Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : Brave

Coração valente, coração selvagem
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Ana Maria Bahiana

Fiquei muito supresa com as primeiras resenhas de Valente (Brave), aqui nos EUA. Senti uma má vontade generalizada, vinda não sei de onde nem por que (desconfiança –para não usar outra palavra- do sucesso prolongado da Pixar?), expressa em geral no ruminar constante do mesmo conjunto de ideias que soam bem pré-fabricadas: que a heroína era mais uma iteração das princesas da Disney; que o longa de animação teria sido feito “calculadamente” para “não entediar os pais e acompanhantes das crianças”; e outras coisas nesse mesmo tom.

A uniformidade não me espanta: é um subproduto desta nossa era de produção  e consumo rápido rápido rápido de ideias, onde se tem cada vez menos tempo para refletir antes de emitir uma opinião, e onde é muito mais fácil repetir (ou copiar + colar) as ideias alheias. O que me espanta é que, tendo lido tudo isso depois  de ver (como é meu costume) o novo lançamento da Pixar eu fiquei pensando: será que esse povo viu o mesmo filme que eu vi? (E que estreou em primeiro lugar na bilheteria?)

Vamos de cara às duas questões chave que, parece, tem sido o centro das resenhas.

1. Merida, a protagonista de Valente, tem em comum com as heroinas da Disney o fato de ser uma menina e de seus pais serem a familia real de um fictício clã escocês em algum ponto da antiguidade das Terras Altas. As semelhanças param aí: não há namorado galante/trapalhão/aventureiro, bichinho engraçadinho pra fazer companhia/dizer piadas/fazer gracinhas, e certamente não há a subtrama de comédia romântica que marca os filmes da Disney, de A Pequena Sereia até A Princesa e o Sapo.

2. Todo filme destinado a crianças que pretende ter uma sobrevida no mercado precisa atender petizes e seus acompanhantes. O extremo desse princípio é o filme que, tecnicamente para crianças, é tão repleto de referências adultas, duplo sentido e piscadelas de olho que se torna praticamente irrelevante como produto infantil (como referência, quase tudo que a DreamWorks Animation tem produzido).

Tendo dito  isso, devo acrescentar que Valente teve uma trajetória longa – quatro anos em produção – e atribulada. Trocou de título – originalmente era The Bear and the Bow, O Urso e o Arco – e de diretor –  Mark Andrews, discípulo de Brad Bird, substituiu Brenda Chapman, originadora do projeto;ambos tem crédito no filme – no meio do caminho. E, como de costume, passou pelo mesmo tortuoso e colaborativo processo pelo qual passam todos os projetos da Pixar onde, em circunstâncias normais de temperatura e pressão, tudo acaba dando certo; mas, nestas condições, corria um tremendo risco.

Fiquei muito feliz ao ver que, apesar de tudo isso, Valente mantinha a integridade da visão inicial de Chapman: trazer para a galeria de personagens da Pixar não apenas uma heroína, mas, com ela, a complicada relação entre mãe e filha que é espetacularmente ausente do cinema comercial, especialmente o de animação. Será que isso escapou de  maneira tão gritante aos meus colegas resenhistas porque eles são, em 99% dos casos, homens?

Como fui  uma menina que preferia ler Julio Verne e Jack London em vez da Coleção das Moças, que vivia sempre com joelhos e braços esfolados, fugia para jogar futebol com os garotos e sonhava ser exploradora pelo mundo afora, Merida me pareceu extremamente familiar. E refrescantemente próxima da experiência real – e não imaginada, em geral por um homem – de crescer sendo menina, à sombra das expectativas da sociedade, em geral encarnadas na figura materna, mas animada pelo fogo interior que é prerrogativa de todo ser humano. É um tema poderosíssimo, que merece ser retomado muitas vezes de muitas formas, limpo, sem clichês, sem distorções.

Confesso que, durante os primeiros 25 minutos de Valente, temi que a história fosse descambar exatamente pela rota do previsível. Mas aí algo absolutamente mágico acontece: Valente enverada resolutamente por um território que, como me lembrou o cinéfilo, teórico e programador da cinemateca do Los Angeles County Museum of Art Bernardo Bahiana Rondeau – que por acaso ou não é meu filho- é puro Hayao Miyazaki. Valente abraça sem restrições o coração selvagem de uma narrativa que leva a sério o poder da metáfora visual pura que a animação oferece, e ilumina a história da menina que seria ser livre com os recursos mágicos de uma forma de fazer cinema que não tem restrições, e onde “possível” e “real” são a mesma coisa.

Se eu contar aqui o quão maravilhosa e sensacionalmente bem executada é a metáfora visual que está no coração mesmo da trama de Valente, estarei cometendo um spoiler titânico. Mas podem ficar sossegados. Vão ver e depois me contem.

Como animação, Valente coloca ainda mais alto o padrão que a própria Pixar já tinha posto nas nuvens. A riqueza e, ao mesmo tempo, o absoluto controle do universo da menina Merida – uma Escócia inteiramente orgânica e, ao mesmo tempo, completamente mágica – ecoa, novamente,  Studio Ghibli e a Disney clássica de Branca de Neve, Bambi e Bela Adormecida. Mas vai além, tão mais além.

Valente está em cartaz nos EUA desde sexta feira e estreia dia 20 de julho no Brasil.


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