Blog da Ana Maria Bahiana

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Rango, Paul: os novos meta-heróis da tela
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Ana Maria Bahiana

Um dos efeitos colaterais da longa vida do cinema é sua capacidade para gerar seu meta – não apenas filmes sobre fazer filmes ( Cantando na Chuva, Oito e meio, Noite Americana, Um Realizador em Apuros, entre muitos outros), mas filmes sobre a narrativa cinematográfica e seu mais de um século criando iconografia em nossas mentes.

É  interessante ver, esta semana, dois filmes assim batalhando pela bilheteria, aqui nos EUA : Rango, que está em cartaz também no Brasil, e Paul, que estreou aqui neste final de semana (em breve teremos mais um, Sucker Punch mas…. Oops, não posso dizer nada, embargo até sexta feira). São criaturas diferentes, esses dois, mas ligados pelo umbigo à mesma nave-mãe: o cinema, criador de narrativas nos nossos sonhos.

Rango, que mencionei aqui no outro post, é um longo e delicioso bilhete de amor ao western em suas diferentes versões e vertentes.

O western é, possivelmente, o mais moral de todos os gêneros cinematográficos : é sobre bem e mal em estado puro, na ausência de distrações proporcionada por uma paisagem intocada, onde os anteparos da civilização ainda não foram estabelecidos. Sozinhos (e livres) num ambiente sem os recursos da lei e dos acordos sociais, homens e mulheres precisam recorrer unicamente a suas próprias bússolas morais para definir seu comportamento e estabelecer suas escolhas. “Bem” e “mal” tornam-se simples e claras forquilhas na estrada, sem as ambiguidades da civilização.

Rango adiciona mais uma camada de simplificação ao seu meta-comentário transformando seus personagens em bichos – os animais do deserto, saindo do pano de fundo de tantos dramas humanos e ganhando sua própria voz. Como Ésopo, La Fontaine e Monteiro Lobato sempre souberam, bichos são a redução mais eficiente para compreendermos a nós mesmos – e é isso que Gore Verbinski faz, com grande sensibilidade, cuidado e humor, usando cada pedaço da alegoria do western: o xerife relutante e o duelo na rua principal de Matar ou Morrer, as imensas paisagens da filmografia de John Ford, o herói sem nome (duas vezes – o próprio Rango, camaleão sem nenhum caráter como Macunaíma, não tem nome enquanto é bicho de estimação) do cinema de Sergio Leone, o bando de renegados e a câmera lenta de Sam Peckinpah. É lindo e delicioso de se ver, e peço a todo mundo que não amou Rango de cara que considere uma segunda oportunidade.

Paul é uma criatura ligeiramente diferente. Apesar de ter sido dirigido por Greg Mottola (Superbad, Adventureland), ele é obra da dupla Simon Pegg/Nick Frost, que escreveu o roteiro, interpreta os papéis principais e, assim,completa sua trilogia de revisões do cinema: terror com Shaun of the Dead, policial com Hot Fuzz e, agora, com Paul, sci-fi.

Há uma camada dupla de revisão no olhar de Pegg-Frost: ingleses, ambos, eles olham não apenas para o cinema, mas especificamente para o cinema de massa produzido nos EUA. São esses clichês, esses códigos, essas invenções que a dupla gosta de subverter – e subvertendo, homenagear.

Em Paul, Pegg-Frost acrescentam mais um elemento: eles agora estão nos EUA, seus personagens em peregrinação nerd da Comic Con em San Diego à Area 51 de Nevada a bordo do que imaginam ser a quintessencia do sonho americano on the road- um trailer gigantesco abarrotado de junk food. Em pouco tempo o verdadeiro ET que encontram no caminho (o Paul do título, dublado à perfeição por Seth Rogen) se torna menos alienígeno do que os nativos da América, seus estranhos hábitos alimentares, costumes peculiares e bizarras crenças. Ver a “exotização” da cultura norte-americana, tão propensa a transformar em “exótico” o que está além de suas fronteiras, é um dos muitos prazeres de Paul.

Os demais são contar quantas referências ao cinema de fantasia Pegg e Frost conseguiram empilhar nos compactos 104 minutos do filme, de Steven Spielberg a James Cameron, Contatos Imediatos a Guerra nas Estrelas, Deliverance e, é claro, ET. Nem todos os momentos são igualmente felizes, e nem todas as participações especiais são tão geniais quanto as de Jane Lynch e Sigourney Weaver, mas esta viagem  hilária, mágica e misteriosa totalmente vale a pena.


Depois dos prêmios, as crises
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Ana Maria Bahiana

Dá pra ver o Charlie Sheen daí? Cena de Marte Precisa de Mães...

...e os produtores Zemeckis, Jack Rapke e Steve Starke,da ImageWorks Digital

Se o Brasil retoma a vida depois do carnaval, LA  volta ao normal depois do Oscar, fim oficial e real da temporada de prêmios. Neste momento do ano que afinal começa, duas crises tem ocupado a industria:  a de Charlie Sheen e da animação por motion capture, escola Robert Zemeckis.

O suspense da crise Charlie Sheen tem duas partes: como  CBS/Warner/Chuck Lorre vão reformular Two and a Half Men,  sua série campeã de audiênica nos EUA e principal exportação mundo afora; e se Charlie será capaz de se reinventar depois do que parece  um descontrolado suicídio profissional.

Saberei mais, pelo menos sobre a primeira parte, em breve.

Passemos portanto para a segunda crise, que foi selada esta semana com o desastre de  Marte Precsia de Mães, a derradeira obra da ImageMovers Digital, o estúdio de captura digital criado por Robert Zemeckis em parceria com a Disney em 2007. Apesar de boas críticas, o longa de animação, que custou mais de 200 milhões de dólares e dois anos de trabalho para realizar e lançar, rendeu minguados 6.9 milhões de dólares na bilheteria norte americana. E os mercados internacionais não vão ajudar: Marte fez apenas 2.1 milhões de dólares nos 8 países nos quais já estreou (o filme ainda não tem previsão de lançamento no Brasil).

Todo mundo parece ter uma explicação para o fracasso de Marte : o título, que teria afugentado os meninos; a história de mães abduzidas, que poderia ter assustado a criançada mais moça; o congestionamento de lançamentos de animação. Mas o mais convicente, para mim, é o mais óbvio: a proposta estética do tipo de captura que Zemeckis e sua equipe praticam é frio, esquisito, desconfortável e, mais importante, vastamente suplantado por outras opções, como a perfeição psicodéllica de Avatar ou a “emotion capture” de Rango.

Mars – escrito e dirigido por Simon Wells, mas produzido por Zemeckis- não é a primeira rejeição deste estilo de mocap : Os Fantasmas de Scrooge foi outro fracasso de bilheteria, capaz de segurar os 200 milhões de dólares de seu custo apenas depois do lançamento internacional. O Expresso Polar, seu antecessor no estilo Zemeckis de mocap, foi apenas ok na bilheteria em 2004 _ e ambos contavam com o clima de festas para gerar interesse. (Beowulf, voltado para um outro segmento de plateia, é um caso a parte, mas também foi salvo pela bilheteria internacional).

A ImageWorks Digital já havia sido ejetada pela Disney ano passado, e agora fechou de vez, demitindo não apenas os 450 técnicos, artistas e funcionários responsáveis por Mars, mas também todos os que trabalhavam no reboot de Yellow Submarine – que já está oficialmente cancelado.

É um drama comum em pioneiros: ver primeiro não significa necessariamente ter a melhor solução.

Nos idos de 2002 Zemeckis foi um dos primeiros a abraçar completamente o que se anunciava como a nova grande fronteira da linguagem cinematográfica: a capacidade de anular a divisão entre real e virtual, captado e manipulado. Infelizmente, a WETA de Peter Jackson disparou à sua frente, desenvolvendo a tecnologia necessaria para realmente integrar os dois aspectos, inserindo o virtual no real sem quebra de engajamento da plateia – pensem na primeira vez em que vimos Gollum em Senhor dos Aneis – e, finalmente, em Avatar,  possibilitando a completa fusão de ambos.

Acho muito interessante o que aconteceu com Rango – que, se vocês não viram, devem correr para ver, pois é o melhor filme de 2011, até agora. Talvez porque tenha sido concebido e executado por dois forasteiros no mundo  da animação – Gore Verbinski e a Industrial Light and Magic – o maravilhoso western existencial se permitiu pensar fora da caixa.

Verbinski escreveu o roteiro pensando em cinema em geral e não animação em particular – o melhor modo de se pensar, como já propunha Papai Walt Disney . E como não queria perder a capacidade de improvisação de seu velho amigo Johnny Depp, e a vitalidade que vem de um bando de atores interagindo – o equivalente a gravar um álbum ao vivo- Verbinski e a ILM inventaram um sistema entre o mocap e a animação digital, captando interpretações ao vivo de todo o elenco que serviram de base para criação de suas personas digitais.

Há tempos este sistema é usado por animadores tradicionais e digitais como base de sequencias mais complexas – a valsa entre Bela e Fera, por exemplo, no longa de 1991. Sem um passado de animador, Verbinsky olhou para o recurso como uma ferramenta criativa nova, que poderia ancorar toda a sua saga de habitantes do deserto vivendo uma saga meio Chinatown, meio Sergio Leone e um tanto Carlos Castañeda. O resultado é um filme que, além de maravilhoso por si mesmo, está sendo abracado entusiasticamente pelas plateias. Como merece.

Mais Rango no próximo.


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