Com Werner Herzog no ventre da Terra, sonhando no escuro
Ana Maria Bahiana
Do chão de um vinhedo no sul da França, a câmera alça vôo. Em breve estamos sobre uma paisagem profundamente bela: um rio faz curvas sinuosas sob um imenso arco de pedra calcárea, branco contra o céu azul; ao fundo erguem-se montanhas igualmente brancas, encerrando rio e vinhedos num elegante vale em semicírculo.
E no entanto a maior beleza ainda está invisível. Com sua voz de professor meio doidão, meio sinistro, Werner Herzog nos guia até uma estranha porta de aço, como a de um caixa forte, encravada na encosta da montanha. Escuridão, silêncio. A beleza mais extraordinária começa agora.
Na primavera europeia de 2010, Werner Herzog recebeu uma permissão especial do Ministério da Cultura francês para visitar e filmar um dos maiores patrimônios da humanidade: as cavernas de Chauvet, na região do Ardéche, no sul do país. Selado por uma avalanche em algum ponto de sua longa história, o complexo de cavernas guarda em suas paredes a mais antiga coleção de obras de arte do mundo: gravuras e pinturas que datam de pelo menos 32 mil anos.
A necessidade de preservar a integridade do local gerou condições extremas de filmagem: uma equipe de quatro pessoas, períodos de apenas quatro horas diárias de visita, roupas especiais e restrições de movimentação. Nada disso, contudo, interferiu no excepcional poder das imagens de Cave of Forgotten Dreams, o documentário que resultou da visita e que estreou neste fim de semana nos Estados Unidos (e já se tornou a maior bilheteria de abertura para um filme de Herzog).
Pelo contrário: a luz hesitante, capaz de iluminar apenas alguns trechos durante algum tempo, ajuda o espectador a ver as imagens quase com os olhos de seus autores e contemporâneos; o fato da equipe e seus guias estarem frequentemente no quadro nos conduz facilmente pelo labirinto, entre escuridão completa e flashes de imagens emergindo da pedra, e nos dá a dimensão da intimidade e majestade das cavernas. “Depois de algum tempo é como se os primeiros ocupantes destas cavernas ainda estivessem aqui”, Herzog diz, na narração em off. “Muitos pesquisadores me relataram a mesma sensação. Como se os olhos destes pintores nos acompanhassem, no escuro.”
Herzog, que não é um entusiasta do 3D – só viu Avatar, e se confessou “perdido” pela enxurrada de informações visuais – converteu-se temporariamente à técnica para Cave. Casamento perfeito _ os artistas de Chauvet usaram as saliências e depressões da rocha para dar profundidade e movimento a seus cavalos, bisões, leões e ursos; agora, o 3D recria a experiência- cá estamos nós temporariamente na luz rarefeita da caverna, cavalos , bisões, leões e ursos dançando em nossa direção “como uma espécie de proto-cinema”, diz Herzog, deliciado ao notar as repetições de detalhe, as oito patas e múltiplas cabeças que os artistas criaram para reproduzir movimento em suas obras.
Porque Herzog é Herzog, Cave tem desvios e um bizarro ps envolvendo uma usina nuclear e jacarés albinos. Um dos arqueólogos revela ter sido acrobata de circo. Outro, apresentado como “arqueólogo experimental”, chama-se Wulf, veste-se de peles e toca o hino nacional norte americano numa réplica de flauta pré-histórica. Há tambem um “mestre perfumista” que cheira a montanha em busca de novas cavernas.
Mas desta vez estas idiossincrasias herzoguianas perdem o fôlego diante do imenso poder do que está nas paredes de Chauvet. Ali, auxiliado pela excepcional trilha de Ernst Reijseger, Herzog enuncia com clareza sua visão para o doc: Chauvet mostra por que somos humanos_ porque somos capazes de sonhar, aspirar, intuir o divino, abracá-lo, convidá-lo. Um arqueólogo diz que “homo sapiens” , o homem que pensa, não é a melhor definição de nossa espécie; “homo spiritualis” seria mais exato.
No final, Herzog nos deixa com a mais poderosa das infinitamente poderosas imagens de seu filme: a impressão da palma da mão de um dos pintores de Chauvet, assinando sua obra. Sim, estivemos aqui. Milhões de anos atrás, no ventre da Terra, sonhando no escuro.