Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : maio 2014

Entre o banal e o fantástico reina Malévola
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Ana Maria Bahiana

 

 

maleficent-321154l-imagineA Disney foi o primeiro grande estúdio a compreender completamente o poder do mito, a ideia de que um universo mitológico é muito mais resistente ao tempo e à sucessão de gerações de plateia do que uma única história que se conta apenas uma vez. A Disney sempre investiu em personagens, mundos e mitologias, o que explica amplamente suas recentes aquisições e parcerias: Pixar, Marvel, LucasFilm. Todas elas empresas que, acima de tudo, se dedicam a criar mitos de longa duração.

Nos últimos anos a Disney tem se dedicado a rever e reposicionar mitos. Alice (originalmente criada por Lewis Carroll, é sempre bom lembrar) por Tim Burton; o Mágico de Oz por Sam Raimi; o Cavaleiro Solitário e Tonto por Gore Verbinski; praticamente todos os contos de fadas pela série Once Upon a Time.

Como o resultado desses esforços tem sido, na melhor das hipóteses, super desigual, fiquei um pouco preocupada quando soube que a Bela Adormecida era a próxima candidata a uma repaginação…

Tenho que admitir: meus temores, embora justificáveis, não se realizaram. Digo mais: de todas as tentativas da Disney, Malévola (Maleficent, 2014, dir. Robert Stromberg) é a melhor releitura até agora.

Crédito a quem merece: Linda Woolverton (A Bela e a Fera, O Rei Leão), que escreveu o argumento e deu o formato final a um roteiro feito a muitas mãos; Robert Stromberg, que usou sua experiência como premiado supervisor de efeitos especiais para dirigir um filme que é, inteiro, uma fantasia; e Angelina Jolie, claramente se divertindo muito com um papel que é mais complicado do que parece, e compondo um desempenho muito melhor do que era necessário.

O grande achado de Malévola é reposicionar seu conflito inicial – o ato “malévolo” da fada que amaldiçoa a princesa condenando-a a um sono eterno – como uma extensão de um outro conflito : o do mundo fantástico, do impalpável, do misterioso, habitado por fadas, elfos, dragões e espíritos da natureza, e o mundo do dia a dia, onde os seres humanos estão ocupados na disputa de poder e riqueza.

Esse recurso narrativo, dando uma outra moldura a uma história muitas vezes repetida desde o século 17, abre as portas para uma deliciosa exploração de quem realmente seriam os protagonistas do conto de fadas – qual a verdadeira natureza de Malévola, a “fada má”; de Aurora, a princesa amaldiçoada,;e de Stefan, o rei, pai dela.

É um caminho que leva a novas e interessantes conclusões – a maior de todas, uma releitura completa e radical da ideia de “amor verdadeiro” que em geral leva ao “felizes para sempre” das histórias.

Mas não se assustem – Malévola é uma delícia de assistir, uma experiência visual sensacional, uma jornada muito divertida por uma trama que todo mundo acha que conhece. Eu teria preferido menos gente mexendo no roteiro – as costuras das emendas às vezes são aparentes – e ainda não entendo por que ninguém resolveu o primeiro grande problema da história – o fato de  nossa heroína se chamar “Malévola”, um nome que, por si só, já determina como olhamos para a personagem. Certo que a Disney tem que manter bem lustradas as suas marcas – no caso, os nomes de seus personagens – mas há recursos simples de criação que poderiam ter contornado isso.

Mas isso não impede de ser uma ótima maneira de passar 97 minutos – leve as crianças se precisar de um pretexto…

 Malévola estreia nesta quinta feira, dia 29, aqui e no Brasil.


Deuses e monstros
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Ana Maria Bahiana

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O divertido da temporada pipoca é que podemos suspender muito mais que nossa descrença quando vamos ao cinema (e olha que a descrença, no caso, precisa ser completamente deixada em casa).

Estamos, aqui, inteiramente no território da metáfora, o realismo passa ao largo e todos os possíveis buracos em tramas e personagens podem e devem ser perdoados (a não ser os que ofendem o cânon dos textos sagrados, as hq…). A lógica dominante aqui é a lógica da narrativa – no mundo do fantástico, onde tudo é possível, as regras são as que os criadores combinam no começo do jogo, com o consentimento tácito de nós todos, na plateia.

O que nos leva logo de cara ao meu monstro favorito, Godzilla. Monstros estão no cimema desde que as câmeras começaram a rodar . Os seus melhores e mais poderosos, como King Kong e o Gojira original de 1954, são os que, além de nos dar sustos em grande escala, de alguma forma cutucam as camadas mais profundas de nossos sonhos e pesadelos. Por que apenas o ser humano seria capaz de sentir?, King Kong pergunta, acuado no alto do Empire State. Por que o ser humano é incapaz de assumir responsabilidade pela destruição que causa quando não consegue controlar sua sede de poder? indaga Godzilla, nascido da radiação atômica, enquanto caminha descuidadamente por Tóquio, destruindo tudo em seu caminho, como tinham feito as bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki, meros nove anos antes.

O problema de mais esta iteração do mito é não levar fé no poder do monstro. Desta vez com os amplos cofres da Warner bancando os gastos e um bom diretor indie,. Gareth Williams, estreando na árdua tarefa de pilotar um arrasa-quarteirão, este Godzilla parece decidido a dizer, logo de cara: este ano não vai ser igual aquele que passou, este filme não vai ser aquela coisa vexaminosa dirigida pelo Roland Emmerich. Talvez por isso a Warner insistiu em encher a tela com um monte de astros de bom pedigree – Bryan Cranston (numa peruca bizarra), Sally Hawkins, Juliette Binoche, Ken Watanabe, Aaron Taylor-Johnson.

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Acabamos então com dois filmes: um com os atores e o outro com o monstro. Os atores, coitados, tem que despachar aqueles diálogos cheios de explicações, as tão temidas “exposições”. É uma hora disso até que o outro filme comece, o do monstro, que é muito melhor que o primeiro. Infelizmente desprovido de sua maior arma metafórica- o fato de ser nascido da radiação – este Godzilla pelo menos tem a seu serviço efeitos muito melhores (aliás melhores que vários outros no próprio filme, que parecem meio sem jeito no 3D de conversão). E uma missão nobre, que finalmente faz justiça ao seu poder monstruoso.

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Super-heróis são criaturas de outro universo metafórico – são nossos deuses, nossas figuras mitológicas capazes de extrapolar nossas pobres limitações humanas. Sempre achei os X Men especialmente interessantes. Suas qualidades extraordinárias são, elas mesmas, um limite, algo que os torna não os acolhidos e eleitos dos humanos, ams os malditos, vistos com desconfiança e até ódio.

É uma metáfora poderosíssima, que Bryan Singer compreendeu e trabalhou muito bem em seus dois filmes da franquia (2000 e 2003). É bom te-lo de volta em Dias De Um Futuro Esquecido. Trabalhando com um bom roteiro de Simon Kinberg (que por sua vez se inspira na trama desenvolvida nos quadrinhos por Chris Claremont e John Byner), Singer volta ao tema da estranheza e da rejeição, que chega aqui ao limite absoluto – um verdadeiro holocausto causando pelas invenções do Professor Bolivar Trask (Peter Dinklage, ótimo como sempre), que ameaça destruir não apenas todos os mutantes mas toda a humanidade.

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A única salvação está, como sempre, nas mãos dos rejeitados. Usando os poderes de Kitty Pryde (Ellen Page), Wolverine (Hugh Jackman) volta ao passado, com sua psiquê habitando o seu corpo – e compartilhando sua mente- em 1973. A missão: reescrever a história, e, dessa forma, impedir o holocausto.

Não sei o que isso poderia ter resultado em mãos menos competentes que as de Singer. Mas, aqui, o que temos é um filme ao mesmo tempo divertido e provocador, íntimo e em larga escala, repleto de questões filosóficas – somos, hoje, os mesmos que éramos no passado? Somos capazes de perdoar a nós mesmos? – e onde a violência, quando existe, tem consequencias.

Fãs de X Men vão ficar felizes com a quase overdose de personagens em aparições especiais (sim, incluindo a Vampira de Anna Paquin e o Mancha Solar brasileiro vivido pelo mexicano Adan Canto). O meu favorito é o Mercúrio (aqui, Evan Peters de American Horror Story), responsável por uma das sequências mais empolgantes do filme – e o melhor uso do “bullet time” a la Matrix que eu vi em muito tempo.

Vale a pena deixar a descrença em casa para estes X Men.


Adeus Gordon Willis, Príncipe das Trevas,mago de luz e sombra
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Ana Maria Bahiana

Robert Duvall, Marlon Brando, Gordon Willis e seu assistente de cämera Tibor Sands no set de O Poderoso Chefão, 1971

Robert Duvall, Marlon Brando, Gordon Willis e seu assistente de câmera Tibor Sands no set de O Poderoso Chefão, 1971

Gordon Willis, 28 de maio de 1931 – 18 de maio de 2014

“Uma câmera é uma ferramenta. A luz também. Seu objetivo é transformar: transformar a palavra escrita em uma outra coisa, uma narrativa inteiramente visual.”


Entre mundos, entre medos: o maravilhoso apelo sinistro de Penny Dreadful
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Ana Maria Bahiana

 

Episode 101

Ah, Penny Dreadful, Penny Dreadful, como eu gosto de você!

Certo, não é exatamente algo que não vimos antes: o mundo opulento/aterrador da Inglaterra vitoriana é território mais que fértil, e agora mesmo está no ar, pela BBC., a ótima série Ripper Street que, embora seja um policial procedural “duro”, às vezes flerta com o sobrenatural.

E, é claro, temos A Liga Extraordinária. Fãs em geral e steampunks em particular vão achar, como eu achei, muitos pontos de contato entre o cico de obras de Alan Moore e a série de John Logan que a Showtime estreou aqui nos EUA neste último domingo. Tenham paciência – principalmente a partir do segundo episódio Penny Dreadful assume um perfil que, embora tenha pontos de contato com a Liga, é todo seu.

“Penny dreadfuls”, deve-se explicar, eram revistinhas-folhetins que faziam sucesso na Grã Bretanha de meados  do século 19 com história de terror em série. Seu público alvo eram (como hoje, aliás….) os adolescentes . Uma confluência de formatos e estios que fascinou o criador e showrunner John Logan (Skyfall, Hugo Cabret, Gladiador, os próximos dois 007).

Este Penny Dreadful pode ser “lido” de muitos modos diferentes. Como na Liga de Alan Moore, Logan faz um refogado bem apurado de praticamente todos os mitos e criaturas fantásticas da era vitoriana: vampiros, múmias, criaturas feitas a partir de cadáveres, Jack O Estripador. Também como na Liga há um grupo de personagens nada “normais” reunidos em torno de um propósito comum: um aristrocrata endinheirado fascinado com explorações geográficas (Timothy Dalton), uma bela médium com vastos dons paranormais (Eva Green), um pistoleiro norte-americano de pontaria infalível (Josh Hartnett) e um certo Doutor Victor Frankenstein (Harry Treadway).

O objetivo, pelo menos em tese, é achar a filha do aristocrata, desaparecida em circunstâncias que nunca são claramente mencionadas – e cuja primeira tentativa de resgate, logo no episódio de estreia, indica claramente que… bom… a coisa não é bem assim.

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Essa, na verdade, é a essência da série: revelações constantes, uma atrás da outra, camadas de trama e de definição de personagens sendo retiradas, a cada momento. Cicatrizes são um elemento visual importante, sempre presente: elas apontam para a ideia de que há algo por baixo, algo oculto, feridas e traumas e monstruosidades mal curadas, mal contadas, mal esquecidas, mal cobertas. De quem o pistoleiro está fugindo? Por que o aristocrata frequenta lugares tão… inóspitos? O que realmente aconteceu com a filha dele? Por que a médium vive na mansão do aristocrata, por que reza fervorosamente, quase histéricamente?  O diretor dos dois primeiros episodios, Juan Antonio Bayona, nos brinda logo de cara com um plano sensacional de uma dessas preces, Eva Green praticamente decapitada sob o peso de sua devoção… ou de sua culpa?.

Lá pelo meio do segundo episódio uma sessão espírita toma rumos realmente extraordinários, e Penny Dreadful engrena numa descida delirante para o que os (fabulosos) diálogos de Logan descrevem como “um meio mundo entre a crença e o medo”. Com uma direção de arte espetacular, que contextualiza visualmente uma era fascinada ao mesmo tempo com a ciência e o ocultismo, ganhando fortunas com a rrevolução industrial mas sonhando com romanticamente com um mundo selvagem, e uma fotografia de cinema, Penny Dreadful tem ainda, para a sua largada, um diretor que sabe como poucos armar uma cena e deixar a imagem contar a história. São tantos os exemplos que não me arrisco a cometer spoilers…

Digo apenas: não percam de jeito nenhum.


Não foi você que envelheceu, Jack Bauer: foi a TV que rejuvenesceu
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Ana Maria Bahiana

 

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Em novembro de 2001, quando a 24 Horas estreou na Fox, sua chegada pareceu algo quase paranormal: três meses depois do ataque às Torres Gêmeas, aqui estava uma catarse coletiva prontinha, na medida, com a dose exata de violência explosiva e cuidadosamente orquestrada, produzida e realizada com a mesma extravagância e precisão dos arrasa-quarteirões da tela grande.

Em seu  centro, o  Jack Bauer  de Kiefer Sutherland, um herói indestrutível, um guerreiro imbuído de um senso férreo de certo e errado,  capaz de apanhar e bater com igual determinação e, ao mesmo tempo, ter aquela aura de vulnerabilidade ao redor dos olhos, ser um pai de família devotado (como esquecer aquela temporada em ele andou à cata de sua chatíssima filha perdida pelas montanhas ao norte de Los Angeles?).

Como os xerifes/caubóis justiceiros dos westerns clássicos, Bauer se guiava por um código particular de conduta, acima de todas as instituições, a cada hora/programa vingando um pouco mais um público (o norte americano) traumatizado pelo equivalente a uma bofetada cósmica na cara.

E isso explica os quase 14 milhões de espectadores em 2006 , o fato de ter-se tornado a série de ação mais longa da TV norte-americana (ultrapassando Missão Impossível) e uma boa parte dos prêmios – inclusive, em 2008, o primeiro Emmy na categoria “drama” da história da Fox. Para entender os outros aspectos de seu sucesso, tais como sua imensa popularidade pelo mundo afora, seu lugar de destaque na cultura pop do começo deste século, sua inclusão  em número 6 na lista 50 melhores séries de todos os tempos da revista britânica Empire é bom lembrar o quanto 24 Horas era audaciosa 14 anos atrás. O “tempo real” da narrativa – 24 horas de TV, uma hora a cada episódio. A contemporaneidade dos temas.  A qualidade dos efeitos. O realismo da violência. A complexidade de pelo menos alguns personagens.

Entretanto, entre novembro de 2001 e segunda feira passada  – quando estreou aqui a minissérie 24: Live Another Day – tanta coisa aconteceu na TV! A TV aberta, por exemplo, perdeu sua hegemonia para a TV paga, onde séries ainda mais bem produzidas, realistas em sua recriação da violência e infinitamente mais bem escritas tomaram a dianteira no coração das plateias do mundo todo (graças em grande parte a essa outra grande novidade, a internet banda larga).

O mundo ficou ainda mais complicado, e o público, mais relutante em aceitar mocinhos de chapéu branco que salvam tudo na porrada (a não ser que eles tenham capa, collant e estejam na tela grande. Ou se chamem Bourne. Mais sobre isso daqui a pouco). No vácuo de Jack Bauer, ausente da telinha desde 2010, entrou Walter White, o anti-herói sem nenhum caráter.

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Tudo isso explica porque Live Another Day pareceu tão previsível, tão sem graca, tão… antigo (e a audiência sólida mas morna parece que concorda comigo…).

Bem que tentaram modernizar a coisa toda: drones, ataques remotos, hackers e violação da privacidade online entram no coquetel; Jack Bauer é apresentado numa sequência de ação vigiada no coração de Londres que parece ter sido scaneada diretamente da franquia Bourne. Mas é tudo um verniz bem leve por cima de intermináveis diálogos de exposição (são quatro anos de ausência para serem explicados, afinal…) e os sopapos de sempre, com a mesma Chloe  mal humorada de Mary Lynn Rajskub  (agora com olhos de guaxinim!) guiando Bauer em manobras que imploram nossa capacidade de suspender a descrença.

Se você tem muita, muita saudade de 24 Horas, capaz até de achar divertido : é meio como rever um velho amigo, agora um pouco mais barrigudo e careca, mas ainda seu grande chapa. Se não estiver assim tão fissurado… pode dispensar. A TV cresceu e mudou muito desde 24 Horas (e em parte por causa de 24 Horas). Lá fora, hoje, tem muita coisa melhor.


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