Admirável mundo novo: a Academia encara a era digital
Ana Maria Bahiana
Não havia um lugar vazio no teatro Samuel Goldwyn da Academia na noite de quarta feira. A fila tinha começado duas horas antes do evento, e muita gente teve que voltar para casa sem conseguir entrar para ver roteiristas, montadores e produtores discutirem como a tecnologia digital mudou, está mudando e ainda vai mudar ainda mais o modo como histórias são contadas no cinema.
O seminário, intitulado Turning the Page: Storytelling in the Digital Age (Virando a Página: Contando Histórias na Era Digital), foi algo inédito na Academia, a primeira vez que a organização propunha um debate público sobre o impacto das novas tecnologias sobre o coração mesmo da narrativa audiovisual. É parte da “nova visão” (palavras do presidente Hawk Koch durante a reunião geral de todos os membros, no início do mês) da Academia, aparentemente determinada a entrar com tudo no século 21. Até que enfim.
O encontro foi interessante e teve momentos sensacionais, como, por exemplo, depois da exibição, em silêncio respeitoso, de clipes de dois vencedores do Oscar, A Hora Mais Escura e Argo, ver a distinta plateia explodir em aplausos com a abertura de Além da Escuridão: Star Trek (no fundo , no fundo somos todos adolescentes famintos por aventura na sala escura do cinema…).
Mas podia ter ido mais longe: a conversa se limitou às mudanças formais no processo de produção de um filme, sem mergulhar fundo na discussão, muito mais interessante e perigosa, das alterações conceituais que o novo modo de olhar e consumir narrativa, trazido pela tecnologia digital, está forjando.
O moderador John August, roteirista de, entre outros , A Fantástica Fábrica de Chocolate, A Noiva Cadáver, Sombras da Noite e Frankenweenie, abriu a noite com um ótimo aperitivo: a apresentação de No Signal, um viral do You Tube sobre como roteiristas odeiam admitir que um celular que funcione pode acabar com a maior parte de seus truques narrativos.
Isso teria sido uma conversa fantástica, que às vezes emergia em menções dos convidados, especialmente Damon Lindelof (Lost, Star Trek) e Mark Boal (Guerra ao Terror, A Hora Mais Escura): a plateia, hoje, sabe muito mais, compreende muito mais rápido, e não precisa ser, nas palavras de Boal, “pega pela mão como uma criança no primeiro dia de escola, para ser ensinada o que é o que e quem é quem em cada cena”.
O fato de que existe todo um novo contexto, uma “leitura meta” (palavras de Boal) do que antes eram segredos do ofício de realizador teria sido o estopim para um papo interessantíssimo sobre o futuro da narrativa, especialmente quando, em dez anos, praticamente toda a plateia do cinema e da TV terá crescido num mundo digital.
Seria assustador demais? A conversa não foi por aí… Nem abriram para perguntas da plateia, onde havia o maior índice de pessoas com menos de 40 anos que eu já vi na Academia (eu já estava preparada para mandar “E aquele episódio final de Lost, hein?”, pro Lindelof…).
Mas salvaram-se algumas coisas preciosas. Como por exemplo:
– O oscarizado montador William Goldberg descrevendo sua reação ao receber, no seu laptop, as primeiras imagens das sequências do ataque à fortaleza de Bin Laden, em A Hora Mais Escura. “Eu estava no skype recebendo as imagens e falando com o Mark (Boal), sentado na minha sala ensolarada, aqui em Los Angeles, e as imagens ainda eram cruas, sem tratamento. E eu não via absolutamente nada. A tela do meu laptop era 100% negra, com um ou outro risco verde de vez em quando. E o Mark me perguntando: Então? Que tal? Arrepiante, não é? E eu pensando – como vou dizer para ele que eles não captaram nada?”
-Goldberg, novamente, explicando a minuciosa seleção de suportes físicos e técnicas de montagem para diferenciar cada um dos atos de Argo: o ataque à embaixada norte-americana em Teerã, o “projeto” em Hollywood e, finalmente, o resgate dos diplomatas. “Muita gente pensa que usamos material de noticiários da época nas cenas do ataque à embaixada. Mas o que Ben (Affleck) fez foi dar câmeras super-oito para os extras e pedir que eles filmassem à vontade. Todas as imagens que vocês vêem e que parecem documentário, no início do filme, foram captadas assim.”
-O surgimento de um novo sistema de criação, mais coletivo e mais rápido, produto tanto do imediatismo da produção digital quanto da presença cada vez maior de criadores vindos da TV, acostumados a pensar em grupo. “Hoje não precisamos terminar um roteiro para começar a filmar”, disse Lindelof. De fato – os dois Star Trek foram gerados com roteiro, filmagem e montagem rolando simultaneamente , cada processo interferindo no outro. “J.J. (Abrams) diz sempre a todos os seus atores _- não cortem o cabelo tão cedo”, disse Lindelof. “Vocês nunca sabem quando eu, as montadoras ou os roteiristas vão querer mudar essa cena.”