Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : Gravidade

Quem vai ficar com Oscar? (Quase) todas as possibilidades, aqui.
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Ana Maria Bahiana

Primeiro as más notícias: não vai ter Oráculo este ano. Sinto muitíssimo _ é uma coisa que adoro e que aguardo com prazer todos os anos. Mas este ano não vai ser possível por conta de… esta boa notícia: capa-Almanaque-1964   Meu novo livro, Almanaque 1964, que sai neste mês de março, pela Companhia das Letras, e que vou lançar em pessoa, no Brasil (tem Kubrick! Glauber! My Fair Lady! A Hard Day’s Night! James Bond!).  Os preparativos para a viagem e o lançamento, mais o fato do Oscar ser mais tarde, este ano (culpa das Olimpíadas de Inverno…) não me dão o tempo que preciso para coordenar e apurar o Oráculo, este ano.. Mas como eu sei que vocês vão com certeza fazer suas apostas, e como estou devendo resenhas de um monte de filmes na disputa deste ano, aqui vai um combinado opinião/perspectivas dos principais títulos da safra 2013-2014. slaveabre 12 Anos de Escravidão. Já disse aqui que para mim é o filme do ano. Não é, contudo, uma obra fácil. O acadêmico que reagiu ao filme de Steve McQueen como “violence porn” se equivocou espetacularmente: violence porn são os filmes – tantos, tantos- que usam a violência, a tortura e o sofrimento como espetáculo e entretenimento. McQueen faz o oposto aqui: seu olhar desassombrado sobre os 12 anos em que Solomon Northup, um homem livre, viveu como escravo é apavorante exatamente porque mostra a famosa banalidade do mal, a naturalidade como, em nosso passado como seres humanos, achávamos perfeitamente normal que um de nós pudesse ser dono de outro como se é dono de um objeto qualquer. É um filme poderoso, de enorme beleza – uma contradição estética que só faz acentuar o imenso abismo moral no seu centro- repleto de desempenhos notáveis. Meu único, diminuto problema (diante da enormidade da qualidade do restante) são as aparições de Brad Pitt no final (mas ele é um dos produtores do filme, o que explica talvez porque, entre tantas opções, McQueen ficou com ele mesmo para o papel do marceneiro canadense…). A campanha: Depois de um trabalho focado nas qualidades individuais dos talentos do filme e em seu desempenho em outras premiações, a Fox pegou pesado nos últimos dias da votação (que terminou ontem) com cartazes de rua e anúncios que apelam para a consciência dos votantes. “Está na hora”, é o tema – insinuando que está na hora de uma virada, do reconhecimento de um filme que tem diretor, elenco e tema negros. slave As chances: Apesar de suas nove indicações e da força de sua qualidade, 12 Anos pode ser um filme árduo demais para ser vitorioso como merece. Lupita Nyong’o e Chiwetel Ejiofor (atriz coadjuvante , ator), e John Ridley (roteiro adaptado) tem as melhores chances, e a direção de arte é uma possibilidade.   gravity Gravidade Minha resenha está aqui e não mudei meu ponto de vista. É um belo filme, sobretudo por algo que a Academia adora: a audácia técnica. Numa segunda visão, a forma ultrapassa largamente o conteúdo, mas há bons filmes assim – em que o modo como se conta a história É a história. A campanha: Desde sua estreia em Veneza ( em agosto de 2013) o filme de Alfonso Cuarón  se firmou como o franco favorito da safra 2013. E o que acontece com um franco favorito, especialmente numa temporada-ouro excepcionalmente longa como esta? Lá pelo meio do caminho, na reta final quando os votantes estão fazendo suas últimas escolhas e os indecisos são mais influenciáveis, começam a aparecer, “não se sabe de onde” gritos e sussurros desmontando o filme. O principal argumento contra dessa anti-campanha tem sido a “inexatidão científica” do filme. Vai fazer danos? Pequenos, creio. O filme ainda permanece na pole. As chances: Ainda é o filme que os demais tem que derrotar. Cuarón como melhor diretor é uma certeza. Muito boas probabilidades em filme, fotografia, montagem, efeitos e som. Sandra Bullock? Não creio. Esse é de Cate Blanchett, este ano. ahustle Trapaça: Não sei sobre vocês, mas ainda não entendi o que as pessoas por aqui vêem em David O. Russell. E não é porque ele é uma pessoa desagradável (no mínimo): é porque, como realizador, numa geração que tem, por exemplo, Paul Thomas Anderson, Spike Jonze e Wes Anderson, ele é o diretor mais sem personalidade que conheço. Tendo dito isto, Trapaça é a melhor coisa que ele fez desde Três Reis. O que não quer dizer muita coisa. O roteiro – baseado em fatos reais acontecidos durante uma investigação do FBI nos anos 1970- é bem montado, tem estrutura sólida. Pena que Russell cismou que dessa vez queria ser Scorsese. Cópia já é ruim, com talento reduzido fica pior  – o resultado é essa quase-sátira do olhar scorseseano, com todo mundo representando over e um festival de perucas. É um mistério pra mim como conseguiu chegar tão longe. A campanha: Trapaça fez uma das campanhas mais agressivas, talvez a mais agressiva desta temporada. Mimos, jantares, celebrações, anúncios diários, aparições dos atores em talk shows, festas, desfiles. Só faltou batizado e inauguração de supermercado. Suspeito que o pico do favoritismo tenha sido em janeiro, quando meus colegas do Globo de Ouro caíram no engodo. Agora… não sei. As chances: Se o Oscar fosse mais cedo este ano Trapaça seria um rival sério para Gravidade e 12 Anos de Escravidão como melhor filme, embora esteja numa galáxia muito, muito distante desses dois. Agora vejo oportunidades para Amy Adams (atriz) e, menos, Jennifer Lawrence (atriz coadjuvante). capitao Capitão Phillips: Confesso – fui ver com o pé atrás. Não aguento mais filme sobre heroísmo americano e suas consequentes ações bélicas. Também acho os acontecimentos que o inspiraram – o ataque pirata a um cargueiro norte americano nas costas da Somália, em 2009 – recentes demais para serem digeridos numa narrativa ficcionalizada. Mas Paul Greengrass me ganhou bonito, com um plano que, logo no começo do filme, diz sobre o que Capitão Phillips realmente é: aquela imagem poderosa de um barquinho minúsculo praticamente esmagado, visualmente, pelo gigantesco cargueiro. Nem tanto “piratas” contra “heróis”: mais sobre quem tem demais contra quem não tem nada, e as visões de mundo que essas vidas forjam. Ao fechar o foco no duelo de visões e coragens de Phillips e  Muse, dois capitães com diferentes perspectivas sobre suas respectivas missões, Greengrass criou um drama que, ao contrário de uma patriotada, vale a pena ver. A campanha: O filme tem crescido nesta etapa final, apresentando-se como uma opção para os indecisos. E por isso ganhou a necessária anti-campanha, com matérias “espontâneas” sobre as imprecisões factuais do filme. As chances: A grande surpresa da temporada é Barkhad Abdhi, um desconhecido não-ator (era motorista de limusine até fazer o teste para o papel) nascido na Somália e morador de Los Angeles. É o principal rival de Jared Leto para ator coadjuvante. Montagem e som são possibilidades também, assim como o roteiro adaptado de Billy Ray. her Ela. Que delicia de filme! Que presente inesperado numa época em que a opção estética dominante oscila entre a ironia e a amargura! Spike Jonze poderia ter feito algo irônico ou amargo com a premissa do escritor solitário e tímido que se apaixona por seu sistema operacional falante. Mas não foi assim que o filme me falou. Do otimismo de um futuro próximo humano, numa cidade habitável (torço para que Los Angeles do futuro seja assim mesmo… menos as calças de cintura alta…) à palheta de cores vital e saturada Jonze está me dizendo que toda maneira de amar vale a pena. E que estamos às vésperas de ingressar numa era em que noções restritas de “pessoa”, “afeto”, “desejo” e “dimensão” vão definitivamente para o espaço. Ou para onde Ela mora. A campanha: Ela sempre foi o xodó cult, dos votantes mais jovens e menos impressionáveis pelas campanhas. Permaneceu estável nesse patamar, consistentemente, durante toda a temporada. As chances: É o franco favorito para roteiro original, com justiça. Direção de arte também é uma possibilidade. E também: philo O Lobo de Wall Street. Minha resenha também não mudou nada com o tempo. Pelo contrário. Cresceu em popularidade nas últimas semanas (espero que com a turma que se decepcionou com Trapaça…) e está sendo vítima de uma das mais violentas anti-campanhas da temporada (súbitas críticas de que o filme é “vil” e “enaltece a desonestidade”). Leonardo di Caprio tornou-se um candidato real ao Oscar de melhor ator. Mas será que leva?

Nebraska. Alexander Payne engana. Você acha que está vendo uma coisa que já conhece e que sabe o que vai acontecer e aí… Quando você vê o filme cravou as garras no seu coração e te pegou por lados completamente inesperados. Nebraska é exatamente assim: um bilhete de amor à ríspida paisagem – física e humana- do centro-norte americano, onde Payne nasceu e cresceu. E uma meditação sobre gerações, e como seremos aquilo que nossos pais são. Bruce Dern, num desempenho precioso de um papel muito difícil, é querido por muita gente na Academia. Eu queria muito ver mais um prêmio para Nebraska, mas acho que vai ficar por aí.

 

Clube de Compras Dallas vale pelo tema; a complicada história de sua produção deve encantar os votantes, assim como os desempenhos carismáticos de Matthew McConaughey e Jared Leto, os favoritos para melhor ator e melhor ator coadjuvante.

 

Philomena saiu-se muito melhor do que eu estava esperando – temia que Stephen Frears fosse sair pelo lado “engraçado” do choque cultural entre o jornalista cínico e a senhora de poucos recursos em busca do filho que foi forçada a entregar para adoção. Pelo contrário: a profundidade e delicadeza da trama são tocantes, e Judi Dench conta toda a história com um olhar. Mas não vejo o que possa ganhar.   Bom carnaval pra quem é de carnaval, bom Oscar pra quem é de Oscar. Vejo vocês lá no Teatro Dolby. Segunda a gente conversa…


Como fica a disputa do Oscar depois dos prêmios dos produtores
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Ana Maria Bahiana

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O empate de ontem nos prêmios da Producers Guild – o primeiro na história do prêmio – confirmou uma teoria que lancei aqui faz tempo: a de que todo ano a disputa do Oscar, reta final da Corrida do Ouro, se dá entre dois filmes que polarizam as opiniões dos votantes e significam, muitas vezes, realizações diferentes do mesmo tema.

O tema deste ano sendo “sobrevivência”, 12 Anos de Escravidão e Gravidade  se encaixam perfeitamente. A questão agora é – o que vai acontecer com Trapaça, que vem correndo por fora com grande ânimo?

Temos seis semanas pela frente até o Oscar, e as campanhas, agora, vão partir com tudo para a briga. Frozen já está bem estabelecido como o vitorioso da animação. Entre os atores, Cate Blanchett, Matthew McConaughey e Jared Leto são os donos da bola, mas eu ainda não descartaria Amy Adams, Chiwetel Ejiofor e Michael Fassbender. Entre as atrizes coadjuvantes, a disputa é entre Lupita Nyong’o e Jennifer Lawrence, e, por enquanto, as duas estão empatadas.

Temos ainda,até 2 de março (contando apenas os premios das Guildas, que tem impacto direto sobre os Oscars, por incluirem os mesmos votantes):

  •  Directors Guild, dia 25 (diretores). Ajuda a definir a preferëncia entre diretores e reforça as possibilidades do filme que o vencedor dirigiu. Cuaron e McQueen (Gravidade e Escravidão respectivamente) não são americanos… será que isso vai desempatar para David O. Russell (espero que não).
  •  Annie Awards, dia 1 de fevereiro (animadores). Frozen vai levar mais esse.
  •  Writers Guild, 1 de fevereiro (roteiristas) Nem  John Ridley (Escravidão)  nem os Cuaron pai e filho estão for a dessa graças à antipaticíssima regra que só permite o voto em membros da WGA. A vantagem é de Trapaça, mas a exclusão dos dois outros favoritos pode diminuir o peso da premiação na hora de definir tendências.
  •  VES Awards (efeitos especiais), 12 de fevereiro. Gravidade tem a vantagema aqui – independente de ganhar ou não, Cuarón receberá um troféu especial como “visionário”.
  •  ACE Eddie Awards (montadores), 15 de fevereiro. Os três principais competidores estão na briga, e dois deles podem ser premiados – a ACE tem categorias separadas para drama e comédia.

E lembrem-se: em qualquer um desse prêmios que tenha categoria “TV”, podem cravar Breaking Bad. É a única unanimidade certa deste ano. E com razão.


Vivendo no passado: meus 10 filmes favoritos de 2013
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Ana Maria Bahiana

Não posso começar este post sem antes pedir desculpas pelo meu sumiço – estou na reta final da criação de um novo livro, dessa vez para a Companhia das Letras, e, embora o trabalho seja fascinante e cheio de prazer, também é super complexo e exige todo o meu tempo e atenção.

De um modo muito interessante, contudo, o trabalho no livro deu forma, sem a menor dúvida, a este post. O livro é sobre o passado, sobre o ano de 1964. Mergulhar no passado, coisa que não faço a não ser a serviço, teve um resultado parecido como o que me aconteceu quando escrevia o Almanaque dos anos 70 : me fez entender muito melhor o presente, e refletir sobre o peso do passado na minha vida.

Não é por acaso, acho, que todos os filmes desta lista sejam, na verdade, sobre o passado: sobre como as coisas vividas, as emoções, desejos e crenças que trazemos conosco definem nossas escolhas, emoções, desejos e crenças, hoje. Sim, O Passado, de Asghar Farhadi, está lá. A permanência do filme comigo, enquanto escrevia o livro, me deu a pista de que eu estava envolvida com o tema de uma forma muito mais profunda do que eu imaginava.

Uma nota: não sei se esses são os melhores filmes do ano. Eles são os que mais falaram comigo, e isso é tudo o que me aventuro a dizer. Já tem muita lista de melhor isso e aquilo por aí afora. Esta é apenas uma escolha completamente pessoal – façam agora as listas de vocês!



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12 Years a Slave, Steve McQueen.  Com o olhar distanciado de alguém que não tem o peso da escravidão em sua narrativa familiar e o talento e a disciplina de um verdadeiro realizador, McQueen faz o filme mais visceral, brutal, lírico e importante sobre o tema. Perdôo até os dez minutos de Brad Pitt com cara de Jesus Cristo de santinho. 

Ela (Her), Spike Jonze. Estranho, romântico, mais que um pouco assustador, Jonze explora ao mesmo tempo nosso fetiche pela tecnologia e a insustentável leveza do ato de se apaixonar. Pontos extras para a direção de arte, alucinante.

A Grande Beleza (La Grande Belleza) , Paolo Sorrentino. Fazer o inventário da vida que se construiu enquanto fazíamos outros planos possivelmente só é lindo assim em Roma, com o olhar de Sorrentino. Pontos extras para uma das melhores utilizações de trilha sonora e musical que vi/ouvi este ano.

Gravidade (Gravity), Alfonso Cuarón. Se fosse apenas pela audácia técnica eu já estaria comovida, porque, nerd que sou, me comovo com essas coisas. Mas não é só isso: é a dimensão exata de uma vida humana, no colo do cosmos.

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The Wind Rises (Kaze tachinu), Hayao Miyazaki. O ato de voar, tema comum a toda  obra do mestre Miyazaki, transcende aqui a biografia de uma pessoa ou do que ela fez – o engenheiro Jiro Horikishi e as aeronaves que desenhou e que se tornaram algumas das mais eficazes armas bélicas do Japão na Segunda Guerra Mundial- para se tornar um gesto de pura poesia sobre o desejo de ir além de nossas limitações.

Nebraska , Alexander Payne. Os filhos que somos são também os pais que seremos amanhã : o ciclo da vida e as possibilidades da compaixão no microcosmo de uma família que talvez não seja muito diferente daquela onde Payne, nativo de Omaha, Nebraska, nasceu.

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O Lobo de Wall Street  (The Wolf of Wall Street), Martin Scorsese. Que bom ver Marty voltar ao seu habitat natural: sociedades fechadas de pessoas absolutamente sem bússola moral, em queda livre e gargalhando até o fundo do poço.

Alabama Monroe (The Broken Circle Breakdown), Felix Van Groeningen. Amor e perda num profundo e dilacerante musical onde cada canção impulsiona a história para sua inevitável estação final.

O Passado (Le Passé), Asghar Farhadi. Aula mestra de como contar uma história não com o complexo de divindade das fórmulas feitas mas com a complicada imperfeição da vida das pessoas.

Fruitvale, A Última Parada (Fruitvale Station), Ryan Coogler. Se todos os anos eu tiver um filme de diretor estreante dessa categoria, serei sempre uma pessoa otimista.


Os filmes da temporada ouro: Gravidade
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Ana Maria Bahiana

A temporada-ouro começou. Mesmo sabendo que uma grande parte destes filmes só estrearão no Brasil em 2014, vou procurar manter vocês atualizados com resenhas dos títulos mais importantes da temporada.

Terra, Terra/ Por mais distante o errante navegante/quem jamais te esqueceria” – Caetano Veloso, “Terra”

 

Os primeiros minutos de Gravidade (Gravity, 2013) são tomados primeiro pela escuridão absoluta, depois por uma única imagem: o azul profundo do planeta Terra, coberta de nuvens como na canção de Caetano, girando lentamente no silêncio abissal do espaço. Nada mais é preciso para estabelecer a narrativa que vai  ocupar os próximos 90 minutos – certamente entre os mais rápidos na vida de qualquer espectadora ou espectador. É aqui que estamos: suspensos onde aquilo que torna possível nossa humanidade é algo distante, intocável, e o abismo está por toda parte, crivado de luz e ocasionais vestígios da passagem de nossa espécie.

A Terra, que ocupa quase todos os quadros deste elegantíssimo e absurdamente bem feito exercício em sci-fi filosófico, é, na verdade, o tema recorrente de sua trama. Suspensos  no vazio ao redor de um ônibus espacial, aquele azul imenso ao fundo, a engenheira médica Ryan (Sandra Bullock) e o veterano astronauta Matt (George Clooney) conversam menos sobre a tarefa que os ocupa e mais sobre o planeta acima do qual flutuam. O que ela, Terra, é, a gravidade com que atrai as vidas, emoções e desafios de seus filhos, tão doidamente distantes de seu abraço, são o que acaba nos prendendo completamente à trama, além da exatidão dos efeitos, além da estranha beleza desse cenário completamente novo.

Mesmo quando, em seu terço final, o filme ameaça flertar com o esquema “mais é melhor”, atirando todo tipo possível de obstáculo na direção da pobre Ryan, continuamos inteiramente comprometidos com ele por esse motivo simples: porque, com imagens poderosíssimas, ele nos dá a real dimensão de ser humano longe de casa.

Cuarón, fã de pesquisa espacial, confessa ser admirador fanático de 2001: Uma Odisséia no Espaço, a obra prima de Stanley Kubrick que, nos idos de 1968, nos deu pela primeira vez a real dimensão do que a vertigem do espaço representava para nossa espécie, em termos físicos, emocionais e existenciais. Cuarón também diz que evitou rever 2001 enquanto trabalhava em Gravidade por “puro medo. Não há comparação. O filme de Kubrick é um extraordinário ensaio filosófico. Eu ficaria completamente petrificado se sequer pensasse nele enquanto realizava Gravidade.”

E no entanto, os dois filmes têm muito em comum, começando pelo salto quântico que cada um deles trouxe para os efeitos visuais. 2001 foi diretamente responsável pela nova dimensão que os filmes de ficção científica tomaram a partir dos anos 1970. Gravidade mostra o que é possível fazer neste momento, na encruzilhada entre arte e ciência, entre o que a exploração espacial nos informou, o que a tecnologia digital realiza e o que um realizador imagina.

Mas isso seria um exercício frio se Cuarón, realizador sensível, não desse um coração profundamente humano ao seu filme. Matt e, especialmente, Ryan, tem tanto de cada um de nós que sua odisséia, seu naufrágio no oceano sem fim acima da Terra, nos toca e nos prende. Ficamos, como eles, pequenos, frágeis, desorientados, procurando o amparo da ciência e da tecnologia mas no fim descobrindo apenas uma coragem animal que, contraposta àquele imenso disco azul girando ao fundo, se torna radicalmente comovente.

Um dos grandes trunfos de Gravidade é seu uso do som. Como Kubrick, Cuarón mantem-se fiel à realidade de que, no espaço, não há som. O que ouvimos é o que captam os microfones nos trajes espaciais dos personagens – e, novamente como Kubrick, Cuarón usa a sonoridade e o ritmo da respiração como um recurso dramático da mais alta eficiência. O silêncio do espaço é quebrado apenas pela nossa presença, pela intrusão humana – mesmo a trilha musical é usada economicamente.

Considerando que Gravidade é um tour de force praticamente solo de Sandra Bullock e que em nenhum momento damos um passo atrás em nossa empatia com ela,posso dizer que aí está um caso raro em que a tecnologia digital não limitou, mas expandiu o trabalho humano. Mais um ponto: o excelente 3D, que não distrai, não interfere, apenas contribui para a completa experiência do filme.

E, no fim das contas, Gravidade – de novo como 2001, ou como Solaris, de Tarkovsky, que Soderbergh refez em 2002, com George Clooney – é sobre vida e morte. Mérito de Cuaron por realizar, com enorme precisão e delicadeza, o paralelo entre flutuar em  zero gravidade no ventre do espaço e flutuar em líquido amniótico no ventre materno, onde outros cordões nos prendem à sobrevivência, ao que tem peso, pulso, oxigênio, terra.

Gravidade estréia nos Estados Unidos dia 4 de outubro e no Brasil dia 11 de outubro.


O festival de Telluride anuncia: o fim de ano promete
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Ana Maria Bahiana

 

Este fim de semana é o feriadão do Dia do Trabalho nos Estados Unidos e Canadá _ e embora oficialmente o verão no hemisfério norte só termine com o equinócio, dia 21 de setembro, este é, para todos os efeitos, o final das férias e da temporada pipoca do meio de ano.

O que quer dizer duas coisas: a ansiosa contabilidade da bilheteria da pipocada (previsão: sujeita a tempestades de ira e ranger de dentes) e a chegada do grande oráculo da temporada-ouro- o Festival de Telluride.

Todo ano eu falo dele aqui (podem procurar nos arquivos) porque todo ano cresce minha admiração por este evento pequeno, altamente curatorial, movido unicamente por uma enorme paixão pelo cinema. Não há mercado, não há grandes festas, lançamentos, tapetes vermelhos, badalações. Completando 40 anos neste fim de semana e inteiramente apoiado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, tudo o que Telluride oferece é cinema da maior qualidade, numa cidadezinha histórica com arquitetura do Velho Oeste, no alto das Montanhas Rochosas.

E sempre, todos os anos, as escolhas do festival antecipam as escolhas dos prêmios da virada do ano. Antes mesmo dos Globos de Ouro – os primeiros a anunciar seus indicados, em meados de dezembro – a seleção de Telluride aponta claramente quais os títulos de peso na segunda metade do ano. E um índice muito alto deles acaba colecionando indicações e estatuetas lá no final da temporada-ouro…

Por isso, vale a pena sempre ver quem vai subir a montanha neste final de semana.

De imediato, acho muito interessante ver dois filmes que exploram basicamente o mesmo tema – a absoluta solidão de um ser humano diante de forças infinitamente maiores – com destaque em Telluride. All Is Lost, de J.C. Chandor (Margin Call), que foi sucesso em Cannes,  é um projeto com quem tenho uma relação pessoal, e que amei desde que li o roteiro: é O Velho e o Mar, de Hemingway, numa dimensão mais íntima, com Robert Redfotrd como o Velho e o Mar como o infinito com o qual não há negociação, apenas aceitação.

É esse mesmo o tema de Gravidade, de Alfonso Cuarón, que, neste momento, está arrasando em Veneza. Sandra Bullock é a astronauta à deriva no oceano do espaço, num desempenho que, suspeito, vai colocá-la na mesma lista onde já está Cate Blanchett por Blue Jasmine

Olho vivo também em Nebraska, de Alexander Payne (foto), que, aposto, vai fazer de Bruce Dern um indicado entre os atores, e Inside Llewyn Davis, que foi Grand Prix em Cannes.

Um punhado seleto de filmes não-americanos estará em Telluride, aumentando sua exposição na temporada ouro. Destaque principalmente para Blue Is The Warmest Color, o vencedor de Cannes que está sendo agressivamente divulgado aqui e em Nova York, desde já; The Past, de Ashgar Farhadi; o chileno Gloria, de Sebastian Lelio, e o britânico The Invisible Woman, sobre a amante secreta de Charles Dickens, estrelado e dirigido por Ralph Fiennes.

E assim vai terminando um verão de sustos e surpresas, já desenhando um outono bem mais interessante…


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