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Como o garoto de Liverpool se transformou em John Lennon: a delicada saga de Nowhere Boy
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Ana Maria Bahiana

Porque hoje é dia 9 de outubro e John Lennon faria 70 anos se sua história não tivesse sido brutalmente interrompida 30 anos atrás achei que seria a hora certa de falar de Nowhere Boy – que estreou aqui neste final de semana e chega ao Brasil, com o título O garoto de Liverpool, dia 3 de dezembro.

Tenho problemas com a maioria das cinebios rock – acho banais, meio com cara de fime-de -TV- pré-HBO, assépticas, sem o pulso vital que  é a essência dessas vidas.  Tanta coisa nessas vidas é  além de imagens. Tanta coisa é intraduzível, ou infinitamente particular, ou misteriosa no modo como foi apropriada e reinterpretada nas vidas menores de todos nós, nas platéias, do outro lado das caixas de som, dos rádios.

Talvez porque a diretora  Sam Taylor Wood tenha nascido em 1967, quando a Beatlemania já tinha passado  de histeria para fenômeno cultural e se fundia com a contracultura, ela tem a distância necessária para compreender John Winston Lennon como o garoto de Liverpool – alguém tão perdido como qualquer garoto pode ser aos 16 anos, tateando na escuridão da adolescência em busca de um rosto, uma identidade, um destino.

Seus parceiros nesta deliciosa jornada cinematográfica são o preciso roteiro  de Matt Greenhalgh (Control) a partir das memórias de Julia Baird, meio-irmã de Lennon; e Aaron Johnson, que encarna John de dentro para fora, de tal forma que é como se sua alma desse forma ao corpo, em princípio não muito semelhante ao verdadeiro personagem (a colaboração foi tão perfeita que Taylor-Wood e Johnson estão juntos até hoje e tiveram uma filha).

O John de Nowhere Boy é o herói inconsciente do mito – ele realmente não sabe quem é e o que faz na Liverpool do pós-guerra, ainda ecoando histórias de bombardeios e pais perdidos em batalhas. A tia Mimi (Kristin Scott Thomas, maravilhosa como sempre) que lhe serve de mãe é a imagem da Grã -Bretanha dos anos 50- estóica, aferrada a códigos de conduta que já não fazem sentido num mundo que em breve será virado do avesso. Julia (Anne Marie Duff, ótima), a verdadeira mãe que ele acha que perdeu é, na verdade, exatamente como ele – solta no mundo, naturalmente charmosa, fã de blues e jazz, irreverente, irresponsável.

Descobrir, quase ao mesmo tempo, que Elvis Presley existe e que  Julia mora, na verdade, a algumas quadras de sua casa  são as epifanias que vão impulsionar o garoto de lugar nenhum para um destino que ele mesmo, a princípio, não consegue nem imaginar – tudo o que ele quer é cabelo gomalinado, jeans justos, andar no teto do ônibus e impressionar as garotas com uma bandinha furreca na festa na igreja.

Um dos elementos mais delicados e precisos de Nowhere Boy é como ele mantém essa inocência do olhar – nada da onisciência que marca tantos filmes do gênero (aquele clima eles-não-sabiam-mas-estavam-destinados-para-a-glória que é  puro truque cinematográfico).  John e seus improvisados discípulos na banda que muda constantemente de nome e direção musical são exatamente como milhares de outros nas décadas que viriam, adolescentes curando a ressaca da embriaguez de viver com o elixir do rock ‘n roll.

Taylor-Wood ancora a realidade de sua história com os pequenos detalhes que, futuramente, serão parte do mito: a bicicleta passando diante do orfanato Strawberry Fields, o ônibus cujo trajeto inclui Penny Lane, o Cavern Club onde a banda sonha tocar, um dia.  O outro encontro que mudaria completamente a jornada do nosso herói – com Paul McCartney na tal quermesse de igreja – é tratado com igual simplicidade. Paul  (Thomas Sangster, preciso) é o pé no chão, pragmático, já enrijecido pela realidade de praticar o que prega, musicalmente. O excelente trabalho dos dois atores sublinha claramente a faísca entre eles, partes iguais de atração e repulsa, admiração e desprezo, cumplicidade e rivalidade. Em suma: Lennon e McCartney. Ou: “John, seu amiguinho está aqui!”, na voz de Mimi/Kristin Scott Thomas).

Taylor-Wood, que começa seu filme com o acorde de abertura de “A Hard Day’s Night” – num sonho, como um eco distante de chamados futuros – termina sua história um minuto antes  do garoto de Liverpool se transformar em John! Lennon!. Há uma conversa na sala, a luz da tarde pela janela, Mimi e sua xícara de chá.  “Qual é mesmo o nome de seu conjunto?”, Mimi pergunta. “Vocês já mudaram tantas vezes…” John não responde.

O resto será o destino.


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