Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : Steve Soderbergh

A aposentadoria de Soderbergh não deu certo
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Ana Maria Bahiana

Soderbergh no set (e na câmera) de Behind The Candelabra. Adoro o detalhe da página do roteiro, toda rabiscada, no bolso…

E por falar na “aposentadoria” de Steve Soderbergh: coloquem mais aspas, por favor. Aparentemente o que ele não aguenta mais é o ritual cada vez mais frustrante e humilhante de tentar posicionar um projeto autoral no mercado de cinema. Trabalhar para TV não tem o menor problema: o próximo projeto de Soderbergh será a série The Knick, para o canal por assinatura Cinemax, divisão da HBO. Clive Owen, que vem desenvolvendo o projeto há tempos, será o astro e co-produtor executivo da série.

O “Knick” do título é o hospital Knickerbocker de Nova York, cenário da série em seu período pioneiro, a alvorada do século 20. Trata-se, portanto, de um drama hospitalar de época, sem desfribiladores, antibióticos e atores berrando “code blue!” … Com certeza uma opção interessantíssima.

A situação das finanças do mercado de produção audiovisual, hoje, está cada vez mais complicada, exigindo uma paciência e um acesso a fontes alternativas de investimento que Soderbergh, a esta altura de sua carreira, tem todo o direito de não ter e não procurar. Enquanto isso, a TV, que resolve de cara um dos maiores problemas de qualquer projeto audiovisual , a distribuição, está, aqui, investindo cada vez mais em talento de primeira linha e conceitos originais. Num passado não muito distante, um filme como Behind The Candelabra, com o nível de qualidade, valores de produção e elenco que tem, estaria automaticamente nos cinemas do mundo todo. Agora…

Ganha, de lavada, a telinha doméstica. Enquanto isso, confiram a outra série de TV de Soderbergh , K Street, de 2003,  co-produzida com George Clooney.


O adeus de Soderbergh: sexo, mentiras e um candelabro
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Ana Maria Bahiana

Revi recentemente Sexo, Mentiras e Videotape, o filme que , em 1989, apresentou Steve Soderbergh ao mundo e, praticamente sozinho, reviveu o cinema independente norte-americano. Foi um acaso feliz: no momento em que,  28 anos e 36 títulos depois, Soderbergh anuncia que vai se aposentar, senão do cinema, pelo menos do “cinema narrativo” (palavras dele), foi importante voltar onde tudo começou e ter, com uma perspectiva nova, um olhar sobre o olhar soderberghiano.

Eis o que aprendi: dividido entre ter fé e desprezar o ser humano, Soderbergh usa sua câmera como uma mistura de telescópio e microscópio, procurando sinais distantes ou mínimos que comprovem um ou outro sentimento. A conexão sueca (Soderbergh, nascido em Atlanta, é de família sueca, e fala o idioma com certa facilidade) me traz à cabeça o nome “Bergman”, mas vou parar por aqui, porque a equivalência areia=caminhão ainda está desequilibrada.

Digo isto: Bergman e Soderbergh são realizadores filosóficos. Andariam pelas colinas com uma lanterna procurando o Homem Justo, se fossem Diógenes e vivessem na Grécia antiga. Em vez disso, andam pelo mundo com a lanterna mágica de suas câmeras- no caso de Soderbergh, literalmente, já que em quase todos os seus filmes ele é seu próprio diretor de fotografia.

Há muito sexo e mentiras nos dois filmes que marcam o “adeus” de Soderbergh, Terapia de Risco (Side Effects) e Behind the Candelabra.  Sexo e mentiras são constantes na filmografia soderberghiana, as duas moedas correntes com que mulheres e homens negociam, arriscam e apostam suas vidas.

Trabalhando com um roteiro de seu colaborador de fé, Scott Z. Burns (Traffic, Contágio, O Desinformante!), Terapia é construído como um thriller psicológico à moda antiga, meio Hitchcock , meio drama político dos anos 1970. A trama em si _ moça (Rooney Mara) começa a apresentar estranhos e perigosos efeitos colaterais depois de medicada com um novo antidepressivo prescrito por seu psiquiatra (Jude Law) _ é quase um artifício para Soderbergh fazer o que mais ama: trabalhar com seus atores nas muitas camadas de verdade e mentira, afeição e manipulação com que todos os personagens tratam-se uns aos outros.

Não é à toa que os atores disputam a tapa a oportunidade de trabalhar com Soderbergh: mesmo em seu modo mais light, como na franquia 11 Homens, ele é um mestre na sutil colaboração entre rosto, corpo, luz e câmera, incentivando, compreendendo e captando o modo como o desempenho do ator conta a verdadeira história: a história atrás da história, escondida nas palavras do roteiro.

Com a possível exceção de Che e talvez Erin Brockovich, Soderbergh tende a descrer do idealismo puro e simples. Sua atração por histórias de golpes, traições, vidas duplas (Romance Perigoso, O Estranho, Traffic, O Desinformante!, O Segredo de Berlim, À Toda Prova , a franquia 11 Homens, até mesmo Contágio) confirma que ele duvida muito que os humanos façam jornadas firmes e retas na direção dos seus objetivos. Ou, mesmo que o façam, talvez não tenham a menor ideia dos verdadeiros impulsos que os estão empurrando.

É esse trabalho que ele tece com seus atores e que, com sua câmera altamente inteligente e sensível, capta com todo rigor.

 Terapia de Risco é a história dos efeitos colaterais causados pelas mentiras que contamos a nós mesmos. Behind the Candelabra, que, oficialmente, é o canto do cisne de Soderbergh, aprofunda essa indagação de forma vertiginosa. Seu exterior de excessos, ouros, peles, plumas e paetês (execução maravilhosa da direção de arte de outro colaborador constante de Soderbergh, Howard Cummings) é essencial para enquadrar o drama que se passa no interior de seus protagonistas: Liberace (Michael Douglas), o pianista superstar, artista mais bem pago das décadas de 1950, 60 e 70, e Scott (Matt Damon), o garoto que rapidamente evolui de seu fã para namorado/assistente/motorista/objeto de cena.

A natureza sinistra, predatória, vampiresca, do relacionamento entre Liberace e Scott não é de modo algum restrita a casais gay, muito pelo contrário: o roteiro perfeito de Richard LaGravenese, a maestria de Soderbergh e o talento de todo o elenco deixam claro que se trata de um drama sobre o inevitável cabo-de-guerra de poder em qualquer relacionamento a dois.  Quem está usando quem? Quem é realmente o forte, quem é realmente o fraco? Quem domina, quem permite ser dominado? Quem compra, quem vende? E sobretudo: por que?

Baseado na autobiografia do mesmo nome de Scott Thorson, que teve um relacionamento intenso e secreto com Liberace entre 1977 e 1981, o filme se recusa a tomar partido nessa discussão, evitando a armadilha fácil de caracterizar Liberace como o predador eternamente emboscando jovens presas descartáveis e Scott como sua vítima inocente. Ambos são apresentados como homens complexos, com mais coisas em comum do que podem suspeitar ou admitir: famílias partidas, uma insaciável sede de aceitação e amor e um pavor paralisante de ser rejeitado e abandonado. Há uma forma muito especial de egoísmo que se desenvolve alimentado por esse tipo de fratura interior, e o filme de Soderbergh é absolutamente preciso em captá-lo.

Há algo naturalmente arriscado quando se coloca um drama dessas proporções (ou seria uma divina comédia?)  no ambiente de Las Vegas dos anos 1970, ainda mais no habitat de um popstar perto de quem Elton John e Lady Gaga são figuras discretas. O flerte com o ridículo está sempre presente em Candelabra, ampliando o drama humano e dando um gume de risco que  Douglas e Damon, em especial, surfam com a habilidade de mestres.

Além de todos esses temas Candelabra oferece mais alguns: uma discussão da ideia de masculinidade, e um olhar sobre um tempo em que ser gay era visto como algo pior que a lepra na Idade Média, capaz de sepultar a mais fulgurante das carreiras. O quanto o segredo _ e o medo e o poder que vêm  com o segredo _informa o comportamento amoroso dos dois? E seria possível que, mesmo na mais bizarra e doentia das circunstâncias, o amor realmente se dê entre eles?

 Behind the Candelabra começa com “I Feel Love”, de Donna Summer, e termina com “The Impossible Dream”, interpretado por Michael Douglas como Liberace. Entre uma e outra ideia, entre uma e outra canção, esconde-se a resposta.

 Terapia de Risco está disponível em DVD/BluRay nos Estados Unidos, e em cartaz no Brasil. Behind the Candelabra está no festival de Cannes e estreia domingo dia 26 na HBO, nos Estados Unidos.

 


Magic Mike: os garotos estão numa boa
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Ana Maria Bahiana

Se os irmãos Dardenne, por algum motivo bizarro, resolvessem fazer um filme sobre strippers masculinos, o resultado final provavelmente seria muito parecido com Magic Mike, o mais novo título da safra vou-fazer-um-monte-de-coisa-antes-de-me aposentar de Steve Soderbergh.

Baseado livremente nas experiências juvenis do astro e produtor Channing Tatum, Magic Mike tem aquela qualidade naturalista, calma, relax, do olhar dos Dardenne (e de boa parte do cinema norte-americano dos anos 1970). Até mesmo os shows dos rapazes – Tatum mais Joe Manganiello, Adam Hernandez, Alex Pettyfer, Matt Bomer, Kevin Nash e, num número especial, Matthew McConaughey, o dono do clube – são tratados como mais um elemento naquilo que é o foco do filme: as vidas dessas pessoas, com as simples e complicadas ramificações que as vidas de qualquer um de nós tem; só que, por acaso, eles rebolam e tiram a roupa, à noite, para ganhar uns trocados a mais.

É uma escolha interessante num projeto que poderia ter ido por muitos caminhos diferentes. Soderbergh acompanha sem assombros Magic Mike –  nome artístico do personagem de Tatum, que, fora do palco, é operário de construção, lavador de carros e artesão de móveis – e seus colegas enquanto eles raspam as pernas, estudam os movimentos mais eficientes de suas coreografias (os que geram mais gorjetas), preparam todos os elementos do seu arsenal corporal (absolutamente todos) para o espetáculo.

É uma qualidade que se revela super eficiente para pegar a plateia logo nos primeiros instantes do filme. O antepassado mais próximo de Magic Mike, o britânico Ou Tudo ou Nada (The Full Monty, dir. Peter Cattaneo, 1997), usava uma estratégia em muitos aspectos oposta: seus strippers começavam sua jornada como cidadãos de ocupações diversas, sem ambição alguma de provocar delirios femininos com seus rebolados. Soderbergh nos coloca desde o início, com extrema naturalidade e sem absolutamente nenhum julgamento, na dupla vida dos rapazes do Club Xquisite de Tampa, Florida. O melhor de Magic Mike está aí: na deliciosa reversão de papéis num medium  – o cinema- que nunca se cansa de objetificar as mulheres, executada com classe, sem alarde, sem problemas.

Magic Mike se torna menos interessante quando tenta espichar essa história e complica-la com um quase drama sobre os perigos da vida noturna : tráfico de drogas! Criminosos! Confusões amorosas! Dificuldade para conseguir crédito em banco! Nesse ponto Ou Tudo ou Nada era mais eficiente _ havia uma base dramática já estabelecida sobre a qual a novidade do tirar a roupa apenas adicionava mais uma camada de interesse.

Mas o filme de Soderbergh não deixa de ser tremendamente divertido _ a não ser que você seja como o rabugento rapaz ao meu lado na sessão para a imprensa, que resmungava alto e bom som ao primeiro sinal de nudez masculina, e saiu intempestivamente justo na hora em que os meninos do Club Xquisite começavam uma de suas coreografias mais artísticas.

 Magic Mike estreia amanhã, dia 29, nos EUA, e ainda não tem data no Brasil.


É o fim do mundo como o conhecemos: vamos filmar
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Ana Maria Bahiana

Estamos todos com medo _ o presente é assustador, o futuro é incerto e instituições que tínhamos como excelentes, operantes e praticamente infalíveis estão desabando diante de nossos olhos, tais e quais aquelas duas torres altivas e belas, na Nova York de 2001.

Esta parece a soma de todos os medos como interpretada e recriada pelo cinema norte americano, nestes últimos anos. E pode muito bem ser um dos grandes temas desta recém- iniciada temporada-ouro que, suspeito, vai realmente pegar embalo com a estreia de J.Edgar no início de novembro, se Clint Eastwood e Dustin Lance Black cumprirem suas promessas de virar pelo avesso uma figura icônica e sua querida instituição intocável, o FBI.

Dois filmes em cartaz neste fim de semana nos EUA continuam essa narrativa de apreensões.

Dirigido por Steve Soderbergh – em seu modo não-autoral – a partir de um roteiro original (e muito bem pesquisado)  de Scott Z. Burns, Contágio (Contagion, 2011) é um competente exemplar do thriller-epidêmico, no qual cientistas substituem detetives e policiais em busca de um assassino em série poderoso, terrível e invisível a olho nu. É um sub-gênero que tem antecedentes tão distantes quanto o noir The Killer That Stalked New York, de 1950, ou O Enigma de Andrômeda (The Andromeda Strain), de 1971; e, mais recentemente, Epidemia (Outbreak, de 1995).

Como Soderbergh é Soderbergh, seu prestígio arregimentou um elenco de estrelas para compor o mandatório time de vítimas e  investigadores – Matt Damon, Gwyneth Paltrow, Kate Winslet, Jude Law, Laurence Fishburne, Marion Cotillard. E como os tempos são os atuais, voltou sua atenção menos ao vírus e a seus caçadores e mais ao gradual e violento desmantelar da sociedade, ao longo de um mês, enquanto a doença progride, muda, sobrecarrega hospitais, gera paranóia, greves, vandalismo.

Porque o vírus se propaga pelo toque – e porque vivemos numa era em que as pessoas mais e mais se isolam atrás de seus celulares, tabletes e computadores – Soderbergh volta seu olhar, insistentemente, para os pequenos gestos  que nossas mãos fazem o dia todo, sem que percebamos _ a ânsia ancestral por contato, atrofiada numa sociedade em crise.

São elementos assim, mais que qualquer outra coisa, que tornam Contágio interessante. Não é bem, como seus antecessores, uma luta-contra-o-tempo para salvar o mundo – tempo e vírus são inexoráveis, aqui, como seriam na vida real, é o que o roteiro de Burns nos diz- mas uma observação de nossa fragilidade como sociedade, confiantes em forças que, talvez, sejam mais vulneráveis do que pensamos.

E ainda não sei porque Contágio está sendo exibido, pelo menos aqui nos EUA, em IMAX. A não ser para quem queira muito ver uma autópsia de Gwyneth Paltrow numa tela de 22 metros de altura…

Contágio está em cartaz nos EUA e estreia no Brasil dia 28 de outubro.

Em Tudo pelo Poder (The Ides of March, 2011) são as instituições políticas que estão em risco, ameaçadas não por um micro-organismo daninho, mas por nossa próprias fraquezas.

Diretor , produtor e coadjuvante do seu projeto, George Clooney também é co-roteirista, adaptando com Grant Heslov (com quem ele já havia trabalhado em O Amor Não tem Regras) a peça Farragut North, de Beau Willimon, sobre o jovem e entusiasmado assessor  de um candidato a candidato a presidente dos EUA, e sua penosa curva de aprendizado.

Clooney pegou para si papel do candidato, Mike Morris, um governador estadual do partido Democrata, carismático, progressista e bonitão. Stephen Moyers, o  inocente em treinamento, é Ryan Gosling, mais uma vez dando um show de interpretação inteligente, bem pensada. Outros grandes atores completam o elenco: Philip Seyour Hoffman como o coordenador da campanha de Morris, Paul Giamatti como seu correspondente no campo do oponente, Jeffrey Wright como o senador republicano cujo apoio pode fazer a diferença na corrida para a Casa Branca, Marisa Tomei como a jornalista durona, incansável na busca de uma boa matéria, Evan Rachel Wood como a estagiária bonita e ambiciosa.

O genial de Tudo pelo Poder – além de como Clooney expandiu  a peça a ponto de parecer impossível que a trama possa ser contada num palco – é que, politicamente, tanto Morris quanto Moyers, seu aprendiz de feiticeiro, são inatacáveis. Um candidato a candidato, dizendo o que Morris diz, com a convicção com que ele diz, seria a salvação para uma América em crise _ e a fé de seu pupilo é verdadeira e íntegra.

Não são os princípios ideológicos que abalam suas estruturas _ são fraquezas humanas tão antigas quanto o tempo, desejos inscritos em livros muito anteriores à Constituição dos Estados Unidos, único documento no qual Morris diz ter fé (na sensacional cena de abertura, Moyers repete este credo ; é esta cena, em super close, que serve de tema ao filme, repetida depois, muito, muito diferente, no final).

É um belo filme, especialmente alvissareiro  depois do decepcionante O Amor Não Tem Regras.

Tudo pelo Poder estreia nesta sexta feira nos EUA e estréia no Brasil dia 23 de dezembro.


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