Blog da Ana Maria Bahiana

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A última safra do ano, parte II: a valsa dos revoltados
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Ana Maria Bahiana

Os dois últimos grandes lançamentos da temporada-ouro estrearam aqui no dia de Natal e, quando escrevo isto, estão brigando ferozmente pelo domínio da bilheteria: Os Miseráveis, de Tom Hooper, está na liderança com 18.2 milhões de dólares num número menor de telas  –2.808– que Django Livre, de Quentin Tarantino, no seu encalço com 15 milhões de dólares em 3.010 telas.

Como ambos estão indicados aos Globos de Ouro e seus respectivos distribuidores acreditam que vão mais longe, até os Oscars, o público brasileiro só vai vê-los respectivamente dia 18 de janeiro (Django) e 1 de fevereiro (Miseráveis). Só para vocês calibrarem seus calendários, as indicações ao Oscar saem dia 10 de janeiro e as estatuetas serão entregues dia 24 de fevereiro. Os Globos serão entregues dia 13 de janeiro. Comparem com as datas das estréias no Brasil e verão o quanto Universal (Miseráveis) e Weinstein/Sony (Django) estão contando com estatuetas e indicações para alavancar suas campanhas de lançamento.

Muito pessoalmente, os dois filmes apresentaram problemas para mim. Reforço o muito pessoalmente porque suspeito que, para muitos espectadores, as coisas que não me apeteceram são justamente as que vão encanta-los. Essa é a natureza do cinema (e da música também). E o seu poder, também.

Admiro em ambos o seu fôlego e audácia. Os Miseráveis ataca de frente um monstro sagrado do teatro musical –60 milhões de ingressos vendidos em 42 países- que por sua vez já digeria e simplificava  um monstro sagrado da literatura, o vasto épico de Victor Hugo sobre redenção e amor durante a Revolução de Junho que, na Paris de 1832, tentou em vão restaurar a república. Django Livre encara o esqueleto no armário das novas nações do continente americano: a escravidão. Para mim, os resultados desses projetos ambiciosos foram desiguais, mas fica registrado meu enorme respeito por Hooper e Tarantino por terem tentado, sem meias medidas.

Nota de esclarecimento: não sou fã de musicais. A não ser que se trate de documentários como Gimme Shelter (sobre os Rolling Stones em sua turnê de 1969) e Don’t Look Back (sobre como Bob Dylan virou Bob Dylan) ou filmes em que a trama, por ela mesma, pede momentos de música (como Quase Famosos), o artifício de parar tudo para que os personagens se expressem cantando tem apenas um efeito, comigo: me fazer imediatamente desconectar da narrativa.

Há exceções notáveis (uma delas em Magnolia, de Paul Thomas Anderson), mas vamos ficar por aqui. Basta dizer que, em Os Miseráveis, o recurso me incomodou muito menos por uma suprema ousadia de Hooper: em vez de dublar peças pré-gravadas em estudio, todos os atores foram captados cantando ao vivo, no set. Isso revelou, por exemplo, que Russel Crowe, no papel do implacável Javert, carcereiro e perseguidor do herói Jean Valjean (Hugh Jackman) não deveria ousar cantar além de sua banda de rock. Mas deu também a Jackman, Anne Hathaway (Fantine) e a grande revelação do filme, o britânico Eddie Redmayne (Sete Dias com Marilyn) como o revolucionário Marius, a oportunidade de cantar como uma extensão de seus personagens, e não como proeza vocal.

O resultado é gloriosamente imperfeito e intensamente dramático  — e aqui todos os que, como eu, tem reservas quanto às convenções do musical, vão começar a se afastar de Os Miseráveis. Porque este não é um filme onde se pratica contenção e sutileza: os heróis Jean Valjean, Fantine e sua filha Cosette (Amanda Seyfried) sofrem terrivelmente; Javert é um vilão implacável; jovens se sacrificam por amor e idealismo; e mesmo morrendo de tuberculose Fantine/Hathaway canta sem parar. Em 1862, a obra de Victor Hugo fundamentou o realismo na literatura. Um século e meio depois, ela serve de base a arroubos de ultra-romantismo.

Fãs da peça (e fiz questão de ver o filme, pela primeira vez, com uma verdadeira especialista ao meu lado, para compensar minha predisposicão contra musicais…) não vão se decepcionar. Vão, possivelmente, estranhar mas admirar a opção pelo canto dramático no lugar do canto exato, e notar onde o filme diverge da  peça como narrativa. São escolhas muito conscientes de Hooper, que compreende bem as necessidades diferentes de tela e palco, e usa todos os recursos do cinema para mostrar em larga escala tudo o que a obra de Victor Hugo descreve em detalhes e a peça menciona com poucos elementos de cena: os trabalhos forçados! Paris! As barricadas dos revolucionários!

Com Django Livre, minha admiração pela dupla ousadia de Tarantino – escolher a escavidão como tema e o spaguetti-western como forma – começou a esfriar quando certas pequenas coisas começaram a se empilhar em cima de suas bravas escolhas. Coisas como:

O fato de Christoph Waltz estar basicamente repetindo seu papel em Bastardos Inglórios – o cavalheiro extremamente educado, calmo e articulado, capaz de incríveis atos de violência sem perder nenhuma dessas qualidades.

A necessidade de colocar um europeu branco (o dentista/caçador de recompensas vivido por Waltz) como a porta da salvação/mentor/educador do escravo negro (Jamie Foxx).

Uma série de coisas displicentes, como uns bons 15 minutos de sobra, uma aparição desnecessária de Tarantino, erros pequenos e não tão pequenos de continuidade.

A ideia de compensar a medonha violência, a violação mesmo, da escravidão, com a super-violência da vingança de Django não me convenceu inteiramente. Eu gostaria de ver um filme em que Tarantino não  auto-referenciasse, em que ele se desafiasse a evoluir. Estou esperando por isso faz tempo, e outros realizadores da geração dele já dispararam na frente.

Tendo dito isso, Tarantino continua sendo um dos melhores dialoguistas que temos, e o que Leonardo Di Caprio faz com seu Calvin Candle, um senhor de escravos com o refinado sadismo que só o poder absoluto possibilita, é a melhor coisa e a mais exata medida do que Django Livre poderia ter sido.


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