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Cinema Verité: o estranho legado do primeiro reality show da TV
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Ana Maria Bahiana

A família Loud em 1971...

Uma familia aceita ser filmada , praticamente 24 horas por dia, durante sete meses. No início, todos – mãe, pai, filhos adolescentes – estão empolgados,acenam para a câmera, preparam números musicais, jogam beijinhos. Vizinhos, parentes e amigos se aproximam, donos de lojas oferecem mercadoria, chovem convites. Depois de algumas semanas, contudo, uma tensão sutil mas crescente vai abrindo fissuras entre os irmãos, entre o casal, entre a família e seus amigos. A câmera, que parecia tão presente, torna-se invisível. Acontecimentos naturais e provocados se misturam e em breve se tornam indistintos. A realidade supera a ficção ou a ficção reescreve a realidade?

... e sua contrapartida em 2011

Não, não estou falando dos Kardashians ou das Real Housewives, da turma de Jersey Shore , Real World ou alguma edição de Big Brother. Estou falando da familia Loud, de Santa Barbara, California, no ano da graça de 1971. Inspirado pelo movimento do cinema-verdade, o documentarista Craig Gilbert propôs à recem-nascida TV pública norte americana uma “experiência em antropologia cultural”, semelhante às que a antropóloga Margareth Mead realizara em Samoa e na Nova Guiné nos anos 1920 e 30. Mas em vez de buscar o “exotismo” de culturas distantes, por que não observar de perto a sociedade americana, na época sacudida de alto a baixo por rupturas sociais, comportamentais, sexuais, culturais?

Quando a série , entitulada An American Family estreou em 1973,  o casal Loud estava se divorciando, Gilbert havia brigado com o casal de cinegrafistas que efetivamente realizara o documentário, e a família não queria mais saber do projeto. Acusações voaram de parte a parte. Em essência, a família se sentia enganada, traída e manipulada por Gilbert, e o diretor se defendia dizendo que a verdade do documentário era sagrada e intocada, e que tudo tinha sido feito com o objetivo de ser fiel aos fatos.

A série foi um imenso sucesso. A imprensa fez picadinho da família, chamada de exibicionista, sem caráter, oportunista. Gilbert nunca mais trabalhou em cinema ou TV.

Esta é a história de Cinema Verité, o excelente filme da HBO que reproduz – com uma mistura de documentário e ficcionalização – os bastidores de An American Family.

James Gandolfini, ótimo, é Craig Gilbert, uma mistura precisa de sedução e intimidação que – pelo menos na versão do filme- claramente joga com a família como se todos fossem personagens no seu roteiro particular. Tim Robbins faz o paterfamilias Bill Loud com a habitual bravura com que ataca personagens que são o  oposto dele mesmo: conservadores, falastrões, caretas. Diane Lane é um espetáculo à parte _ sua Pat Loud é uma mulher complexa, oscilando entre a domesticidade e a liberação, feroz na defesa dos filhos mas ignorante de seus problemas, ao mesmo tempo fascinada e repelida pela estranha fama que desaba sobre a familia.

A visão dos diretores Shari Springer Berman e Robert Pulcini (Anti Herói Americano, O Diário de Uma Babá, The Extra Man) é convidar o espectador à reflexão sobre o que hoje é um gênero dominante na TV: o reality show. An American Family foi o pioneiro do formato, Cinema Verité diz, e vejam o que aconteceu: as perguntas que a série levantou continuam sem resposta, mas ainda estamos fascinados pelo espetáculo da vida alheia. O que isso diz a nosso respeito?

Hoje com 85 anos e  saúde frágil, Craig Gilbert tentou processar a HBO e impedir o lançamento de Cinema Verité, que detesta. A família Loud não foi tão longe, mas também não gostou do projeto e se recusa a falar a respeito. Nada é simples quando se mexe no vespeiro de nossa consciência como produtores e consumidores de entretenimento. Mas Cinema Verité, na TV, é um exemplo do melhor cinema que diverte e faz pensar.

 

 


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