Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : dezembro 2012

A última safra do ano, parte I: uma visita ao inferno. E à Terra Média.
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Ana Maria Bahiana

Todo mundo que acha que tem chance de ganhar alguma coisa –uma indicação, no mínimo – lança filme nos últimos instantes do ano. E, como comentei há pouco no twitter, a estratégia, de tanto ser repetida nos últimos anos, treinou bem os votantes: porque estreou entre novembro e dezembro, muita gente se sente na obrigação de indicar.

Passei a peneira nos lançamentos “para sua consideração” que encheram meu calendário nestes últimos quinze dias e apenas alguns ficaram. Estes dois foram os primeiros:

A ideia de um filme sobre a caçada a Osama Bin Laden me pareceu, a princípio, prematura, imatura e possivelmente mal intencionada. Me lembrei da safra de filmes lançados nos anos imediatamente a seguir dos ataques do 11 de setembro, que me pareciam, todos, mal disfarçadas peças de propaganda. Ver A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty)  me obrigou a rever todos os meus temores.

Trabalhando mais uma vez com um roteiro de Mark Boal (Guerra ao Terror), Kathryn Bigelow mantem seu olhar ao mesmo tempo compassivo e impassível.

Os primeiros 20 minutos de Hora são absolutamente brutais e absolutamente necessários: os gritos e gemidos (verdadeiros) das pessoas encerradas nas Torres Gêmeas são mais eloquentes que qualquer imagem, e dissolvem-se em outros gritos e gemidos, os de um prisioneiro sendo torturado num dos muitos “centros especiais de confinamento” que se seguiram, na era Bush, aos ataques do 11 de setembro. Estamos num verdadeiro círculo do inferno descrito por Dante, onde violência sem sentido dá origem a mais violência sem sentido, onde carnificina gera tortura que gera mais carnificina.

É fútil (ainda bem) procurar uma agenda política em Hora. Bigelow conduz a história como um thriller do qual conhecemos o final mas não a trajetória, e seu olhar – as escolhas de composição, o ritmo das sequências – mantem-se equilibrado, pedindo que nós, na plateia, pensemos e tiremos nossas conclusões.

Boal usa um artifício comum em histórias baseadas em fatos verdadeiros: sintetiza várias pessoas em uma só, criando personagens fictícios que representam várias facetas dos reais protagonistas (algo ainda mais importante aqui, quando as fontes eram altamente confidenciais). Mas Maya, a protagonista interpretada (maravilhosamente) por Jessica Chastain é uma pessoa de verdade, uma funcionária do médio escalão da CIA cuja tenacidade e inteligência  levaram à localização de Bin Laden.

É facil notar a identificação de Bigelow com Maya – mulheres no centro de um mundo dominado por homens, conscientes de que suas meras presenças são sinais de mudanças radicais. Chastain é uma atriz de sutilezas, que Bigelow explora muito bem : há uma multidão de emoções em seu rosto, do horror à fúria, da repulsa à revolta. Mas sobre todas elas reina o autocontrole de quem sabe que, numa visita ao inferno, quem não se distancia se queima.

 A Hora Mais Escura estreia dia 14 nos EUA e dia 18 de janeiro no Brasil.

Alguns filmes tem um poder especial pelo menos sobre mim, não sei se sobre vocês: eles imediatamente me remetem aos primeiros anos do meu caso de amor com o cinema, quando ver um filme era me perder num outro mundo. O Hobbit (The Hobbit: An Unexpected Journey) teve esse efeito.

O que não é pouca coisa _ sou fã da trilogia Senhor dos Anéis, mas não gosto do livro O Hobbit. Sempre me pareceu uma obra superficial, apressada, com ideias que não eram plenamente desenvolvidas e um tom infantil que contrasta com o poder metafórico, adulto, de Senhor dos Anéis.

Talvez tudo o que o livro precisasse fosse mesmo o talento combinado das roteiristas Fran Walsh e Philippa Boyens e do diretor Peter Jackson. Está certo que ainda acho Senhor dos Aneis superior como obra mas, ao incorporar as notas e material inédito deixados por Tolkien, Walsh, Boyens e Jackson deram mais detalhe aos personagens e à trama, e fizeram a conexão com o mundo da Terra Média que se desenvolveria, de modo mais complicado, na trilogia.

Ainda acho, também, que, mesmo com essa nova perspectiva, O Hobbit dificilmente aguenta três filmes. Suspeito que, em circunstâncias diferentes, Jackson não teria esticado a primeira metade do seu filme como fez. Mesmo com todo o seu esplendor visual (mais sobre isso daqui a pouco) o filme só pega embalo mesmo quando Bilbo (Martin Freeman) e a companhia de anões liderada por Thorin (Richard Armitage) despencam terra abaixo pelo reino dos goblins, e nosso herói se vê cara a cara com aquele que, para mim, é o personagem mais fascinante de toda o ciclo de histórias: Gollum.

Neste momento eu faço uma pausa para lamentar, pela milionésima vez, o não-reconhecimento de Andy Serkis como um dos melhores atores que temos, hoje, e o pioneiro no desenvolvimento da complicada arte de criar um personagem através de mocap. Hobbit torna-se fascinante, terrível, empolgante a partir do momento em que o Gollum de Serkis esgueira-se de trás das rochas num lago subterrâneo e propõe a Bilbo um jogo de enigmas ( elemento clássico de toda boa lenda). Num mundo que, até então, era habitado unicamente por criaturas fantásticas, o Gollum de Serkis é supreendentemente humano, um ser aprisionado nas cavernas de seu próprio espírito. É o primeiro personagem com todo o fôlego metafórico que Tolkien imprimiria a trilogia Senhor dos Anéis, e sua entrada em cena eleva O Hobbit a um outro plano do qual, com todos os sustos, não queremos mais sair.

E os 48 quadros por segundo? Não me incomodaram nem um pouco. O hiper-realismo que eles dão às imagens tem uma qualidade que aproxima o fantástico de nossa visão cotidiana, como se um dia pudéssemos de fato acordar numa toca debaixo de uma colina e achá-la tão real quanto a geladeira, o microondas e a TV de nossas casas habituais. No 48 fps as sofisticadas composições digitais se integram naturalmente com as imagens captadas de modo tradicional, e os mundos da imaginação e da percepção se abraçam e se confundem.

Não é opção estética para qualquer filme. O 48 fps mataria, por exemplo, a sensacional composição naturalista que Cristian Mungiu imprimiu ao seu Além das Montanhas  (que estreia no Brasil dia 11 de janeiro e eu recomendo com entusiasmo) ou o estilismo expressionista de Nicolas Windig Refn em Drive. Mas numa obra de plena fantasia como esta, é um grande recurso.

O Hobbit estreia aqui e no Brasil dia 14.


Navegar é preciso
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Ana Maria Bahiana

As Aventuras de Pi (outra tradução pouco feliz.. o que há de errado com A Vida de Pi?) , de Ang Lee tem muita coisa em comum com Cloud Atlas, dos irmãos Wachowski e Tom Tykwer: ambos são sobre o ato de contar histórias, ambos são baseados em livros aclamados e ambos foram tidos como “infilmáveis”. Depois de ver e rever Pi, penso cada vez mais que o trio de diretores de Atlas deveria ter se aconselhado com Lee: o que era, no livro, uma jornada interior, filosófica, metafísica, tornou-se, na tela, um banquete visual, uma gloriosa manifestação do poder da imagem em movimento.

A Vida de Pi, do autor franco-canadense (nascido na Espanha) Yann Martel, tem como inspiração o livro Max e os Felinos, do brasileiro Moacyr Scliar.  Na obra de Scliar o protagonista Max,  judeu, foge da Alemanha nazista num cargueiro transportando animais para um zoológico no Brasil; quando o capitão afunda propositalmente o navio para dar um golpe na seguradora, Max se vê em pleno Atlântico num bote salva-vidas que é obrigado a dividir com uma onça.

No livro de Martel, o náufrago é um jovem indiano, o navio ruma para o Canadá, o oceano é o Pacífico e o animal com quem ele  divide o bote é um tigre de Bengala. Como na obra de Scliar, há um zoo sendo transportado no navio que afunda. E também como no livro do brasileiro, a história fica em aberto, deixando que a leitora ou leitor decidam o que realmente se passou no barco à deriva.

Martel sempre assumiu a origem de sua história, e teve uma longa conversa com Scliar cujo conteúdo nunca saberemos, mas que foi o bastante para convencer o escritor brasileiro da legitimidade da admiração de Martel por ele – Pi, o livro, é dedicado a Scliar, “por ter acendido a chama”.  E para fazê-lo desistir de mover um processo por plágio.

Ao descrever esse pano de fundo da trajetoria da mesma ideia – uma pessoa, um felino selvagem, um barco – me ocorreu que estou repetindo o próprio tema do filme: que o mundo secreto de nossas almas pertence apenas a quem conta a história; e que ao contar a história esse mundo secreto pode ser mudado. (Freud e Jung sabiam disso).

Ang Lee, um dos diretores de maior sensibilidade que conheço, compreendeu completamente o desafio de Pi: o livro é a narrativa de uma memória, uma história contada pelo protagonista, o indiano Pi (simplificação do nome absurdo e poético que ele recebeu de seu pai—Piscine Molitor Patel) ao escritor canadense sem nome (avatar do próprio Yann Martel) muitos anos depois do naufrágio.  Em essência, Pi se passa na cabeça do protagonista, no modo como ele escolhe recompor para seu interlocutor a história de sua vida (e não simplesmente de suas “aventuras”, como o título brasileiro afirma).

Lembrem disso quando o olhar preciso e elegante de Lee (realizado plenamente pela fotografia de Claudio Miranda) apresentar um zoológico que mais parece o Jardim do Eden ou uma India em cores de confeitaria : a memória é seletiva e nem por isso menos verdadeira.

Pi (o estreante Suraj Sharma na juventude, Irrfan Kahn quando adulto) é um jovem sedento de revelações: a possibilidade da comunhão com os animais , o poder transformador do amor, a transcendencia, seja por qualquer um, ou quem sabe todos os caminhos espirituais. Seu pai (Adil Hussain) é um pragmático que acredita em primeiro lugar no poder das limitações. Até o naufrágio, a vida de Pi é ordenada pelo confronto entre seu desejo de voar e a força da gravidade exercida por seu pai.

O naufrágio solta todas as amarras. Num bote salva-vidas primeiro com um grupo de animais – uma hiena, um orangotango e uma zebra – e depois apenas com o feroz tigre Richard Parker, Pi se vê no ponto absoluto no qual nenhuma das normas de uma vida “normal” se aplicam. Ele está, literal e simbolicamente, à deriva. Xamãs chamariam isso de uma “busca da visão”. E a visão , em muitas e espetaculares formas, vem em todo o seu esplendor e terror.

Ou será apenas o poder da memória que está filtrando assim, de modo tão absoluto, uma experiencia traumática?

Ang Lee destila essa questão essencial em puro cinema – uma narrativa fluida ( notem como a água é um elemento visual importante, desde o início do filme), essencialmente visual (descontada a narrativa em off, este é quase um filme mudo em sua economia de diálogos) e com uso perfeito de 3D.

É filme para não se perder – e para ver de coração aberto.

As Aventuras de Pi está em cartaz nos EUA e estreia no Brasil dia 21 de dezembro.