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Cloud Atlas: sinfonia ou cacofonia?
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Ana Maria Bahiana

Um aviso prévio: Cloud AtlasAtlas das Nuvens, que coisa difícil de traduzir, né? – recebeu no Brasil o título de A Viagem. Que, a não ser no sentido que se usava nos idos anos 1970 — “tremenda viagem, bicho” – não tem nada a ver nem com a obra original de David Mitchell nem com o filme dos irmãos Wachowski e Tom Tykwer. Vou continuar chamando de Cloud Atlas.

O desafio essencial de adaptar uma obra literária para o cinema é este: uma narrativa literária é uma coisa, uma narrativa audiovisual é outra. A narrativa literária descreve, sugere. A narrativa audiovisual mostra. A narrativa literária tem todo o tempo do mundo – ou melhor, o tempo que a leitora ou leitor se dispuserem a dar à leitura. A narrativa cinematográfica precisa se limitar ao tempo em que a espectadora ou espectador ficarem na cadeira do cinema; que, para Hitchcock, era  “o equivalente à capacidade da bexiga humana” e, pelos cálculos dos donos de cinema, entre 90 e 120 minutos.

O best seller de David Mitchell que inspirou o filme dos irmãos Wachowski e Tom Tykwer é uma obra vasta e super literária. Como uma daquelas bonecas russas, Cloud Atlas, o livro, consiste de seis histórias abrigadas uma dentro da outra, como nos contos das Mil e Uma Noites. Mas com um artifício diferente: as histórias não são contadas oralmente, são o resultado de uma série de documentos – um diário, um livro, uma hq, um filme – de diferentes épocas, do século 19 a um futuro pós-apocalíptico — que se referenciam mutuamente.

E, como uma sinfonia, cada uma dessas histórias enuncia, amplia e passa adiante o tema central da obra: a conexão entre todas as coisas, e como um gesto, hoje, repercute através dos séculos. Também como numa sinfonia, Mitchell faz com que o tema seja enunciado várias vezes, primeiro em ordem direta, depois de trás para a frente, voltando ao princípio, à primeira história/ melodia, só que, agora, carregada das tonalidades e variações de cada uma das versões anteriores.

O próprio Mitchell considerava seu livro “infilmável”. Até que os Wachowskis leram Cloud Atlas – Natalie Portman apresentou o best seller a eles no set de V de Vingança– e não conseguiram resistir.

Depois de passar pelos 172 minutos de Cloud Atlas, fiquei pensando se eles não deveriam ter seguido a primeira opinião do autor. Mesmo com o auxílio do amigo Tom Tykwer – que dirigiu metade das seis histórias – a intensa elucubração filsófico-literária de David Mitchell pode não ser, mesmo, material de cinema.

Pelos motivos expostos lá em cima, a elegante estrutura do livro – possível apenas se, em vez de filme, Cloud Atlas fosse uma mini-série; e mesmo assim…– foi desmontada e substituída por uma espécie de quebra cabeças no qual as seis narrativas não exatamente se encontram, mas se chocam num caleidoscópio de estilos e tons, menos uma sinfonia e mais uma cacofonia .

São dez minutos de drama seguidos por dez de romance , continuados num thriller de ação que vai dar numa farsa seguido por algo que parece uma versão asiática de Matrix. Não há tempo para a espectadora ou espectador se envolver de fato com nenhum dos múltiplos personagens. Quase se consegue isso com o amanuense dos anos 1930, vivido por Ben Whishaw, e com o editor de livros dos dias de hoje, encarnado pelo sempre genial Jim Broadbent, duas narrativas que, significativamente, foram dirigidas por Tykwer. Mas mesmo esses breves acordes se perdem no tumulto do restante.

Há momentos absolutamente espetaculares, em geral cortesia de Lana e Andy Wachowski,  quase todos na Neo-Seul do século 22, onde o drama criador/criatura, senhor/escravo se repete com inteligências artificiais e seres humanos. E instantes de real impacto lírico, quase sempre com assinatura de Tykwer, e mais comuns nas duas histórias que apontei há pouco.

O artifício  de empregar os mesmos atores para diversos papéis ao longo do tempo, escolhido pelo trio para enfatizar a ligação entre as seis histórias, talvez tivesse funcionado se o orçamento (levantado de forma independente, num esforço hercúleo) tivesse permitido um alto nível de sofisticação no acabamento da maquiagem. Não é o caso, infelizmente. Há momentos  francamente embaraçosos, mais próximos de um filme de Eddie Murphy do que, digamos, Benjamin Button. Os pobres Hugo Weaving e Hugh Grant são os que mais sofrem, mas Jim Sturgess e James D’Arcy  como coreanos do futuro estão no limite da vergonha alheia. Além do que, pelo menos para mim, o elemento “descubra o ator!” serve  mais somo uma distração do que uma atração, me distanciando ainda mais de uma narrativa com qual eu já estava lutando para me engajar.

No final, fica o louvor  ao trio por ter tentado tamanha loucura, e pelos momentos de brilho produzidos por tanto esforço. Ou, como disse A.O. Scott no New York Times, pelo fato de ter seis filmes diferentes pelo preço de um ingresso…

Cloud Atlas estreia aqui hoje e dia 25 de dezembro no Brasil.


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