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Ang Lee, em breve na sua TV
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Ana Maria Bahiana

Não que ninguém ainda precise ser convencido de que a TV é a nova alternativa viável ao cinema independente de qualidade, mas aqui vai mais uma: o primeiro projeto de Ang Lee depois de ganhar Oscar de melhor diretor por As Aventuras de Pi será um piloto para uma nova série de TV. Tyrant, a nova série criada pelo mesmo time de Homeland, Howard Gordon e Gideon Raiff (que também criou a série israelense Prisoners of War, que foi a base de Homeland), mais Craig Wright de Dirty Sexy Money, segue o drama de uma família norte-americana num país do Oriente Médio que se torna cada vez mais instável e perigoso.  Lee, já envolvido no desenvolvimento do projeto, está enfatizando a complexidade psicológica da situação – um traço comum em toda a sua filmografia.

O canal FX – que está dando um banho nesta temporada com The Americans, em breve aqui no blog – vai por o piloto no ar no início de 2014, e pouca gente duvida que não será seguido da encomenda de uma série.

Lee segue nos passos de Martin Scorsese, David Lynch, David Fincher, Steve Soderbergh, Miguel Arteta, Paul Greengrass, Jonathan Demme, Nicole Holofcener, Mike White e, mais recentemente, Jane Campion (cuja Top of the Lake vou comentar em breve aqui no blog, também) em abraçar a TV como uma opção criativa real numa indústria que está cada vez mais reservando o espaço nobre da tela para o exclusiva e obviamente comercial infanto-juvenil.


Navegar é preciso
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Ana Maria Bahiana

As Aventuras de Pi (outra tradução pouco feliz.. o que há de errado com A Vida de Pi?) , de Ang Lee tem muita coisa em comum com Cloud Atlas, dos irmãos Wachowski e Tom Tykwer: ambos são sobre o ato de contar histórias, ambos são baseados em livros aclamados e ambos foram tidos como “infilmáveis”. Depois de ver e rever Pi, penso cada vez mais que o trio de diretores de Atlas deveria ter se aconselhado com Lee: o que era, no livro, uma jornada interior, filosófica, metafísica, tornou-se, na tela, um banquete visual, uma gloriosa manifestação do poder da imagem em movimento.

A Vida de Pi, do autor franco-canadense (nascido na Espanha) Yann Martel, tem como inspiração o livro Max e os Felinos, do brasileiro Moacyr Scliar.  Na obra de Scliar o protagonista Max,  judeu, foge da Alemanha nazista num cargueiro transportando animais para um zoológico no Brasil; quando o capitão afunda propositalmente o navio para dar um golpe na seguradora, Max se vê em pleno Atlântico num bote salva-vidas que é obrigado a dividir com uma onça.

No livro de Martel, o náufrago é um jovem indiano, o navio ruma para o Canadá, o oceano é o Pacífico e o animal com quem ele  divide o bote é um tigre de Bengala. Como na obra de Scliar, há um zoo sendo transportado no navio que afunda. E também como no livro do brasileiro, a história fica em aberto, deixando que a leitora ou leitor decidam o que realmente se passou no barco à deriva.

Martel sempre assumiu a origem de sua história, e teve uma longa conversa com Scliar cujo conteúdo nunca saberemos, mas que foi o bastante para convencer o escritor brasileiro da legitimidade da admiração de Martel por ele – Pi, o livro, é dedicado a Scliar, “por ter acendido a chama”.  E para fazê-lo desistir de mover um processo por plágio.

Ao descrever esse pano de fundo da trajetoria da mesma ideia – uma pessoa, um felino selvagem, um barco – me ocorreu que estou repetindo o próprio tema do filme: que o mundo secreto de nossas almas pertence apenas a quem conta a história; e que ao contar a história esse mundo secreto pode ser mudado. (Freud e Jung sabiam disso).

Ang Lee, um dos diretores de maior sensibilidade que conheço, compreendeu completamente o desafio de Pi: o livro é a narrativa de uma memória, uma história contada pelo protagonista, o indiano Pi (simplificação do nome absurdo e poético que ele recebeu de seu pai—Piscine Molitor Patel) ao escritor canadense sem nome (avatar do próprio Yann Martel) muitos anos depois do naufrágio.  Em essência, Pi se passa na cabeça do protagonista, no modo como ele escolhe recompor para seu interlocutor a história de sua vida (e não simplesmente de suas “aventuras”, como o título brasileiro afirma).

Lembrem disso quando o olhar preciso e elegante de Lee (realizado plenamente pela fotografia de Claudio Miranda) apresentar um zoológico que mais parece o Jardim do Eden ou uma India em cores de confeitaria : a memória é seletiva e nem por isso menos verdadeira.

Pi (o estreante Suraj Sharma na juventude, Irrfan Kahn quando adulto) é um jovem sedento de revelações: a possibilidade da comunhão com os animais , o poder transformador do amor, a transcendencia, seja por qualquer um, ou quem sabe todos os caminhos espirituais. Seu pai (Adil Hussain) é um pragmático que acredita em primeiro lugar no poder das limitações. Até o naufrágio, a vida de Pi é ordenada pelo confronto entre seu desejo de voar e a força da gravidade exercida por seu pai.

O naufrágio solta todas as amarras. Num bote salva-vidas primeiro com um grupo de animais – uma hiena, um orangotango e uma zebra – e depois apenas com o feroz tigre Richard Parker, Pi se vê no ponto absoluto no qual nenhuma das normas de uma vida “normal” se aplicam. Ele está, literal e simbolicamente, à deriva. Xamãs chamariam isso de uma “busca da visão”. E a visão , em muitas e espetaculares formas, vem em todo o seu esplendor e terror.

Ou será apenas o poder da memória que está filtrando assim, de modo tão absoluto, uma experiencia traumática?

Ang Lee destila essa questão essencial em puro cinema – uma narrativa fluida ( notem como a água é um elemento visual importante, desde o início do filme), essencialmente visual (descontada a narrativa em off, este é quase um filme mudo em sua economia de diálogos) e com uso perfeito de 3D.

É filme para não se perder – e para ver de coração aberto.

As Aventuras de Pi está em cartaz nos EUA e estreia no Brasil dia 21 de dezembro.


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