Blog da Ana Maria Bahiana

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O adeus de Soderbergh: sexo, mentiras e um candelabro
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Ana Maria Bahiana

Revi recentemente Sexo, Mentiras e Videotape, o filme que , em 1989, apresentou Steve Soderbergh ao mundo e, praticamente sozinho, reviveu o cinema independente norte-americano. Foi um acaso feliz: no momento em que,  28 anos e 36 títulos depois, Soderbergh anuncia que vai se aposentar, senão do cinema, pelo menos do “cinema narrativo” (palavras dele), foi importante voltar onde tudo começou e ter, com uma perspectiva nova, um olhar sobre o olhar soderberghiano.

Eis o que aprendi: dividido entre ter fé e desprezar o ser humano, Soderbergh usa sua câmera como uma mistura de telescópio e microscópio, procurando sinais distantes ou mínimos que comprovem um ou outro sentimento. A conexão sueca (Soderbergh, nascido em Atlanta, é de família sueca, e fala o idioma com certa facilidade) me traz à cabeça o nome “Bergman”, mas vou parar por aqui, porque a equivalência areia=caminhão ainda está desequilibrada.

Digo isto: Bergman e Soderbergh são realizadores filosóficos. Andariam pelas colinas com uma lanterna procurando o Homem Justo, se fossem Diógenes e vivessem na Grécia antiga. Em vez disso, andam pelo mundo com a lanterna mágica de suas câmeras- no caso de Soderbergh, literalmente, já que em quase todos os seus filmes ele é seu próprio diretor de fotografia.

Há muito sexo e mentiras nos dois filmes que marcam o “adeus” de Soderbergh, Terapia de Risco (Side Effects) e Behind the Candelabra.  Sexo e mentiras são constantes na filmografia soderberghiana, as duas moedas correntes com que mulheres e homens negociam, arriscam e apostam suas vidas.

Trabalhando com um roteiro de seu colaborador de fé, Scott Z. Burns (Traffic, Contágio, O Desinformante!), Terapia é construído como um thriller psicológico à moda antiga, meio Hitchcock , meio drama político dos anos 1970. A trama em si _ moça (Rooney Mara) começa a apresentar estranhos e perigosos efeitos colaterais depois de medicada com um novo antidepressivo prescrito por seu psiquiatra (Jude Law) _ é quase um artifício para Soderbergh fazer o que mais ama: trabalhar com seus atores nas muitas camadas de verdade e mentira, afeição e manipulação com que todos os personagens tratam-se uns aos outros.

Não é à toa que os atores disputam a tapa a oportunidade de trabalhar com Soderbergh: mesmo em seu modo mais light, como na franquia 11 Homens, ele é um mestre na sutil colaboração entre rosto, corpo, luz e câmera, incentivando, compreendendo e captando o modo como o desempenho do ator conta a verdadeira história: a história atrás da história, escondida nas palavras do roteiro.

Com a possível exceção de Che e talvez Erin Brockovich, Soderbergh tende a descrer do idealismo puro e simples. Sua atração por histórias de golpes, traições, vidas duplas (Romance Perigoso, O Estranho, Traffic, O Desinformante!, O Segredo de Berlim, À Toda Prova , a franquia 11 Homens, até mesmo Contágio) confirma que ele duvida muito que os humanos façam jornadas firmes e retas na direção dos seus objetivos. Ou, mesmo que o façam, talvez não tenham a menor ideia dos verdadeiros impulsos que os estão empurrando.

É esse trabalho que ele tece com seus atores e que, com sua câmera altamente inteligente e sensível, capta com todo rigor.

 Terapia de Risco é a história dos efeitos colaterais causados pelas mentiras que contamos a nós mesmos. Behind the Candelabra, que, oficialmente, é o canto do cisne de Soderbergh, aprofunda essa indagação de forma vertiginosa. Seu exterior de excessos, ouros, peles, plumas e paetês (execução maravilhosa da direção de arte de outro colaborador constante de Soderbergh, Howard Cummings) é essencial para enquadrar o drama que se passa no interior de seus protagonistas: Liberace (Michael Douglas), o pianista superstar, artista mais bem pago das décadas de 1950, 60 e 70, e Scott (Matt Damon), o garoto que rapidamente evolui de seu fã para namorado/assistente/motorista/objeto de cena.

A natureza sinistra, predatória, vampiresca, do relacionamento entre Liberace e Scott não é de modo algum restrita a casais gay, muito pelo contrário: o roteiro perfeito de Richard LaGravenese, a maestria de Soderbergh e o talento de todo o elenco deixam claro que se trata de um drama sobre o inevitável cabo-de-guerra de poder em qualquer relacionamento a dois.  Quem está usando quem? Quem é realmente o forte, quem é realmente o fraco? Quem domina, quem permite ser dominado? Quem compra, quem vende? E sobretudo: por que?

Baseado na autobiografia do mesmo nome de Scott Thorson, que teve um relacionamento intenso e secreto com Liberace entre 1977 e 1981, o filme se recusa a tomar partido nessa discussão, evitando a armadilha fácil de caracterizar Liberace como o predador eternamente emboscando jovens presas descartáveis e Scott como sua vítima inocente. Ambos são apresentados como homens complexos, com mais coisas em comum do que podem suspeitar ou admitir: famílias partidas, uma insaciável sede de aceitação e amor e um pavor paralisante de ser rejeitado e abandonado. Há uma forma muito especial de egoísmo que se desenvolve alimentado por esse tipo de fratura interior, e o filme de Soderbergh é absolutamente preciso em captá-lo.

Há algo naturalmente arriscado quando se coloca um drama dessas proporções (ou seria uma divina comédia?)  no ambiente de Las Vegas dos anos 1970, ainda mais no habitat de um popstar perto de quem Elton John e Lady Gaga são figuras discretas. O flerte com o ridículo está sempre presente em Candelabra, ampliando o drama humano e dando um gume de risco que  Douglas e Damon, em especial, surfam com a habilidade de mestres.

Além de todos esses temas Candelabra oferece mais alguns: uma discussão da ideia de masculinidade, e um olhar sobre um tempo em que ser gay era visto como algo pior que a lepra na Idade Média, capaz de sepultar a mais fulgurante das carreiras. O quanto o segredo _ e o medo e o poder que vêm  com o segredo _informa o comportamento amoroso dos dois? E seria possível que, mesmo na mais bizarra e doentia das circunstâncias, o amor realmente se dê entre eles?

 Behind the Candelabra começa com “I Feel Love”, de Donna Summer, e termina com “The Impossible Dream”, interpretado por Michael Douglas como Liberace. Entre uma e outra ideia, entre uma e outra canção, esconde-se a resposta.

 Terapia de Risco está disponível em DVD/BluRay nos Estados Unidos, e em cartaz no Brasil. Behind the Candelabra está no festival de Cannes e estreia domingo dia 26 na HBO, nos Estados Unidos.

 


Cannes 2013: a minha lista
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Ana Maria Bahiana

Embora Cannes tenha se tornado uma proposta financeiramente inviável para mim, todo ano sigo com maior interesse o que se passa na Croisette e arredores. Durante mais de 10 anos deixei sangue, suor e lágrimas entre o Palais e o Hotel du Cap, e tive algumas das mais maravilhosas experiências cinematográficas  da minha vida (combinadas com alguns dos momentos mais surreais, fora das salas de exibição…)

Mas estou sempre de olho em Cannes, por vários motivos. Um deles é porque dali saem sempre títulos que vão longe, marcando, influenciando e, ocasionalmente, acumulando prêmios pelo mundo afora. Os prêmios podem ser a parte mais visível (alô, O Artista!) mas o mais importante é como esses filmes dialogam com plateias e realizadores pelo mundo afora, a partir do impulso em Cannes.

Estes são os que estou acompanhando este ano:

Only God Forgives (em competição, Nicolas Widing Refn) Estou exagerando quando digo que Refn e o britânico Steve McQueen são dois dos realizadores mais interessantes neste momento? Vejo em ambos uma nova abordagem da violência que foge da noção de entretenimento e espetáculo e vai fundo nas causas e consequencias de atos que infelizmente nos acostumamos a ver como banais. Ryan Gosling como um traficante no submundo de Bangkok me interessa, também.

The Bling Ring (Un Certain Regard, Sofia Coppola) O caso foi manchete aqui em LA entre outubro de 2008 e agosto de 2009 _ casas de celebridades estavam sendo invadidas e roubadas. Quando finalmente os responsáveis foram apreendidos – depois de roubar 50 mansões e mais de três milhões de dólares – veio a surpresa maior: eram todos adolescentes ricos e mimados de um condomínio fechado numa região caríssima da cidade.  Há uma oprtunidade enorme, aqui, para Sofia Coppola exercitar sua sensibilidade em comentário social e seu mordaz senso de humor.

 

Soshite Chichi Ni Naru (em competição, Hirokaru Kore-eda) Sou fã de Kore-eda desde Além da Vida, um filme que me comoveu profundamente. Sua preocupação com a natureza humana e os laços de família estão todos aqui, na história de um homem de negócios ambicioso que descobre que o filho que criou não era, de fato, seu filho.

 

Inside Llewyn Davis (em competição, Joel e Ethan Coen) Mergulhar fundo e recriar micro-universos e subculturas – vagabundos profissionais em LA, família judaicas dos subúbrios, moradores de pequenas cidades do meio oeste- é algo que os irmãos Coen fazem como poucos. Neste caso, o microcosmo é a cena folk de Nova York nos anos 1960 e o elenco tem Carey Mulligan, Justin Timberlake e John Goodman. Já me interessei.

Le Passé (em competição, Asgar Farhadi) Para todo mundo (eu, inclusive) que queria saber o que Farhadi faria depois da perfeição de A Separação, esta é a resposta: um drama romântico em Paris, em Berenice Bejo (de O Artista) e  Tahar Rahim (Un Prophète). Pra mim já basta…

Behind the Candelabra (em competição, Steve Soderbergh) O fato deste ser, na verdade, um filme feito para TV já diz muita coisa sobre o nível da produção de TV, especialmente da TV por assinatura. Este também é o último filme de Sodebergh, pelo menos por algum tempo (se formos acreditar nas promessas dele de se aposentar da “narrativa formal”). Como se sabe, é a história do estranho amor entre Liberace (Michael Douglas), pianista e astro de Las Vegas, e seu motorista muito mais jovem, Scott (Matt Damon). Precisa dizer mais?

Nebraska (em competição, Alexander Payne) Como seus companheiros de geração, Alexander Payne tem a precisão do olhar necessária para compreender e compartilhar o universo individual de cada personagem e a sociedade à sua volta. Aqui, ele centra sua história num tema recorrente nesta safra de Cannes, a relação entre pais e filhos,mais especificamente um pai alcóolatra e o filho que ele perdeu de vista. E o elenco de Bob Odenkirk, o “Saul” de Breaking Bad!!!

 

All is Lost (fora de competição, J. C. Chandor) Li este roteiro muito cedo no processo de criação deste filme e quase me envolvi com ele. Fiquei absolutamente intrigada: a história tem apenas um personagem, um homem do lado de lá da meia idade, sobrevudendo a um naufrágio em alto mar, e não tem diálogo. Não, não é nem As Aventuras de Pi nem Náufrago, mas é uma pequena gema de estrutura e composição. Quero muito saber o que aconteceu com ele, agora que Robert Redford é o homem e Chandor (Margin Call) é o diretor…


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