A esperança brota, eterna, no novo filme de Meryl Streep
Ana Maria Bahiana
Numa temporada em que tudo tem uma dimensão gigantesca, e cada lançamento parece querer derrubar o outro numa espécie de olimpíada do ruído, movimento, número de personagens, tiros e explosões, é um prazer estranho e delicioso ver um filme pequeno em todos os sentidos. Deliberadamente pequeno, como um concerto de música de câmara diante de uma sinfonia para coral e orquestra, um solo de violão versus um duelo de guitarras heavy metal.
Foi assim que me senti quando acabei de ver Um Divã Para Dois (Hope Springs, estreando hoje nos EUA e dia 17 no Brasil), uma iluminura de filme em tom menor, um concerto a oito mãos para três atores excelentes – Mery Streep, Tommy Lee Jones, Steve Carell- e o diretor David Frankel, trabalhando com uma partitura simples e perfeita de Vanessa Taylor, estreando no cinema depois de uma bela carreira na TV (Game of Thrones, Alias).
Fellini, Coppola e Chris Nolan sempre disseram que metade -ou mais que isso- do trabalho de criação de um filme está na escolha do elenco. Este filme é uma prova eloquente disso : uma derrapagem na escolha desse trio e talvez o delicado roteiro de Taylor se transformaria em algo possivelmente sem graça. Porque toda a ação desse Divã se resume basicamente a quatro locações: a casa do casal Kay e Arnold (Streep e Jones), equipada com todos os confortos modernos mas vazia de filhos e emoções mais fortes que uma partida de golfe na TV gigantesca; o consultório do terapeuta Dr. Feld (Carell), ensolarado e, significativamente, caseiro; a boutique “para senhoras” onde Kay trabalha como vendedora; e o quarto de hotel, asséptico e indiferente, onde o casal se hospeda enquanto tenta, com a ajuda do psicólogo, reacender a chama do seu casamento de mais de três décadas.
E a história também se resume ao que se passa nesses poucos ambientes: um casal assentado confortavelmente em sua rotina de cuidadosa indiferença é acordado por uma incontrolável onda de desejo da mulher, Kay. Porque quem vive Kay é Meryl Streep, aprendemos logo , sem que ela diga coisa alguma, que esse mar de paixão não é um fenômeno recente mas vem, subterrâneo, há meses, anos, batendo contra os rochedos de um marido que fez da rotina sua defesa e seu castelo. Dois minutos de Meryl/Kay diante do espelho, logo na abertura no filme, nos contam mais sobre o mundo interior da personagem e as batalhas emocionais que teve que enfrentar, perder e negociar do que muitas linhas de diálogo interpretadas por atrizes de outro escalão. Essa onda do desejo e da esperança sacode a relação até as fundações _ cabe ao paciente e legitimamente interessado Dr. Feld propor as saídas para o impasse – que, assustadoramente, incluem derrubar as estudadas defesas de Arnold.
Frankel é um diretor de rara sensibilidade, que fez de O Diabo Veste Prada um filme muito mais inteligente do que era preciso. Com este material mais sutil ele mostra o quanto compreende o ritmo da dramaturgia cinematográfica, o vai e vem das interações entre os atores, as pausas e os momentos mudos mas intensos de que grandes intérpretes são capazes. E, devo acrescentar, Jones e Carell estão absolutamente perfeitos em seus papéis, Jones olhando o mundo pelo visor estreito da armadura que construiu com tanto cuidado, Carell com uma mistura bem equilibrada de compaixão, rigor e entusiasmo. Há coisas hilariantes, há coisas comoventes, mas sobretudo há uma humanidade triunfante e sincera neste pequeno, delicioso filme.
E embora eu compreenda a necessidade da tradução brasileira, eu queria compartilhar com vocês o poema de Alexander Pope que inspirou o nome da cidadezinha fictícia – Hope Springs- que dá o título original do filme: “A esperança brota, eterna, no animal humano/ o homem nunca é mas sempre será abençoado/a alma, inquieta e confinada em sua casa/ repousa e se expatria numa vida que ainda virá.”
E este, amigas e amigos, é o tema desta obra-contraponto ao ruído dos acordes finais da temporada-pipoca.