Entre o fascismo e a compaixão: O Mestre por Paul Thomas Anderson
Ana Maria Bahiana
Muitos e muitos anos atrás, quando Paul Thomas Anderson era o inacreditavelmente jovem (29 anos) diretor lançando seu terceiro longa- o poderoso Magnolia, até hoje um dos meus filmes favoritos de qualquer época – eu lhe fiz uma pergunta que teve um resultado inédito em minha longa carreira de conversas com pessoas criativas: ele desatou a chorar.
A pergunta era sobre algo que, para mim, parecia claro como o dia: que sua obra tinha como um de seus temas fundamentais a familia, fosse ela por sangue, escolha ou acaso. A explosão emocional se explicava pela intensidade de Magnolia, na qual, entre outros fios narrativos, ele comentava a morte recente (por câncer) de seu pai, Ernie Anderson, uma estrela menor mas super cult do rádio e da TV, e um homem com uma vida tão intensa e multi-facetada quanto qualquer personagem dos filmes de seu filho.
Pais e filhos, familias consanguíneas ou inventadas continuaram a povoar a obra de Paul Thomas Anderson, e são um dos riffs centrais de O Mestre, que estreia hoje no Brasil. Além do comentário sobre a criação de uma “tecnologia psicológica” que, como PTA confirma aqui, é inspirada no nascimento da Cientologia e seu “mestre”, o escritor de ficção científica L. Ron Hubbard, O Mestre é mais uma história de familias reais e inventadas : um homem à deriva (Joaquin Phoenix), vagando por um país onde não consegue se ancorar, em busca de algum sol que possa orbitar; e uma figura carismática (Philip Seymour Hoffman), um pater familias por excelência, cada vez mais fracionado pelo peso de suas múltiplas responsabilidades.
Numa ensolarada tarde de outono em Los Angeles, PTA conversou (sem lágrimas) sobre familias, música, os anos 1950 e Cientologia.
O que inspirou você a fazer um filme sobre o início dos anos 1950?
_Foi um período inebriante na história dos Estados Unidos, uma época de grande prosperidade e poder como o país ainda não tinha visto. Os anos 1950 são como uma força da gravidade para mim : eles me atraem, prendem minha atenção. Eu não sinto a mesma coisa por, por exemplo, filmes que se passam na Inglaterra medieval. Eu gosto de ver filmes assim, me divirto,mas eles não me prendem como qualquer coisa que se passe nos anos 1950 me prende. Alguma coisa nessa era, a música, os automóveis, o modo como as pessoas se vestiam… isso é como um alimento para mim. É lindo, é adorável. É a época do meu pai, ele cresceu ouvindo muito da música que usei no filme. Os detalhes desse tempo me parecem mais ricos. As músicas também.
Em todos os seus filmes a música tem um papel muito importante. Como você escolheu as canções que fazem parte de O Mestre?
_Escolhi cada canção do filme com enorme cuidado, exatamente pelo que elas acrescentavam a cada cena. As canções dos anos 1950 são quase todas sobre ‘vamos nos ver novamente’, ‘um dia você vai voltar’, ‘vejo você nos meus sonhos’, ‘vamos nos encontrar algum dia’. São letras elegantes de um modo como letras de canções não são mais. São canções de guerra, de tempos de separação, e me pareceram extremamente adequadas ao que, para mim, é o caso de amor sem saída entre o Mestre e Freddie. Especialmente “Slow Boat to China”, que é uma escolha muito importante do Mestre. Eu ajudei o Mestre a escolher, é claro mas… a letra faz tanto sentido para mim.
O Mestre é uma figura extremamente contraditória. Como você o concebeu?
_ Existem duas ideias que são atraentes para mim na figura do Mestre. Há uma tensão entre essas duas ideias que foi a base de todo o roteiro. Uma é a ideia do pavor do fascismo, consequencia direta da guerra. Qualquer grupo de pessoas em torno de alguém carismático era visto como uma ameaça em potencial, um perigo. A outra é a natureza complexa do próprio Mestre. Eu não acho que, pelo menos no princípio, ele seja egoísta. Acho que ele está genuinamente interessado em ajudar as pessoas, mas na medida em que essa ideia se torna cada vez maior e maior e maior fica cada vez mais difícil controlar o que ele está realmente fazendo. As pessoas não querem mais apenas que ele proponha perguntas interessantes, mas que dê as respostas. E quando ele começa a dar respostas, ele mentalmente vai para um outro lugar muito mais perigoso, onde ele acha que precisa controlar tudo à sua volta…e sem que ele perceba ele cai no modelo fascista de líder.
O Mestre é L. Ron Hubbard (o criador da Cientologia)?
_ Ele tem muita coisa de Hubbard. Não tenho o menor receio de dizer isso. Muita coisa mesmo. Mas é engraçado que, quando eu fiz Sangue Negro, que era inspirado numa pessoa, Edward Doheny, ninguém me perguntou sobre a conexão, ninguém se importou, ninguém conhecia Doheny. E lá como neste filme há muitas semelhanças e um monte de diferenças, mas este tópico desperta a atenção das pessoas. No caso de O Mestre, há muita semelhança física entre Philip Seymour Hoffman e L. Ron Hubbard. Muitas das ideias que Hubbard divulgou no início de seu trabalho com Dianetics estão no filme , principalmente a ideia de que é possível acessar vidas passadas onde ocorreram traumas que podem estar prejudicando sua vida no presente. Suas atividades com seus primeiros seguidores também são muito semelhantes. Por outro lado, Hubbard não bebia. E eu não tenho a menor ideia de como era sua vida privada _ nessa hora é preciso que o escritor em mim assuma controle da narrativa e crie meu próprio personagem.
Você pertence à Cientologia?
_ Não. Não é meu jeito me filiar a coisa alguma. Tenho medo de me ligar a uma única coisa, uma ideia. Sou feito um ladrão – gosto de pegar ideias e conceitos aqui e ali que podem me ajudar. Mas li Dianetics e, numa época da minha vida, o livro me ajudou muito. Uma ideia especialmente me agrada muito: de que somos espíritos eternos movendo-nos de um corpo para outro. Acho uma ideia incrivelmente repleta de esperança. Quer dizer que quando você morre você não está morto, apenas indo para outro lugar.
Foi por isso que você fez este filme?
_ Foi uma das razões, sim. Na verdade toda vez que começo a trabalhar num filme eu tenho essa vontade de que o projeto seja algo inteiramente novo, algo que nunca fiz antes. E você termina o projeto e vê que na verdade todas as suas preocupações estão lá, de um modo ou de outro. Eu não faria um filme sobre algo que eu achasse banal. Obviamente a ideia de uma figura carismática como o Mestre, a dinâmica entre suas ideias e o mundo à sua volta é algo que me interessa. Minha curiosidade sobre as ideias que inspiraram Hubbard e seu tempo guiou o projeto. Eu só consigo escrever sobre algo que me deixa curioso.
Muitos anos atrás, na época do lançamento de Magnolia, eu fiz uma pergunta a você que o deixou muito emocionado. Posso repeti-la?
(Sorrindo)_ É, eu me lembro. Pode sim.
Então lá vai: a familia parece ser um tema central de sua obra. Por que?
_ Eu mesmo estou nesta busca. Como disse, toda vez que me proponho a começar um novo trabalho, eu quero fazer algo que nunca fiz antes. E toda vez que concluo o projeto eu vejo que alguns temas são constantes. E eu ainda não sei por que. O que sei é que familias são um excelente condutor para uma história. É um tema que está em toda a história da dramaturgia, familias em luta, familias em crise…. É sempre um assunto apetitoso. Eu venho de uma familia muito, muito numerosa e esse universo sempre foi uma parte essencial de quem eu sou. O que exatamente, que parte é essa… ainda é um misterio para mim. Mas um mistério que vale a pena explorar…