias que soam bem pré-fabricadas: que a heroína era mais uma iteração das princesas da Disney; que o longa de animação teria sido feito “calculadamente” para “não entediar os pais e acompanhantes das crianças”; e outras coisas nesse mesmo tom.

A uniformidade não me espanta: é um subproduto desta nossa era de produção  e consumo rápido rápido rápido de ideias, onde se tem cada vez menos tempo para refletir antes de emitir uma opinião, e onde é muito mais fácil repetir (ou copiar + colar) as ideias alheias. O que me espanta é que, tendo lido tudo isso depois  de ver (como é meu costume) o novo lançamento da Pixar eu fiquei pensando: será que esse povo viu o mesmo filme que eu vi? (E que estreou em primeiro lugar na bilheteria?)

Vamos de cara às duas questões chave que, parece, tem sido o centro das resenhas.

1. Merida, a protagonista de Valente, tem em comum com as heroinas da Disney o fato de ser uma menina e de seus pais serem a familia real de um fictício clã escocês em algum ponto da antiguidade das Terras Altas. As semelhanças param aí: não há namorado galante/trapalhão/aventureiro, bichinho engraçadinho pra fazer companhia/dizer piadas/fazer gracinhas, e certamente não há a subtrama de comédia romântica que marca os filmes da Disney, de A Pequena Sereia até A Princesa e o Sapo.

2. Todo filme destinado a crianças que pretende ter uma sobrevida no mercado precisa atender petizes e seus acompanhantes. O extremo desse princípio é o filme que, tecnicamente para crianças, é tão repleto de referências adultas, duplo sentido e piscadelas de olho que se torna praticamente irrelevante como produto infantil (como referência, quase tudo que a DreamWorks Animation tem produzido).

Tendo dito  isso, devo acrescentar que Valente teve uma trajetória longa – quatro anos em produção – e atribulada. Trocou de título – originalmente era The Bear and the Bow, O Urso e o Arco – e de diretor –  Mark Andrews, discípulo de Brad Bird, substituiu Brenda Chapman, originadora do projeto;ambos tem crédito no filme – no meio do caminho. E, como de costume, passou pelo mesmo tortuoso e colaborativo processo pelo qual passam todos os projetos da Pixar onde, em circunstâncias normais de temperatura e pressão, tudo acaba dando certo; mas, nestas condições, corria um tremendo risco.

Fiquei muito feliz ao ver que, apesar de tudo isso, Valente mantinha a integridade da visão inicial de Chapman: trazer para a galeria de personagens da Pixar não apenas uma heroína, mas, com ela, a complicada relação entre mãe e filha que é espetacularmente ausente do cinema comercial, especialmente o de animação. Será que isso escapou de  maneira tão gritante aos meus colegas resenhistas porque eles são, em 99% dos casos, homens?

Como fui  uma menina que preferia ler Julio Verne e Jack London em vez da Coleção das Moças, que vivia sempre com joelhos e braços esfolados, fugia para jogar futebol com os garotos e sonhava ser exploradora pelo mundo afora, Merida me pareceu extremamente familiar. E refrescantemente próxima da experiência real – e não imaginada, em geral por um homem – de crescer sendo menina, à sombra das expectativas da sociedade, em geral encarnadas na figura materna, mas animada pelo fogo interior que é prerrogativa de todo ser humano. É um tema poderosíssimo, que merece ser retomado muitas vezes de muitas formas, limpo, sem clichês, sem distorções.

Confesso que, durante os primeiros 25 minutos de Valente, temi que a história fosse descambar exatamente pela rota do previsível. Mas aí algo absolutamente mágico acontece: Valente enverada resolutamente por um território que, como me lembrou o cinéfilo, teórico e programador da cinemateca do Los Angeles County Museum of Art Bernardo Bahiana Rondeau – que por acaso ou não é meu filho- é puro Hayao Miyazaki. Valente abraça sem restrições o coração selvagem de uma narrativa que leva a sério o poder da metáfora visual pura que a animação oferece, e ilumina a história da menina que seria ser livre com os recursos mágicos de uma forma de fazer cinema que não tem restrições, e onde “possível” e “real” são a mesma coisa.

Se eu contar aqui o quão maravilhosa e sensacionalmente bem executada é a metáfora visual que está no coração mesmo da trama de Valente, estarei cometendo um spoiler titânico. Mas podem ficar sossegados. Vão ver e depois me contem.

Como animação, Valente coloca ainda mais alto o padrão que a própria Pixar já tinha posto nas nuvens. A riqueza e, ao mesmo tempo, o absoluto controle do universo da menina Merida – uma Escócia inteiramente orgânica e, ao mesmo tempo, completamente mágica – ecoa, novamente,  Studio Ghibli e a Disney clássica de Branca de Neve, Bambi e Bela Adormecida. Mas vai além, tão mais além.

Valente está em cartaz nos EUA desde sexta feira e estreia dia 20 de julho no Brasil.


Os deuses estão loucos: a jornada olímpica de Prometheus
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Ana Maria Bahiana

Em primeiro lugar, desculpem a demora em postar sobre um dos filmes que eu, você, nós estávamos esperando ansiosamente este ano _ estava rodando o Brasil de Porto Alegre a Fortaleza… Em segundo lugar, aviso aos de sensibilidade delicada: é possível que algo neste texto possa ser considerado SPOILER; então (embora o filme esteja em cartaz no Brasil), prossiga com cautela.

Num futuro não muito distante, um grupo de cientistas ruma às fronteiras mais remotas do espaço na esperança de fazer contato com o ser ou seres que , segundo indícios recém-encontrados, podem ter dado origem à vida na Terra.

Você já viu esse filme. E, se não viu, devia ter visto: ele se chama 2001, uma Odisseia no Espaço, e foi realizado por Stanley Kubrick no remoto ano da graça de 1969.

Prometheus, o filme de Ridley Scott que, nas palavras do diretor, “compartilha DNA” com Alien, o Oitavo Passageiro, enrosca-se geneticamente, também, na obra prima de Stanley Kubrick. Mas, enquanto 2001 tinha o tempo, o espaço e a visão para ser uma meditação filosófica sobre quem somos e de onde viemos, Prometheus precisa seguir um mandato bem diferente: ele precisa assustar. E tem um problema a mais: não pode nem se dar à calma com que Scott explorou o clássico conceito monstro-em-espaço-restrito em seu filme de 1979. Tudo em Alien era timing, silêncio, escuridão, uma valsa lenta de horrores que subitamente se acelerava quando, por exemplo, John Hurt de repente começava a ter violenta falta de ar. O ritmo de Alien tinha mais em comum com outra obra esplêndida de Kubrick, O Iluminado, do que com o frenético festival de sustos que dominaria a linguagem do thriller nos anos seguintes.

Imagino que, para Scott – um realizador de ampla visão e preciso conhecimento do seu ofício – o grande desafio de Prometheus tenha sido manter-se fiel ao DNA de suas origens e, ao mesmo tempo, satisfazer novas plateias acostumadas a uma sacudidela por segundo. Achei interessante que, para explorar as origens, digamos assim, genéticas, do seu monstro dentuço e rabudo, Scott tenha se aliado a Damon Lindelof, um dos principais roteiristas da série Lost, ao mesmo tempo em que, na direção de arte, retornava aos revolucionários conceitos do artista plástico suíço H.R. Giger, cuja integração entre o orgânico e o mecânico é essencial para a mitologia de Alien. Uma indicação segura de que, para ele, mitologia vinha em primeiro lugar no desenvolvimento do projeto.

Tenho um forte palpite de que deve-se a Lindelof a conexão com 2001, Uma Odisseia no Espaço. E com Lawrence da Arábia, o super clássico e oscarizado filme de David Lean, de 1962, que dá uma grande chave para decodificar Prometheus:  “Grandes coisas tem começos pequenos”,  diz Peter O’Toole como T.E. Lawrence, o Lawrence da Arábia, segundo o roteiro de Robert Bolt , ecoado aqui por David, o androide (brilhantemente) interpretado por Michael Fassbender. Como o personagem de David Bowie em O Homem Que Caiu na Terra (Nicolas Roeg, 1976), David  é um estranho numa terra estranha, uma criatura na fronteira entre o humano e o não humano, infinitamente inteligente e portanto curioso sobre o processo que leva um ser a querer criar outro. Não é demais supor que seu nome venha tanto de Bowie quanto do Dr. Dave Bowman de Keir Dullea em 2001, murmurado em tons tão docemente sinistros pela aquela outra inteligencia artificial de idêntica curiosidade, Hal.

Também não é demais supor que Scott, enamorado com as múltiplas camadas de intriga do confronto criador/criatura, tenha se sentido impulsionado em duas direções, a jornada mitológica e a montanha russa do terror. Eu teria gostado mais de ver um filme que conseguisse ser as duas coisas ao mesmo tempo, mas aceito que, no mercado impiedoso de hoje, seria praticamente impossível realizar uma obra assim, com o orçamento necessário.

Então, em Prometheus, temos dois filmes dividindo o tempo da tela. No primeiro, a busca existencial dos astronautas de 2001 Uma Odisseia no Espaço se repete, sem a poesia do filme de Kubrick, mas com todo o entusiasmo voraz e a escala épica que são a assinatura de Ridley Scott. Prometeu, encarnado na Elizabeth Shaw da excelente Noomi Rapace, voa ao Olimpo em busca do fogo divino, a centelha da criação. No segundo, a necessidade de sustos contínuos é alimentada quando os deuses revelam  que o orgasmo do ato criativo traz em si a loucura despótica da destruição e Elizabeth/Prometeu paga seu preço, literalmente, na carne _e transforma-se na ancestral de outra heroína mitológica da mesma saga, a Ripley de Sigourney Weaver.

Não é a obra excepcional que poderia ter sido mas é, sem dúvida, um dos mais sensacionais, belos, perturbadores e inteligentes filmes da temporada pipoca – e só digo “um dos” porque ainda não vi Batman-O Cavaleiro da Trevas Ressurge.  Nos tempos magros que vivemos, toda ambição bem sonhada, mesmo com falhas, deve ser recompensada.


Depp, Burton, perdidos nas Sombras da Noite
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Ana Maria Bahiana

Existe um elemento que pode matar – ou pelo menos ferir gravemente- um filme antes mesmo que o diretor tenha dado a primeira ordem de “ação”: a necessidade da plateia saber alguma coisa para poder apreciá-lo. Não importa que o material de origem seja um livro, uma hq, uma peça de teatro ou série de TV: o filme precisa se sustentar por si mesmo, e ser capaz de dialogar com a plateia por seus próprios méritos.

Infelizmente para Tim Burton e seu habitual parceiro Johnny Depp, duas coisas são necessárias para que se chegue perto de apreciar Sombras da Noite (Dark Shadows, 2012): conhecer a temática e a estética da série Dark Shadows, exibida pela rede norte americana ABC entre junho de 1966 e abril de 1971; e saber, nem que seja de passagem, como era a cultura pop do ano da graça de 1972.

Sem saber uma coisa ou outra, Sombras da Noite é uma gloriosa aula de direção de arte, um estudo no uso da cor, figurinos e ambientes de cena, interrompido de vez em quando por uma piada, em geral nos lábios muito roxos de Johnny Depp na pele do vampiro Barnabas Collins, ejetado sem cerimônia do final do século 18 para a alvorada da década de 1970.

Não há uma narrativa consistente,  que nos envolva e nos deixe comprometidos com a história _ nem a história da familia Collins (liderada pela matriarca Michelle Pfeiffer, linda) , descendente do vampiro mas ignorante de sua existência, nem a história de Barnabas, perdido num século que não compreende. O tom do filme oscila brutalmente: as vezes flerta com o gótico e o terror, às vezes cai na comédia, às vezes arrisca piscadelas irônicas que a plateia, frequentemente, não tem como entender (“mamãe, o que é um hippie?”, ouvi a menina ao meu lado sussurrar depois de uma sequencia que, com o devido conhecimento, deveria ser hilária.)

Dark Shadows começou como um sonho de seu criador, Dan Curtis, nos idos de 1965: uma noite sombria, uma moça misteriosa num trem. Com o roteirista Art Wallace, Curtis desenvolveu a estrutura do que viria a ser Dark Shadows, e a ABC comprou a ideia. Para a época, era um conceito ousado: usando as convenções do melodrama tela-pequena, mais próximos de uma novela do que o que hoje conhecemos como série dramática, Dark Shadows injetava elementos góticos, sobrenaturais e fantásticos, acompanhando os dramas e mais dramas da família Collins e seu súbito novo/antigo parente, o vampiro Barnabas.

Décadas seguintes nos trariam Buffy, Arquivo X, Angel, True Blood, Being Human, Vampire Diaries e tudo mais, mas Dark Shadows foi pioneira. O que não quer dizer que foi uma obra prima. Pelo contrário: seus fãs, em sua maior parte adolescentes chegando da escola e vendo a série depois do dever de casa (Burton e Depp entre eles) amavam principalmente seus exageros, o bizarro refogado de novelão e sobrenatural. Dark Shadows foi uma série cultuada, mas os dois primeiro filmes que tentaram revisitar seu universo – House of Dark Shadows em 1970 e Night of Dark Shadows em 1971 – não renderam grande coisa.

Depp trouxe o projeto para Burton, e os dois colaboraram intensamente para tentar fazer um completo reboot do conceito de Dark Shadows, com total veneração peor seus elementos _ começando pela escolha de 1972 para situar a história, assinalando a intenção de continuar do ponto onde a trama tinha deixado de existir, e optando por começar o filme exatamente como o primeiro episódio da série, com a moça misteriosa no trem (aqui, ao som de “Nights in White Satin”, dos Moody Blues, excelente escolha).

O problema, contudo, é aquele lá do princípio _ sem o mesmo devotado amor e conhecimento da série, Sombras da Noite se torna um híbrido desigual, com momentos lindos e/ou hilários seguidos por longos períodos muito menos interessantes.

 Sombras da Noite estreia sexta dia 11 nos EUA e dia 22 de junho no Brasil.

 


Peguem o gringo: el corrido de Mel Gibson
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Ana Maria Bahiana

Em sua longa carreira como ator e diretor, antes, durante e depois de se tornar um super-astro, Mel Gibson fez, basicamente, um mesmo personagem: o homem que, sozinho, contra tudo e contra todos, arrisca a própria vida em troca de seus ideais e metas.  Do icônico Mad Max ao exausto  detetive de O Fim da Escuridão, do jovem soldado de Gallipoli, de Peter Weir (um filmaço aliás) ao rebelde William Wallace de Coração Valente, do alucinado Martin Riggs da franquia Máquina Mortífera ao “patriota”  Benjamin Martin, todos os homens da vida fictícia de Mel Gibson são mal contidas metralhadoras giratórias de paixão,  balas presas num gatilho humano.

Mesmo em filmes  que dirigiu mas nos quais não atuou o herói é assim, não importa se na pele de Jesus de Nazaré ou do jovem guerreiro maia de Apokalypto.

Só Gibson sabe que dobras da sua alma e episódios de sua vida dão contornos tão bem definidos aos seus “eus” fictícios. Depois da via crucis em que se meteu nos últimos anos, podemos imaginar de onde vem os demônios que alimentam esses homens velozes e furiosos.

Pessoalmente, acho que nem todas as iterações desse personagem são bem sucedidas (pessoalmente também, gosto especialmente de Gallipoli, O Ano Em Que Vivemos em Perigo e O Fim da Escuridão. Além de Mad Max, que, pensando bem, não é um personagem, é um alter ego).

Também acho que Gibson já pagou mais do que o acham que ele devia, e que Plano de Fuga (Get the Gingo), o novo filme que ele escreveu, produziu e estrela, merecia um lançamento em cinemas aqui nos EUA. Até porque seria um bom negócio. Uma das maiores idiotices desta indústria é fazer essa mixórdia de impulsos pessoais e decisões de negócios. Quem não comprou Plano de Fuga para cinemas deve ter pensado que Mel, o maldito, não tinha mais cacife para atrair público; ou isso ou deveria ser punido um pouco mais (os paralelos com o personagem-mito de Mel estão aumentando…). Dois péssimos motivos para uma decisão como, espero, vão comprovar as bilheterias internacionais.

Porque  Plano de Fuga  é um filme muito bom. Não vai mudar o mundo ou o cinema, mas é um sólido e bem executado híbrido de ação tarantinesca, western peckinpesco e drama favelado latino-americano. Quem pagar ingresso para assistir os primeiros e sensacionais 15 minutos, com dois palhaços – um deles cuspindo sangue aos borbotões- em disparada pelo deserto do Texas num carro caindo aos pedaços, ao som de “50,000 Miles Beneath My Brain”, do Ten Years After já vai se sentir recompensado.

Mas aconselho que fique para o resto da breve, compacta, incessante hora e meia. Trancafiado em El Pueblito, uma bizaríssima prisão mexicana, o anônimo motorista do carro da sequência de abertura (Mel Gibson) descobre todo um novo mundo de terrores e possibilidades. E, inspirado pela amizade com um menino igualmente sem nome (o excelente Kevin Hernandez, que merece um filme só dele), planeja e executa um golpe tipicamente gibsonesco.

O universo que Adrian Grunberg (também diretor) e Gibson constróem no bem estruturado roteiro é, de muitos modos, o pano de fundo ideal para nosso velho conhecido, o herói hiper-individualista e suicida da carreira de Mel. Não há princípios, lei, ética, moral, certo e errado. No perversamente absurdo mundo de El Pueblito reina apenas a sobrevivência e o domínio do mais forte (ou mais esperto).É Alice do outro lado da toca do coelho, com muitas armas, lucha libre e narcocorrido _ um mundo em queda livre onde um homem só, anti social e possivelmente psicopata, pode, por um breve momento, ser herói por default.

Admiro muitíssimo, em Plano de Fuga,  o notável trabalho da direção de arte de Bernardo Trujillo, que criou toda a prisão em Veracruz, no México (próximo das locações de Apocalypto),  o excelente conjunto de atores latinos e a maravilhosa trilha incidental do brasileiro Antônio Pinto.

Mas admiro especialmente a segurança do diretor estreante Adrian Grunberg,  que foi assistente de direção em, entre outros, Apocalypto, Traffic e Amores Perros (cuja estética informa bastante suas escolhas).  É um projeto complexo em todos os aspectos, da logística à temática, e Grunberg se sai muito bem mostrando que tem um estilo próprio, além das suas influências.

Plano de Fuga estreou esta semana em video on demand nos EUA; no Brasil, a estreia é dia 18 de maio.


Os Vingadores: viva a super tropa de elite!
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Ana Maria Bahiana

O desafio de se fazer um filme sobre super-heróis é o mesmo de se fazer um filme sobre contos de fadas ou mitologia de qualquer espécie: tem-se duas opções básicas, e nenhuma das duas é muito fácil. Na opcão 1 leva-se a história absolutamente a sério; na opção 2 pisca-se o olho para a plateia, o tempo tempo, dividindo conosco o absurdo da situação.

Nenhuma opção é melhor do que a outra _ mas ambas são igualmente difíceis, cada qual apresentando um conjunto diferente de problemas. Levar muito a sério arrisca tornar tudo muito chato ou muito ridículo. Não levar a sério arrisca tornar tudo extemamente irritante.

Raro – e muito bom – é o filme que, levando a sério a premissa de gente que voa, atravessa tempo e espaço e é indestrutível, abre espaço para um humor cúmplice com a plateia.

Os Vingadores é um filme assim. A premissa , arriscadíssima, de juntar não um nem dois mas quatro super heróis é parte essencial de um projeto de longa duração da Marvel, iniciada com os filmes individuais de cada um. As permutações das aventuras de Thor, Homem de Ferro, Capitão América e Hulk, individualmente ou como Vingadores, foi cuidadosamente calibrada pelo time liderado pelo chefão da Marvel Studios, Kevin Feige para gerar o que o estúdio define como “uma franquia auto alimentada, em perpetuidade”.

O grande risco é o que se viu nos títulos individuais: o Homem de Ferro ganhou inteligentes interpretações assinadas por Jon Favreau mas os demais…. “irregular” seria um adjetivo cauteloso.

Felizmente os Vingadores ganharam um realizador que, como Favreau, sabe caminhar no arriscado gume entre seriedade e ironia. E por isso o filme é um delicioso exercício escapista, uma bem calibrada fantasia-pipoca que consegue, ao mesmo tempo, abraçar o cânon dos super-heróis, suas super-personalidades, seus super-antagonistas e super-aliados e rir com ela do absurdo de toda a situação.

Fanboys e girls conhecem bem os fundamentos da história: Loki, o irmão-problema de Thor (vivido com arrogância rockstar por Tom Hiddleston) roubou o Cubo Cósmico só para trazer seus amigos alienígenas monstruosos para a Terra e, com isso, dominar os humanos (em um de seus momentos mais geniais, Loki prega a submissão como modo de liberação e dá alfinetas especiais nos alemães, cuja imaginação mítica criou a Asgard de onde ele vem).

À frente de seu serviço ultra secreto, o Shield, Nick Fury (Samuel L.Jackson, sempre a pessoa certa) reune, em regime de urgência, uma tropa de super elite: Thor (Chris Hemsworth), Homem de Ferro (Robert Downey Jr.), Capitão América (Chris Evans) e Hulk (Mark Ruffalo), com o apoio da mega agente Natasha Romanoff/Viúva Negra (Scarlett Johansson) e seu parceiro Gavião Arqueiro (Jeremy Renner) para deter a invasão.

As grandes cenas de ação são convincentes e empolgantes, mas fiquei especialmente bem impressionada com o modo como Whedon soube tratar os super-heróis como personagens de verdade, com personalidades, problemas e desejos, que obviamente se chocam, em proporções épicas, uns com os outros.

Tony Stark/Homem de Ferro ganha as melhores falas (“o que é isso? Shakespeare no parque?”, ele diz quando encontra Thor pela primeira vez). mas gostei muito do modo como Whedon resolveu um dos personagens mais complicados do universo Marvel: Bruce Banner/ Hulk. Escolher Mark Ruffalo para o papel foi o primeiro acerto- Ruffalo tem a delicadeza e a complexidade necessárias para compor o perfil de um homem inteligente e sensível que carrega, literalmente dentro de si, uma arma de destruição em massa. Utilizar mocap para concretizar essa transformação foi o segundo acerto _ monstro e homem estão ligados entre si, completa e profundamente, e seu poder é, ao mesmo tempo, imenso e trágico.

Não tenho a menor dúvida de que Os Vingadores vai ser um enorme sucesso _ e, desta vez, mais que merecido.


Titanic 3D, 15 anos depois: a nave vai
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Ana Maria Bahiana

Para os obsessivos com SPOILERS:  o navio ainda afunda no final.

Podemos passar ao que interessa, agora? Titanic 3D é sensacional. Não envelheceu nada nestes 15 anos desde o mega-sucesso de sua estreia,o que, em si mesmo, já é um triunfo.

Com a perspectiva do tempo, fica ainda mais claro porque Titanic foi o evento cinematográfico de 1997-1998, porque conseguiu a rara combinação de altíssima bilheteria – quase 2 bilhões de dólares no mundo todo, número top durante 12 anos, só suplantado por outro de James Cameron, Avatar – e aclamação de seus colegas na industria – 14 indicações ao Oscar, 11 estatuetas: porque retomou, por um breve momento, aquilo que só a grande industria de cinema, voltada  para e impulsionada pelo mercado, pode fazer.  Por um breve momento a possibilidade de que os fabulosos pistões a vapor da gigantesca nave hollywoodiana pudessem impulsionar algo ao mesmo tempo inteligente e popular tornou-se verdade. Os ecos de um tempo em que o cinema norte americano era vital e imenso – …E O Vento Levou, westerns, musicais – voaram sobre o mundo (infelizmente acompanhados por Celine Dion. Mas ninguém é perfeito.)

O que talvez a perspectiva do tempo tenha apagado é o fato de que Cameron, trabalhando com o que era, então, o maior orçamento de todos os tempos – 200 milhões de dólares, custeados por dois estúdios e, em grande parte, o próprio Cameron – realizou seu filme debaixo de uma das mais impiedosas salvas de vaia de que me lembro. Não se passava uma semana, aqui em Los Angeles, sem que se lesse ou ouvisse algum comentário garantindo que o diretor era um louco megalomaníaco, que estava jogando dinheiro fora com um projeto fadado ao fracasso, que sua arrogância era igual à dos construtores do navio que o inspirara.

Não duvido nem um pouco que Cameron seja megalomaníaco ou arrogante _ mas temo que, sem esses dois elementos, ele não teria esse extraordinário poder de realizar suas visões , que parecem impossíveis para o resto do mundo.

Parece meio louco pensar assim, mas Cameron tem muito em comum com os pioneiros do cinema: como os Lumiere ou Méliès, Cameron está interessado tanto na narrativa audiovisual quanto na tecnologia que a torna possível. Em sua concepção de narrativa cinematográfica o modo como a história é contada e o hardware necessário para contá-la são igualmente importantes.

Talvez por isso a longa conversão – mais de um ano de trabalho – de Titanic para 3D tenha sido tão bem sucedida. Estou especulando aqui, mas não é demais imaginar que Cameron tenha pensado Titanic em 3D, desde o começo. Sei (porque ele mesmo me contou) que a ideia de um filme tendo como pano de fundo o naufrágio do malsinado navio data de antes de True Lies, de 1994. Assim como a semente do que viria a ser Avatar rolou na sua cabeça durante uma década, a realização do que seria Titanic dependia de dois elementos de hardware: uma expedição de mergulho que tirasse as dúvidas sobre o naufrágio e informasse o estilo visual do filme; e a tecnologia necessária para realizar os efeitos que Cameron tinha em mente.

Não duvido nada que, assim que ele voltou da expedição de mergulho, Cameron pensou seu filme em 3D. Mas como a tecnologia não se desenvolveu com a rapidez que ele queria, teve que achar outras soluções.

E por isso – porque ele compreende o que realmente faz com que uma experiência visual 3D seja interessante – Titanic 3D ocupa cada centímetro da tela com  segurança e  esplendor. Em 3D, a obsessão de Cameron com detalhes é recompensada à máxima potência: o navio emerge das profundezas em toda a sua grandeza, e somos imediatamente envolvidos pelo aspecto mais poderoso do Titanic e  de sua história _ o fato de que ali estava  uma redução impecável do mundo ocidental em 1912,  fadado ao naufrágio de tantos modos diferentes.

Porque a cabine de imprensa, aqui em LA, foi cancelada por motivos técnicos (Cameron deve ter mandado decapitar alguém…) acabei vendo Titanic 3D em IMAX  numa sessão lotadíssima com uma plateia absolutamente diversa em idade, etnia, cultura; muitos deles eram bebês quando Titanic foi lançado; muitos só tinham visto o filme em telas de TV.

Foi um interessantíssimo estudo do poder de diálogo entre um filme  e o público, que se levantou para aplaudir de pé, unanimamente, ao final. Titanic funciona, 15 anos depois, não porque o 3D torna o navio absolutamente real e seu naufrágio, ainda mais medonho – ele funciona porque tem o equilibrio perfeito entre o pequeno e o imenso, o pessoal e o histórico, Jack e Rose , seu romance impossível e as pressões da sociedade à sua volta, condensadas e intensificadas na gloriosa prisão do transatlântico. Porque, no final das contas, não é a história de um navio, mas a história de uma mulher – igualmente a maravilhosa Gloria Stuart e a muito jovem Kate Winslet – e das escolhas que todos fazemos, a cada momento, nas rotas de nossas vidas.

Titanic 3D está em cartaz nos EUA e estreia no Brasil dia 12.