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A perfeita tragédia de Albuquerque: Breaking Bad e o poder das escolhas
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Ana Maria Bahiana

A definição aristotélica de tragédia é: uma narrativa dramática concentrada num grupo de personagens, em um lugar e período definidos, cuja ação é deflagrada pelas escolhas equivocadas de um protagonista complexo, com consequências que ecoam em todos à sua volta e fazem a plateia refletir sobre a condição humana.

Aristóteles teria adorado Breaking Bad. Possivelmente estaria, como eu, pulando do sofá ao final de mais de um episódio para aplaudir de pé (se a toga não atrapalhasse). E isso incluiria “Felina”, o episódio final,  exato em tom e conteúdo, que foi ao ar ontem pela AMC, e foi visto por mais de 10 milhões de espectadores, apenas nos Estados Unidos.

Vou tentar falar da série e do final com o máximo cuidado para evitar SPOILERS mas se você for ultra-sensível, pode parar aqui.

Como alguns colegas, eu também vi em “Felina” grande buracos de credibilidade. Não é a primeira vez: em muitos momentos dos 62 episódios de Breaking Bad Vince Gilligan e seus roteiristas armaram situações que desafiam a plausibilidade e/ou a lógica. Mas isso nunca me incomodou, nem na série nem no final porque:

1. A realidade consistentemente consegue ser mais absurda que a ficção, e quase tudo que se pode imaginar pode acontecer- e talvez já tenha acontecido.

2. Não é isso que importa na série. O que importa é a exatidão da trajetória de dois arcos exatos e opostos que se cruzam, se encontram e finalmente se separam: o de Walter White, o “homem bom” que nunca foi tão “bom” assim, e o de Jesse Pinkman, o “homem mau” que nunca foi tão “mau” assim.

Sempre coloquei os soluços de trama de Breaking Bad numa categoria entre a metáfora, o sonho e o “estado de fuga” – verdadeiro ou fake, não importa. Eles nunca me perturbaram porque o importante – a coerência interior do mundo criado pelas ações do protagonista, a clareza do traço da dupla trajetória de Walter e Jesse- sempre esteve lá. Breaking Bad sempre foi uma calma, clara, violenta, profunda, perturbadora, divertida e intensa meditação sobre certo e errado, bem e mal, legal e ilegal, o que nos faz feliz e o que nos faz sofrer, até onde nossa consciência e nossos desejos nos dizem o que fazer, e até onde nós seguimos essas ordens.

Quando  subiu o som de “Baby Blue”, do Badfinger (uma escolha absolutamente perfeita), nos segundos finais, enquanto a câmera deslizava lentamente para cima, naquele movimento amplo e eufórico conhecido como “o ângulo dos anjos”, Walter e Jesse haviam encontrado a meta justa da jornada que haviam iniciado 62 episódios atrás.

Jesse, o bandidinho de terceira, passara pelo crivo das reais provações da bandidagem em grande escala e perdera nesse fogo, camada por camada, a fina capa de safadeza que um dia achou que tivesse. Em seu lugar, às custas de muita porrada e muitas perdas irreparáveis, ele encontrou algo que nunca achou que tivesse: um firme centro moral, uma imensa compaixão, uma profunda humanidade. Jesse sempre foi o Grilo Falante do Pinóquio de Walter, esse boneco que ganhou vida ao quebrar a lei (“eu fiz por mim mesmo. Eu me sentia vivo”, ele diz no episódio final).

Walter, o bom sujeito classe média, fizera a escolha que, em outros mitos, já havia arruinado outros indivíduos brilhantes –como o favorito de Aristóteles, Édipo: optar pelo que não é permitido, arriscar-se pela sombra. E na sombra ele teve a sua provação, cada escolha sombria levando a uma mentira, cada mentira levando a uma nova, maior, escolha sombria, despertando nele o Outro com o qual, imagina-se, ele sempre dançara – seu Batman, seu Mr. Hyde, Heisenberg.

O x de Walter White está logo num dos primeiros episódios da série, quando ele diz “eu nunca tive controle sobre minha vida, nunca pude fazer minhas próprias escolhas.” O que não sabemos sobre o passado de Walter White é muito, mas o que importa é isto: ele foi parar em Negra Arroyo Lane, Albuquerque, e no laboratório de química do ginásio do bairro por escolhas que deixou de fazer. O que veremos a seguir é seu fantástico “erro de alvo”, tão caro a Aristóteles: as escolhas que ele, finalmente, fez.

Tudo se resolve, clara e elegantemente, em “Felina” – palavra que oculta “finale” e que referencia a personagem da canção “El Paso” do ídolo country/western Marty Robbins, que Walter acha no cassete de um dos carros do episódio,  e cujo refrão diz “acho que ganhei o que eu merecia”. A cada um a coerência de suas escolhas, inclusive os que foram tragados pelo redemoinho da progressiva divisão dos átomos de Walter White, partido entre Mr. White e Heisenberg.

Além da imensa satisfação de acompanhar uma obra tão excelente em todos os seus aspectos – roteiro, direção, interpretação, fotografia, música, som – Breaking Bad deixou grandes lições para a indústria do audiovisual. A Variety listou algumas, importantes, e concordo com todas – especialmente “nem tudo está no piloto” e “Netflix é um aliado, não um inimigo”.

A todos essas lições eu acrescentaria mais uma: confie na inteligência do público. Somos inteiramente capazes de acompanhar, entender e apreciar um drama complexo em tema e tom. 2438 anos atrás Aristóteles já sabia disso.


À luz das sombras: a (extraordinária) temporada final de Breaking Bad
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Ana Maria Bahiana

Você lembra a primeira vez que viu Breaking Bad? Eu lembro _  estava procurando outra coisa na AMC e peguei os minutos finais do episódio  da primeira temporada em que Jesse e  “Heisenberg” encontam-se com Tuco e seus comparsas no depósito de sucata. Eu não tinha contexto algum para compreender o que se passava, não sabia sobre o que cada personagem estava falando, ou, mais importante ainda, a história atrás de cada palavra e cada silêncio. Mas fiquei imediatamente hipnotizada. O que estava acontecendo ali naquele cemitério de automóveis, entre as coisas não ditas? Que história secreta e imprevisível se contava ali, num pequeno mundo estranho completamente vazio dos bandidos e mocinhos da TV?

Hipnotizada. Essa é uma palavra que eu e muitos fãs usaríamos muito nas próximas semanas, meses e anos, enquanto seguíamos a jornada de danação do prosaico professor de ginásio transformado em senhor da droga.  Como era possível uma série tão emocionalmente complexa, tão absurdamente bem escrita, com personagens completamente humanos, revertendo com tanta calma tantos clichês num universo narrativo onde super-explicar, ser óbvio e abusar dos clichês são a norma?

Se você se sente como eu, trago boas novas _ a temporada final de Breaking Bad, que começa dia 11 de agosto aqui nos Estados Unidos, não vai decepcionar em nada. Muito pelo contrário _ a julgar pelos primeiros episódios desse lote final (oficialmente chamado de s5B) Breaking Bad vai acabar exatamente como começou, com o mesmo gume subversivo e a mesma qualidade excepcional.

Tentando ao máximo não criar SPOILERS, digo que o primeiro episódio da s5B é uma obra prima. Dirigido pelo próprio Bryan Cranston (por favor, dêem mais coisas pra esse homem dirigir!!!) e escrito por Peter Gould ( mestre roteirista, autor de 34 episódios de Breaking Bad, inclusive o que me seduziu de forma tão dramática nos idos de 2008), Blood Money continua exatamente do ponto onde, no final da temporada passada, o cunhadão Hank (Dean Norris, sensacional) teve uma epifania envolvendo uma visita ao banheiro, um livro de poemas de Walt Whitman e as iniciais WW.

Antes, há um breve e sinistro prólogo no qual realizamos o quanto os cenários aparentemente banais de Breaking Bad – a pasteurização arquitetônica do contentamento classe média, a paz semimorta dos condomínios de subúrbio – contam histórias em si mesmos. E que histórias!

Há uma tensão quase insuportável latejando através de todo esse episódio. Mas ela é mantida sob rígido controle, sem os estardalhaços que, em outras séries ou filmes, seriam a opção para sublinhar a situação absurda que todos os personagens estão vivendo. Esse rigor – desenhado no roteiro, realizado plenamente na direção- tem como efeito manter nossa atenção, o tempo todo, nos personagens e na riqueza de seu mundo interior: Hank, um touro furioso, ferido nem tanto em seu zelo de homem da lei, mas em seu orgulho próprio; Jesse (Aaron Paul, cada vez melhor, se isso é possível) devastado pela culpa;  Skyler (Anna Gunn, cujo trabalho ainda precisa ser mais reconhecido) em queda livre; Walter (Cranston, o que mais dizer?) numa resoluta embriaguez de poder, a completa entrega ao lado sombrio da força.

Vai ser uma tremenda viagem, esses próximos episódios até Felina, o final da série, escrito e dirigido por seu criador Vince Gilligan. Não esperem nada. Esperem tudo.


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