Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : outubro 2012

Cloud Atlas: sinfonia ou cacofonia?
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Ana Maria Bahiana

Um aviso prévio: Cloud AtlasAtlas das Nuvens, que coisa difícil de traduzir, né? – recebeu no Brasil o título de A Viagem. Que, a não ser no sentido que se usava nos idos anos 1970 — “tremenda viagem, bicho” – não tem nada a ver nem com a obra original de David Mitchell nem com o filme dos irmãos Wachowski e Tom Tykwer. Vou continuar chamando de Cloud Atlas.

O desafio essencial de adaptar uma obra literária para o cinema é este: uma narrativa literária é uma coisa, uma narrativa audiovisual é outra. A narrativa literária descreve, sugere. A narrativa audiovisual mostra. A narrativa literária tem todo o tempo do mundo – ou melhor, o tempo que a leitora ou leitor se dispuserem a dar à leitura. A narrativa cinematográfica precisa se limitar ao tempo em que a espectadora ou espectador ficarem na cadeira do cinema; que, para Hitchcock, era  “o equivalente à capacidade da bexiga humana” e, pelos cálculos dos donos de cinema, entre 90 e 120 minutos.

O best seller de David Mitchell que inspirou o filme dos irmãos Wachowski e Tom Tykwer é uma obra vasta e super literária. Como uma daquelas bonecas russas, Cloud Atlas, o livro, consiste de seis histórias abrigadas uma dentro da outra, como nos contos das Mil e Uma Noites. Mas com um artifício diferente: as histórias não são contadas oralmente, são o resultado de uma série de documentos – um diário, um livro, uma hq, um filme – de diferentes épocas, do século 19 a um futuro pós-apocalíptico — que se referenciam mutuamente.

E, como uma sinfonia, cada uma dessas histórias enuncia, amplia e passa adiante o tema central da obra: a conexão entre todas as coisas, e como um gesto, hoje, repercute através dos séculos. Também como numa sinfonia, Mitchell faz com que o tema seja enunciado várias vezes, primeiro em ordem direta, depois de trás para a frente, voltando ao princípio, à primeira história/ melodia, só que, agora, carregada das tonalidades e variações de cada uma das versões anteriores.

O próprio Mitchell considerava seu livro “infilmável”. Até que os Wachowskis leram Cloud Atlas – Natalie Portman apresentou o best seller a eles no set de V de Vingança– e não conseguiram resistir.

Depois de passar pelos 172 minutos de Cloud Atlas, fiquei pensando se eles não deveriam ter seguido a primeira opinião do autor. Mesmo com o auxílio do amigo Tom Tykwer – que dirigiu metade das seis histórias – a intensa elucubração filsófico-literária de David Mitchell pode não ser, mesmo, material de cinema.

Pelos motivos expostos lá em cima, a elegante estrutura do livro – possível apenas se, em vez de filme, Cloud Atlas fosse uma mini-série; e mesmo assim…– foi desmontada e substituída por uma espécie de quebra cabeças no qual as seis narrativas não exatamente se encontram, mas se chocam num caleidoscópio de estilos e tons, menos uma sinfonia e mais uma cacofonia .

São dez minutos de drama seguidos por dez de romance , continuados num thriller de ação que vai dar numa farsa seguido por algo que parece uma versão asiática de Matrix. Não há tempo para a espectadora ou espectador se envolver de fato com nenhum dos múltiplos personagens. Quase se consegue isso com o amanuense dos anos 1930, vivido por Ben Whishaw, e com o editor de livros dos dias de hoje, encarnado pelo sempre genial Jim Broadbent, duas narrativas que, significativamente, foram dirigidas por Tykwer. Mas mesmo esses breves acordes se perdem no tumulto do restante.

Há momentos absolutamente espetaculares, em geral cortesia de Lana e Andy Wachowski,  quase todos na Neo-Seul do século 22, onde o drama criador/criatura, senhor/escravo se repete com inteligências artificiais e seres humanos. E instantes de real impacto lírico, quase sempre com assinatura de Tykwer, e mais comuns nas duas histórias que apontei há pouco.

O artifício  de empregar os mesmos atores para diversos papéis ao longo do tempo, escolhido pelo trio para enfatizar a ligação entre as seis histórias, talvez tivesse funcionado se o orçamento (levantado de forma independente, num esforço hercúleo) tivesse permitido um alto nível de sofisticação no acabamento da maquiagem. Não é o caso, infelizmente. Há momentos  francamente embaraçosos, mais próximos de um filme de Eddie Murphy do que, digamos, Benjamin Button. Os pobres Hugo Weaving e Hugh Grant são os que mais sofrem, mas Jim Sturgess e James D’Arcy  como coreanos do futuro estão no limite da vergonha alheia. Além do que, pelo menos para mim, o elemento “descubra o ator!” serve  mais somo uma distração do que uma atração, me distanciando ainda mais de uma narrativa com qual eu já estava lutando para me engajar.

No final, fica o louvor  ao trio por ter tentado tamanha loucura, e pelos momentos de brilho produzidos por tanto esforço. Ou, como disse A.O. Scott no New York Times, pelo fato de ter seis filmes diferentes pelo preço de um ingresso…

Cloud Atlas estreia aqui hoje e dia 25 de dezembro no Brasil.


Argo: a maturidade de Ben Affleck, diretor
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Ana Maria Bahiana

O problema de se fazer um thriller com um pano de fundo político é que quase sempre o ruído que a política faz acaba abafando o conteúdo humano. Que, no fim das contas, é o que viemos ver (caso contrário estaríamos num comício, certo?). Grandes obras do gênero, como Z, de Costa Gavras e Todos os Homens do Presidente, de Alan Pakula, compreendem esse desafio e mantem o elemento político sob controle, como o gatilho que impulsiona a narrativa.

Argo, de Ben Affleck, tem exatamente a mesma qualidade. Não é pouca coisa, considerando que se trata de apenas o terceiro filme de Affleck como diretor e , além disso, aborda um dos eventos mais carregados de complicações políticas e passionais: a revolução islâmica que, em 1979, retirou do poder o Xá Reza Pahlavi e instaurou a teocracia no Irã.

Trabalhando com um ótimo roteiro do também quase estreante Chris Terrio (com apenas um curta em seu currículo) Affleck não cai na armadilha de transformar a ação em panfletagem, mas domina perfeitamente o lado humano de uma história tão absurda que só poderia ser real (como, de fato, é). O pano de fundo político é estabelecido logo no começo, através de um artifício inteligente e visualmente intrigante: a história de como o Império Persa da antiguidade se tornou o Irã do século 20 – e o papel dos interesses do Ocidente, principalmente dos Estados Unidos nisso tudo – é contada, com uma narração em farsi, por uma série de imagens de storyboard.

Do projeto de um filme que não houve somos jogados imediatamente no calor do momento que gerou outro filme que também não houve: estamos em novembro de 1979 em Teerã, e o complexo diplomático norte-americano está em vias de ser tomado de assalto por uma multidão de militantes islâmicos, os mesmos que acabaram de derrubar  o Xá e instalar o exilado Ayatolá Khomeini no poder. Seis funcionários consulares vão conseguir fugir por uma saída de emergência. E é com eles, e com a inacreditável operação armada para tirá-los de Teerã em segurança – e sem agravar a delicadissima crise internacional já armada – que Argo se ocupa, com excepcional maestria.

O artifício inventado pelo agente da CIA Tony Mendez (Ben Affleck) envolve cinema, o que remete elegantemente aos storyboards do início (que fecharão o ciclo ainda mais numa sensacional sequencia no aeroporto de Teerã, envolvendo guardas revolucionários e mais storyboards). Não vou entrar em detalhes para não estragar o prazer de quem não sabe nada a respeito. Mas é tão espetacularmente absurdo que só pode ser verdade.

Affleck  se diverte claramente com o segundo ato de Argo, dedicado ao mercado de egos e ilusões de Hollywood , particularmente nos anos seguintes à revolução causada por Star Wars. Alan Arkin e John Goodman, nos papéis de dois veteranos profissionais da industria, conduzem essa parte da trama com enorme prazer. Um dos grandes trunfos da firme direção de Affleck é como ele sabe modular os diversos tons de sua história, oscilando entre suspense, drama humano e comédia farsesca sem jamais perder o pulso.

Argo é um filme que dá gosto ver. É um belissimo thriller de fundo político,  à vontade entre outros grandes títulos do gênero.  No final, fica no ar uma delicada mas muito clara sobreposição de temas: Star Wars, a saga sobre fugitivos, militantes, impérios, liberdades roubadas; Argo, o navio abençoado por Atena, a deusa grega da sabedoria e da guerra, que conduziu Jasão ao Velo de Ouro; e storyboards falando do irresistível poder do cinema como modo de contar histórias que, de sua propria maneira, se tornam verdadeiras – e são capazes, até, de trazer a liberdade nos momentos mais inacreditáveis.

Argo estreia hoje nos EUA e 9 de novembro no Brasil.


Frankenweenie: Tim Burton volta para casa
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Ana Maria Bahiana

 

No fim da rua Evergreen, no subúrbio de Burbank, em Los Angeles – onde estão, entre outras empresas do meio, as sedes da Disney e da Warner – existe um cemitério chamado, sem ironia, Valhalla.  Timothy William “Tim” Burton, filho mais velho do casal Bill e Jean Burton (ele ex -jogador de beisebol, ela dona de casa), cresceu nessa rua e, em suas próprias palavras,  a impecável normalidade suburbana dos anos 1960 era muito mais assustadora para ele que seu vizinho fúnebre.  Burton, na verdade, encontrava paz e sossego passeando de bicicleta pelo cemitério — o mesmo conforto que sentia vendo antigos  filmes de terror na TV.

A juxtaposição da imutável ordem do subúrbio californiano sobre o pavor e a solidão do menino tímido que encontrava refúgio nos filmes e séries de terror da TV (numa interessante coincidência, uma dessas séries era apresentada pelo pai de Paul Thomas Anderson, Ernie Anderson) é o veio mais profundo do talento de Tim Burton. Quanto mais ele se aproxima dessa rica fonte pessoal, mais completas e brilhantes são suas obras.

Em 1982, depois de cursar a prestigiosa Cal Arts com uma bolsa oferecida pela própria Disney (seus colegas eram, entre outros, John Lasseter, Brad Bird e Henry Selick), Burton foi contratado para o departamento de animação do estúdio.  Trabalhou em Tron e O Caldeirão Mágico, e ofereceu um primeiro curta para consideração do estúdio: o altamente autobiográfico Vincent, sobre um menino solitário que sonha ser o ator Vincent Price.

A Disney ficou dividida – o controle e a inventividade do jovem diretor eram óbvios, mas a estética era um tanto sombria para o estúdio. Mesmo assim, bancaram o segundo projeto de Burton: um curta estrelado por Shelley Duvall , Daniel Stern e o menino Barret Oliver, sobre um garoto solitário num subúrbio impecável e a profunda amizade que o une a um cachorrinho de trágico destino.

O curta, intitulado Frankenweenie, deveria estrear nos cinemas em dezembro de 1984, parte do relançamento do longa de animação Pinóquio.  Em vez disso, o projeto foi arquivado e, pouco depois, Burton foi despedido do departamento de animação da Disney.

Frankenweenie, 1984

O resto, como se costuma dizer, é história. Mas é importante conhecer as origens do lindo, poético, sensacional longa stop motion com  o mesmo título – Frankenweenie—que estreia hoje nos Estados Unidos (e dia 2 de novembro no Brasil), lançado precisamente pela Disney. E não apenas porque, vinte e oito anos depois, Tim Burton tornou-se um diretor superstar e a Disney, que detinha os direitos do curta, viu-se levada à óbvia necessidade de reconhecer isso. Mas principalmente porque, de muitos modos diferentes, Frankenweenie é uma volta para casa para Burton: a volta à animação stop motion, uma de suas primeiras paixões (como muitos de sua geração, ele é cria do mestre Ray Harryhausen); a volta aos impulsos de inspiração que o levaram a fazer o curta; e, consequentemente, a volta ao menino que ele foi, tímido, inteligente, solitário, buscando conforto nos lugares mais estranhos – um cemitério no fim da rua, filmes de terror estrelados por Vincent Price na TV.

 

E, como agora Burton é pai também, ele tem a tripla vantagem de rever sua obra pela perspectiva da criança, do adulto e do fã de cinema. Frankenweenie é um filme perfeito  de todos esses ângulos.

A história continua a mesma: o garoto Victor Frankenstein, do aprazível subúrbio de New Holland, em algum lugar dos Estados Unidos, inspira-se nas aulas de ciência da escola (ministradas pelo sensacional Professor Rzykruski, uma grande criação conjunta de Burton, do roteirista John August e do talento vocal de Martin Landau) para resgatar das garras da morte o único ser com quem tem algum vínculo emocional—o cachorrinho Sparky.

Sim, é o Frankenstein de Mary Shelley – o filme original de James Whale, de 1931, é referenciado amplamente, e há uma inesquecível tartaruga chamada Shelley no meio da história – mas é também um amálgama carinhosíssimo de todos os filmes de terror que  formaram o cineasta  e o menino Tim Burton. Cinéfilos atentos vão se divertir imensamente com as múltiplas referências aos clássicos do terror, e, quem sabe, novos Tim Burtons na plateia terão sua curiosidade despertada.

Mas, além disso, Frankenweenie tem ,em sua essência, um enorme coração, atento a um dos mais delicados ritos de passagem da infância: o contato com a morte, em geral através da perda de um querido bicho de estimação (no caso de Burton, o poodle Pepe, sua inspiração para Sparky). Existe uma dose justa e equilibrada de susto e conforto em Frankenweenie, fruto, quem sabe, de uma compreensão dupla, como o menino que foi e o pai que hoje é, da complexidade da alma infantil.

É muito bom ver Tim Burton voltar para casa tão profundamente, tão alegremente, tão seguro de si. Há muito tempo eu não via num filme seu tamanha sinceridade, tamanha entrega, um desejo tão claro de colocar sua rigorosa estética – e como são lindas a animação e a fotografia de Frankenweenie !– a serviço de uma ideia que ele abraça tão completamente, sem reservas.

Tim, bem vindo de volta. É quase Halloween em Burbank, o cemitério Valhalla está em festa.

 

 


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