Blog da Ana Maria Bahiana

Frankenweenie: Tim Burton volta para casa

Ana Maria Bahiana

 

No fim da rua Evergreen, no subúrbio de Burbank, em Los Angeles – onde estão, entre outras empresas do meio, as sedes da Disney e da Warner – existe um cemitério chamado, sem ironia, Valhalla.  Timothy William “Tim” Burton, filho mais velho do casal Bill e Jean Burton (ele ex -jogador de beisebol, ela dona de casa), cresceu nessa rua e, em suas próprias palavras,  a impecável normalidade suburbana dos anos 1960 era muito mais assustadora para ele que seu vizinho fúnebre.  Burton, na verdade, encontrava paz e sossego passeando de bicicleta pelo cemitério — o mesmo conforto que sentia vendo antigos  filmes de terror na TV.

A juxtaposição da imutável ordem do subúrbio californiano sobre o pavor e a solidão do menino tímido que encontrava refúgio nos filmes e séries de terror da TV (numa interessante coincidência, uma dessas séries era apresentada pelo pai de Paul Thomas Anderson, Ernie Anderson) é o veio mais profundo do talento de Tim Burton. Quanto mais ele se aproxima dessa rica fonte pessoal, mais completas e brilhantes são suas obras.

Em 1982, depois de cursar a prestigiosa Cal Arts com uma bolsa oferecida pela própria Disney (seus colegas eram, entre outros, John Lasseter, Brad Bird e Henry Selick), Burton foi contratado para o departamento de animação do estúdio.  Trabalhou em Tron e O Caldeirão Mágico, e ofereceu um primeiro curta para consideração do estúdio: o altamente autobiográfico Vincent, sobre um menino solitário que sonha ser o ator Vincent Price.

A Disney ficou dividida – o controle e a inventividade do jovem diretor eram óbvios, mas a estética era um tanto sombria para o estúdio. Mesmo assim, bancaram o segundo projeto de Burton: um curta estrelado por Shelley Duvall , Daniel Stern e o menino Barret Oliver, sobre um garoto solitário num subúrbio impecável e a profunda amizade que o une a um cachorrinho de trágico destino.

O curta, intitulado Frankenweenie, deveria estrear nos cinemas em dezembro de 1984, parte do relançamento do longa de animação Pinóquio.  Em vez disso, o projeto foi arquivado e, pouco depois, Burton foi despedido do departamento de animação da Disney.

Frankenweenie, 1984

O resto, como se costuma dizer, é história. Mas é importante conhecer as origens do lindo, poético, sensacional longa stop motion com  o mesmo título – Frankenweenie—que estreia hoje nos Estados Unidos (e dia 2 de novembro no Brasil), lançado precisamente pela Disney. E não apenas porque, vinte e oito anos depois, Tim Burton tornou-se um diretor superstar e a Disney, que detinha os direitos do curta, viu-se levada à óbvia necessidade de reconhecer isso. Mas principalmente porque, de muitos modos diferentes, Frankenweenie é uma volta para casa para Burton: a volta à animação stop motion, uma de suas primeiras paixões (como muitos de sua geração, ele é cria do mestre Ray Harryhausen); a volta aos impulsos de inspiração que o levaram a fazer o curta; e, consequentemente, a volta ao menino que ele foi, tímido, inteligente, solitário, buscando conforto nos lugares mais estranhos – um cemitério no fim da rua, filmes de terror estrelados por Vincent Price na TV.

 

E, como agora Burton é pai também, ele tem a tripla vantagem de rever sua obra pela perspectiva da criança, do adulto e do fã de cinema. Frankenweenie é um filme perfeito  de todos esses ângulos.

A história continua a mesma: o garoto Victor Frankenstein, do aprazível subúrbio de New Holland, em algum lugar dos Estados Unidos, inspira-se nas aulas de ciência da escola (ministradas pelo sensacional Professor Rzykruski, uma grande criação conjunta de Burton, do roteirista John August e do talento vocal de Martin Landau) para resgatar das garras da morte o único ser com quem tem algum vínculo emocional—o cachorrinho Sparky.

Sim, é o Frankenstein de Mary Shelley – o filme original de James Whale, de 1931, é referenciado amplamente, e há uma inesquecível tartaruga chamada Shelley no meio da história – mas é também um amálgama carinhosíssimo de todos os filmes de terror que  formaram o cineasta  e o menino Tim Burton. Cinéfilos atentos vão se divertir imensamente com as múltiplas referências aos clássicos do terror, e, quem sabe, novos Tim Burtons na plateia terão sua curiosidade despertada.

Mas, além disso, Frankenweenie tem ,em sua essência, um enorme coração, atento a um dos mais delicados ritos de passagem da infância: o contato com a morte, em geral através da perda de um querido bicho de estimação (no caso de Burton, o poodle Pepe, sua inspiração para Sparky). Existe uma dose justa e equilibrada de susto e conforto em Frankenweenie, fruto, quem sabe, de uma compreensão dupla, como o menino que foi e o pai que hoje é, da complexidade da alma infantil.

É muito bom ver Tim Burton voltar para casa tão profundamente, tão alegremente, tão seguro de si. Há muito tempo eu não via num filme seu tamanha sinceridade, tamanha entrega, um desejo tão claro de colocar sua rigorosa estética – e como são lindas a animação e a fotografia de Frankenweenie !– a serviço de uma ideia que ele abraça tão completamente, sem reservas.

Tim, bem vindo de volta. É quase Halloween em Burbank, o cemitério Valhalla está em festa.