Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : Sundance Channel

Sexo, drogas e revolução: o terrorista como rockstar no “Carlos” de Olivier Assayas
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Ana Maria Bahiana

Está no ar esta semana no Sundance Channel a minissérie Carlos, de Olivier Assayas, sensação em Cannes e primeiro lançamento de um belo pacote de projetos de ficção do canal – que inclui Tríplice Fronteira, de José Padilha.

Carlos é um banquete de cinema, não importa em que tela esteja. Como todo banquete – são quase seis horas de duração, divididas em três partes – tem momentos deliciosos e nem tanto, altos e baixos. Poderia ser mais curto, mais concentrado, menos disperso – depois de algum tempo é fácil perder o rumo entre tantos personagens, cidades, países e intrigas políticas. Mesmo assim é uma experiência cinematográfica de imenso vigor e ousadia, uma releitura ao mesmo tempo pensativa e insolente das raízes do drama geopolítico que vivemos hoje. Pensar que algo assim, filmado em oito locações em três continentes, foi possível graças à parceria de duas independentes de TV – o Canal Plus francês e o Sundance norte-americano – dá mais elementos para o debate TV-como-novo-cinema que ocupa as melhores mentes da indústria, hoje.

A comparação com o igualmente vasto Che de Steve Soderbergh é imediata e natural. Ambos focalizam figuras históricas com os mesmos traços – Che Guevara, o argentino apóstolo da luta armada na América Latina nos anos 1960; Ilich Ramirez Sanchez, codinome “Carlos”, o venezuelano responsável, entre 1975  1985, por algumas das mais espetaculares ações terroristas em solo europeu, em nome da Frente Pela Libertação da Palestina.

Mas enquanto o Che Guevara de Soderbergh/Benicio del Toro era um idealista consumido pela paixão de suas ideias, o Carlos de Assayas/Édgar Ramirez é, acima de tudo, um rockstar: vaidoso, temperamental, arrogante, incapaz de resistir às mulheres e à celebridade. Fala muito em seu compromisso com “a luta internacionalista”, “a defesa dos oprimidos”e “a derrota do imperialismo” – mas quase sempre quando quer finalizar uma nova conquista. No primeiro episódio , confessa: “minha religião é o marxismo”. No terceiro, abre uma negociação com “é claro que sou muçulmano”. Jeans, casaco de couro, costeletas, cabeleira, uma boina-Che no auge de sua glória, Carlos vive na estrada, coleciona groupies, exige obediência cega de seus subordinados, cheira cocaína no meio de um sequestro e detesta longos compromissos.

Quando ele diz que quer “criar um novo grupo” é com a mesma animação de quem diria “quero criar uma nova banda”. Cada ação que planeja é coreografada para máximo impacto de mídia, e Carlos apregoa seu nome enquanto dá tiros e faz reféns. Suas trocas de lealdade a sortidos grupos extremistas – as Células Revolucionárias alemãs, o Exército Vermelho japonês, os palestinos, os sírios, os iraquianos, os líbios – são motivadas e executadas como quem troca de gravadora. Carlos acompanha com prazer a cobertura de seus feitos na mídia; em dado momento, sentindo a queda em sua “popularidade”,  coordena uma entrevista exclusiva com um jornalista sírio _ mas quando a matéria publicada não sai como queria, manda matar o pobre repórter.

Assayas enfatiza esse olhar ao rechear a trilha de Carlos com rock dos anos 70-80, não necessariamente contemporâneo a cada data da narrativa, mas extremamente coerente com o espírito da obra: ambos expressam a mesma mistura de raiva e vaidade, desejo de destruição e de sucesso, uma espécie de brilho caótico sonhando, em tese, com uma vida breve e uma morte gloriosa – mas tentando adiá-la ao máximo. É particularmente feliz e dramático o uso de “Dreams Never End”, do New Order, como assinatura musical do personagem Carlos, e as duas canções que encerram os episódios:”El sueno americano” , da banda argentina La Portuaria, nos episódios 1 e 2, e “La pistola y el corazon”, dos angelenos Los Lobos, no episódio final.

Assayas e o co-roteirista Dan Franck dizem ter baseado a minissérie em pesquisa independente, e não nos muitos livros já escritos sobre ou inspirados pela legendária figura, apelidado pela mídia da época de Carlos, O Chacal. Um aviso no início de cada episódio alerta para a natureza fictícia de muitas passagens da história . Assayas está no comando, e seu Carlos é um personagem cuidadosamente calibrado para nos fascinar e repugnar em rápida sequência, muitas vezes ao mesmo tempo.

O fascinante da série, especialmente seus dois primeiros episódios, é seu ritmo impecável, um verdadeiro thriller internacional  com notável controle da narrativa. O terceiro e mais longo episódio é o mais fraco, talvez porque o mundo em que Carlos habita – o universo pós-guerra-fria, onde militantes são antes de tudo fundamentalistas religiosos – seja mais complicado que as claras trincheiras dos 70. No final, Carlos não tem a morte gloriosa com que sonha – apenas esmaece aos poucos, isolado , rancoroso e incompreendido como um rockstar sem plateia.


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