Dez anos do 11 de setembro – De Rambo a Guerra ao Terror, uma longa caminhada pelo Vale das Sombras
Ana Maria Bahiana
Eu me lembro muito bem da primeira cabine depois do ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center. O filme era Zoolander. As pessoas chegavam meio sem saber o que estavam fazendo ali _ há mais de um mês não se passava filme para imprensa, não havia premieres nem junkets nem festas. Especulava-se sobre a viabilidade ou não de Oscars e Globos de Ouro. A cidade tinha passado do estado de choque à depressão profunda. Alguém ainda se lembra de que três dos quatro aviões usados nos ataques vinham para Los Angeles? Havia amigos, colegas, conhecidos naqueles vôos. A ponte aérea LA-NY é super comum, eu mesma tinha bilhetes para um vôo assim, marcado para o dia 12 de setembro de 2001. Claro que não houve.
As pessoas chegavam na cabine – se não me engano o cinema Harmony Gold, ali na Sunset perto do Directors’ Guild – e não sabiam se cumprimentavam, se conversavam. Dizer o que? E no entanto havia também uma sensação de alivio, uma vaga indicação de que a normalidade talvez fosse possível. Los Angeles faz cinema, poder exibir cinema é como, para um jogador gravemente machucado, entrar de novo em campo.
Além do impacto pessoal do 11 de setembro, haviam outras ramificações locais da tragédia. Diferentes entre si, elas acabavam se juntando no final, como tramas bem planejadas de um roteiro complexo.
A primeira era de natureza metafórica ou, se quiserem, espiritual: havia algo terrivelmente familiar no horror das imagens que as TVs despejavam sem parar naquele dia claro de fim de verão, 10 anos atrás. Durante anos, especificamente os últimos anos do século 20, a indústria tinha se esmerado para imaginar, criar e realizar, nos menores detalhes, coisas muito, muito, muito parecidas.
E não estou falando nem das sérias intenções de Nova York Sitiada, de Ed Zwick que, em 1998, imaginava um ataque terrorista no coração de Nova York e consequente intervenção militar pisoteando os tão caros direitos civis .
“Eu acredito firmemente que nossas maiores ameaças, hoje, vem de situações que nós mesmos criamos no exterior”, Zwick me diria numa entrevista interessantíssima que, muitos anos depois, parece positivamente apavorante.
Mas não, estou falando de pipocada generalizada, filmão para divertir, render altas bilheterias, etc. Por exemplo: Rambo 3, de 1988, com Sylvester Stallone marchando ombro a ombro com os mujahedins islâmicos no Afeganistão, decidido a acabar com o domínio russo na região. Não se falava em Alcaida ou Taliban mas… era isso, não era?
Ou True Lies, de 1994 em que (pelo que eu saiba ) pela primeira vez na imaginação do entretenimento os vilões eram fundamentalistas islâmicos, gravando vídeos com ameaças ao “ocidente decadente”. Havia uma aeronave ameaçando um arranha-céu também _ mas dessa vez os terroristas estavam dentro do prédio, e Arnold Shwarzenegger pilotava o ataque.
“Um antagonista movido por princípios religiosos é muito mais formidável e potente que um movido por ideologia política”, James Cameron me diria em outra entrevista fascinante e sinistramente profética. “Não se pode usar a razão com um terrorista impulsionado pela fé. É inegociável. Ele acredita estar investido por um poder muito maior, estar impulsionado por verdades absolutas.”
True Lies rendeu muito bem na bilheteria mas foi massacrado pela Liga Anti-Discriminação Árabe e outros grupos, que marcharam em Washington pedindo boicote ao filme por “mostrar a população do Oriente Médio como um bando de fanáticos religiosos homicidas.”
Por essas e outras, quando tantos aqui reagiram às primeiras imagens do ataque com um automático “parece um filme!”, eles sabiam muito bem o que queriam dizer. Parecia mesmo. Eles já tinham até feito.
Francis Ford Coppola diz que acredita num estranho poder do cinema: passa-se tanto tempo imaginando, concentradamente, tramas fictícias, que é bem capaz de estarmos conjurando essas energias para o plano do real. Toda magia tem seu lado perigoso _ na luz da tela também podem estar nossas sombras.
A segunda ramificação era de natureza econômica : durante quanto tempo a depressão duraria? O que fazer com filmes já prontos que tinham temas militares, vilões árabes, explosões? (Entre muitos outros, o projeto de True Lies 2 foi cancelado por iniciativa do próprio Cameron. “Terrorismo, como tema, não tem mais a menor graça”, ele disse.)
A resposta veio em dezembro, com um filminho que já tinha sido empurrado de sua data original e que acabou sendo lançado sem muita fanfarra: Atrás das Linhas Inimigas. Nele, Owen Wilson era um soldado americano perdido durante a guerra da Bosnia, lutando sozinho para se reencontrar com seu pelotão.
O filme foi um sucesso, e a indústria respirou aliviada_ o público aceitava guerra e violencia, desde que o herói, americano, tivesse a integridade de seus antecessores na década de 1940 e 1950. A discussão da guerra como um tema moralmente ambivalente, que domina o gênero a partir do Vietnã, é posta na prateleira. Os primeiros anos do novo século são marcados por uma leva de filmes com heróis americanos irrepreensíveis, íntegros, isentos de dúvida ou mácula: Lágrimas do Sol, Falcão Negro em Perigo, Regras do Jogo.
Curiosamente, os eventos do dia 11 de setembro em si, seus antecedentes e consequências demorariam mais de cinco anos para chegar até a tela. E, embora tenham rendido alguns filmes notáveis – Vôo United 93 , Fahrenheit 11 de setembro, Zona Verde, O Reino, Jogo do Poder , No Vale das Sombras, Restrepo, o oscarizado Guerra ao Terror – os fatos, os atos, as tramas e os desdobramentos daquela manhã de final de verão ainda são indigestas, talvez indigeríveis para a grande plateia norte-americana.
Quando o pesadelo se torna realidade, talvez não seja possível voltar atrás.
E aquela cabine de Zoolander? Foi ótima. Acho que poucas vezes ri tanto na minha vida. Até hoje o filme tem um lugar privilegiado na minha memória. Um gole de água boa depois de uma seca penosa. Ri, rimos, menos para esquecer e mais para lembrar que sim, ainda podíamos rir.