Blog da Ana Maria Bahiana

Arquivo : abril 2011

Cinema Verité: o estranho legado do primeiro reality show da TV
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Ana Maria Bahiana

A família Loud em 1971...

Uma familia aceita ser filmada , praticamente 24 horas por dia, durante sete meses. No início, todos – mãe, pai, filhos adolescentes – estão empolgados,acenam para a câmera, preparam números musicais, jogam beijinhos. Vizinhos, parentes e amigos se aproximam, donos de lojas oferecem mercadoria, chovem convites. Depois de algumas semanas, contudo, uma tensão sutil mas crescente vai abrindo fissuras entre os irmãos, entre o casal, entre a família e seus amigos. A câmera, que parecia tão presente, torna-se invisível. Acontecimentos naturais e provocados se misturam e em breve se tornam indistintos. A realidade supera a ficção ou a ficção reescreve a realidade?

... e sua contrapartida em 2011

Não, não estou falando dos Kardashians ou das Real Housewives, da turma de Jersey Shore , Real World ou alguma edição de Big Brother. Estou falando da familia Loud, de Santa Barbara, California, no ano da graça de 1971. Inspirado pelo movimento do cinema-verdade, o documentarista Craig Gilbert propôs à recem-nascida TV pública norte americana uma “experiência em antropologia cultural”, semelhante às que a antropóloga Margareth Mead realizara em Samoa e na Nova Guiné nos anos 1920 e 30. Mas em vez de buscar o “exotismo” de culturas distantes, por que não observar de perto a sociedade americana, na época sacudida de alto a baixo por rupturas sociais, comportamentais, sexuais, culturais?

Quando a série , entitulada An American Family estreou em 1973,  o casal Loud estava se divorciando, Gilbert havia brigado com o casal de cinegrafistas que efetivamente realizara o documentário, e a família não queria mais saber do projeto. Acusações voaram de parte a parte. Em essência, a família se sentia enganada, traída e manipulada por Gilbert, e o diretor se defendia dizendo que a verdade do documentário era sagrada e intocada, e que tudo tinha sido feito com o objetivo de ser fiel aos fatos.

A série foi um imenso sucesso. A imprensa fez picadinho da família, chamada de exibicionista, sem caráter, oportunista. Gilbert nunca mais trabalhou em cinema ou TV.

Esta é a história de Cinema Verité, o excelente filme da HBO que reproduz – com uma mistura de documentário e ficcionalização – os bastidores de An American Family.

James Gandolfini, ótimo, é Craig Gilbert, uma mistura precisa de sedução e intimidação que – pelo menos na versão do filme- claramente joga com a família como se todos fossem personagens no seu roteiro particular. Tim Robbins faz o paterfamilias Bill Loud com a habitual bravura com que ataca personagens que são o  oposto dele mesmo: conservadores, falastrões, caretas. Diane Lane é um espetáculo à parte _ sua Pat Loud é uma mulher complexa, oscilando entre a domesticidade e a liberação, feroz na defesa dos filhos mas ignorante de seus problemas, ao mesmo tempo fascinada e repelida pela estranha fama que desaba sobre a familia.

A visão dos diretores Shari Springer Berman e Robert Pulcini (Anti Herói Americano, O Diário de Uma Babá, The Extra Man) é convidar o espectador à reflexão sobre o que hoje é um gênero dominante na TV: o reality show. An American Family foi o pioneiro do formato, Cinema Verité diz, e vejam o que aconteceu: as perguntas que a série levantou continuam sem resposta, mas ainda estamos fascinados pelo espetáculo da vida alheia. O que isso diz a nosso respeito?

Hoje com 85 anos e  saúde frágil, Craig Gilbert tentou processar a HBO e impedir o lançamento de Cinema Verité, que detesta. A família Loud não foi tão longe, mas também não gostou do projeto e se recusa a falar a respeito. Nada é simples quando se mexe no vespeiro de nossa consciência como produtores e consumidores de entretenimento. Mas Cinema Verité, na TV, é um exemplo do melhor cinema que diverte e faz pensar.

 

 


A melhor coisa de Água para Elefantes é …o elefante
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Ana Maria Bahiana

Ah! O romance do circo de idos tempos! A vida na estrada! Os personagens estranhos, complicados, fascinantes! A emoção do espetáculo debaixo da grande tenda! O perigo das acrobacias arriscadas! O choque de personalidades complexas!

Se você quiser ter essa experiência, alugue A Estrada da Vida, de Fellini, O Maior Espetáculo da Terra, de Cecil B. de Mille ou mesmo a excelente série Carnivale, da HBO. Mas evite Água para Elefantes, a adaptação do best seller de Sara Gruen sobre um circo itinerante dos anos 1930, estrelada por Robert Pattinson e Reese Whiterspoon (estréia neste fim de semana nos EUA, dia 29 de abril no Brasil).

Mas se, pelo contrário, você é fã de Robert ou Reese, gosta de um romance de época bem comportado onde tudo é bonito, até mesmo a sujeira e a privação, e todas as vidas parecem ter sido passadas a limpo e organizadas como um desses dramas biográfico-esportivos que a Disney sabe tão bem fazer, então vá correndo ver Água para Elefantes.

Transparência: não li o livro. Mas fontes acreditáveis me garantem que o filme é fiel ao texto original, com o roteiro de Richard LaGravenese tomando liberdades mínimas para condensar a narrativa. De todo modo, sou das que acreditam que filme e livro são criaturas diferentes, com vida própria e diferenciada, e dessa forma devem ser apreciados.

E o que Água para Elefantes nos oferece é uma história completamente previsível, contada da maneira prosaica, sem nada que possa nos trazer para dentro do mundo dos personagens – e nada nesse mundo que nos faça querer ficar lá.

Com uma exceção _  a maravilhosa elefanta Tai no papel de Rosie, a catalista do drama que envolve o estudante de veterinária Jacob (Robert Pattison), a estrela do circo Benzini (Reese Whiterspoon) e o dono  da trupe, August (Christoph Waltz).  É muito mais fácil envolver-se emocionalmente com Tai do que com seus companheiros humanos de tela, que parecem estar atuando em filmes separados, com zero química entre eles. Para piorar as coisas só um pouquinho, Waltz está basicamente repetindo seu personagem de Bastardos Inglórios, com menos sotaque, mais histrionismo e, em vez de um uniforme nazista, um traje de mestre de cerimônias circense.

A fotografia e a direção de arte são bonitas, e a trilha vale pela inclusão da deliciosamente lasciva “Sugar in My Bowl”, de Bessie Smith.

Sinto pena por  Francis Lawrence, um diretor que promete, e de cujo Eu Sou a Lenda gosto muito, exatamente por tudo o que falta em Água – o mergulho na profundidade da história. Torcendo para que ele faça melhor no próximo.

 


Metamorfose ambulante: o fim da novela e a nova revolução tecnológica do cinema
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Ana Maria Bahiana

Enquanto Rio lavava a bilheteria norte-americana e tornava-se o recordista do ano entre as estreias, algumas coisas muito interessantes anteciparam tendencias:

  • Exatamente no mesmo dia  em que a rede ABC cancelava suas novelas All My Children e One Life to Live a Univision anunciava planos para um canal de TV exclusivo para telenovelas en español. A ABC vai substituir as duas novelas por talk shows e realities, mantendo no ar apenas outra veterana do gênero, General Hospital, que vem estraçalhando corações desde 1970. No auge das soap operas, nos anos 1960, as grandes redes norte-americanas tinham 19 títulos no ar. Agora, com o cancelamento de All My Children e One Life to Live, apenas cinco sobrevivem.

E no entanto o mercado latino não quer saber de outra coisa. Para atender a demanda a Univision estréia, em julho, o canal Uninovela, servindo a população hispânica dos EUA – 50 milhões de pessoas, a minoria que mais cresce no país- com novelas 24 horas por dia, sete dias por semana.

Peter Jackson na casa de Bilbo

  • É fascinante ver como, no cinema, a tecnologia empurra a linguagem. Na encolha, há uma nova revolução a caminho: a imagem a 48 quadros por segundo, o dobro do que temos hoje. O impacto, diz a Variety, é o equivalente a “ som, cor e 3D” como marco da evolução do cinema: uma imagem espetacularmente realista, com imensa nitidez e detalhes, e que, garantem seus fãs, não cansa o olhar.  Captar a imagem em 48 quadros por segundo representa, nas palavras de James Cameron, “ completar o que o 3D já fez ao nos levar para dentro da narrativa. Deixamos de olhar a ação através de uma janela.”

Peter Jackson, que está filmando O Hobbit à velocidade de 48 por segundo, tem uma longa e detalhada explicação sobre como o 24 por segundo acabou sendo o default do cinema, e por que está na hora de um upgrade em regra. “Eu sei que os puristas vão reclamar da falta de distorções e refrações, mas toda a nossa equipe – que inclui muitos puristas- já se converteu”, ele diz. “Você se habitua rapidamente ao novo visual, é uma experiência muito mais realista e confortável.”

Pandora é aqui: o MBS Media Campus

 

Cameron, o outro apóstolo do 48 por segundo, já está com os estúdios de captação de desempenho prontos, aqui em Los Angeles: o MBS Media Campus, no subúrbio praieiro de Manhattan Beach. E, garante, Avatar 2 e 3 – rodados em sequencia para lançamento em dezembro de 2014 e 2015 – serão captados digitalmente a 48 ou 60 quadros por segundo.

Um pequeno problema: uma primeira pesquisa, encomendada pelo próprio Jackson, revelou que apenas 10 mil telas em todo mundo tem projetores capazes de exibir títulos captados acima de 24 quadros por segundo… “Mas tenho certeza de que os donos de cinema tem, agora, um grande incentivo para se atualizar…”, ele diz.

 


Cannes 2011: os filmes que eu quero ver (e o filme que eu já vi)
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Ana Maria Bahiana

Fiquei animada com a lista de Cannes, este ano: mínima ocorrência de “mais do mesmo”,  bom índice de novos nomes, principalmente mulheres, e uma mistura de pop e cabeça altamente interessante.

Não sei se conseguirei ir à Croisette este ano, infelizmente. Mas se eu fosse, estes seriam os filmes que eu não perderia de jeito nenhum:

 

  • The Tree of Life, Terrence Malick. Pelo mistério e a sempre bem-vinda ambição do seu olhar.  Curiosa com o modo como ele usou Brad Pitt, Sean Penn e… dinossauros?
  • Drive, Nicolas Winding Refn. Refn é um dos diretores que mais me fascinam, hoje – um verdadeiro aventureiro visual, com completo controle de sua linguagem. Muito curiosa para ver como ele se saiu numa produção norte americana (independente, é certo) sobre um motorista-dublê (Ryan Gosling) que faz biscates para assaltantes.
  • Le Havre, Aki Kaurismaki. Desde o lirismo absurdista de The Man Without a Past, em 2002, estou me devendo uma nova dose do humor psicodélico de Kaurismaki.
  • La Piel que Habito, Pedro Almodovar. Porque é Almodovar, e não perco nenhum dele. Como sexo e pizza, mesmo quando é ruim é bom. Interessada em saber se Antonio Banderas encontrou, afinal, a redenção que merece.
  • We Need to Talk About Kevin, Lynne Ramsay . A estreia da escocesa Ramsay em Cannes, em 1999, com Ratcatcher, foi arrebatadora. A Croisette tinha os peso-pesados de sempre, os Dardenne (que ganhariam a Palma),Atom Egoyan, Takeshi Kitano. David Lynch estava lá com Straight Story. Mesmo assim só se falava em Lynne. Kevin é uma produção britânica com um elenco interessantissimo – John C. Reilly e  Tilda Swinton- baseado num livro maravilhoso sobre uma familia que começa a intuir que o filho está em vias de se tornar um assassino.
  • This Must Be The Place, Paolo Sorrentino. Sean Penn de batom e  delineador, tocando guitarra? Me inclua nessa… Melhor ainda: saber o que Sorrentino, diretor do excelente Il Divo, fez com Penn – no papel de um astro de rock aposentado – e a sempre divina Frances Mc Dormand.
  • Sleeping Beauty, Julia Leigh. Só me lembro de um filme com credenciais parecidas – estreia de jovem diretor australiano em obra com elementos de sonho e sensualidade – causando semelhante burburinho : Almas Gêmeas, de Peter Jackson. E seria maravilhoso ver Emily Browning (Sucker Punch) atacando um roteiro substancial.
  • Restless, Gus Van Sant. Van Sant tem duas vertentes, os filmes que faz para os outros e os filmes que faz para si mesmo. Este me parece do segundo tipo, com um estranho eco de Ensina-me a Viver na  história da adolescente (Mia Wasikowska) qeu se apaixona pelo menino que passa o tempo indo a enterros (Henry Hopper).
  • Trabalhar Cansa, Juliana Rojas, Marcos Dutra. Porque são poucos os filmes brasileiros que chegam do outro lado do mundo, e porque as carreiras deles me parecem muito interessantes.

Um filme da lista eu já vi e não sei o que fazer com ele: The Beaver, de Jodie Foster, pronto desde o ano passado mas engavetado por conta das estrepolias de seu astro , Mel Gibson. Há coisas muito interessantes no filme, entre elas o desempenho devastador de Gibson na pele de um homem em completa queda livre emocional, claramente alimentado pelo que estava se passando em sua vida. Mas o filme é tão tortuoso, tão em busca de um tom, tão incerto de que  filme ele é – as vezes comédia, às vezes drama, as vezes thriller, as vezes algo tão bizarro que não tem nem nome – que é dificil recomendá-lo sem reservas. Estou muito, muito curiosa para saber como será a repercussão na Croisette…

 


Voando para o ‘Rio’: por que o filme de Carlos Saldanha é muito importante
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Ana Maria Bahiana

 

Toda vez que alguém me faz a pergunta clássica – quais as chances do cinema brasileiro no mercado internacional? – eu respondo, com certa dose de cautela: as mesmas de qualquer país que produza cinema regularmente e, assim, dê oportunidades para o aparecimento e desenvolvimento de seus talentos.

E – eu acrescento, sempre- me parece que na animação estão, hoje, as maiores chances.

Em primeiro lugar, porque a quantidade de brasileiros que já estão, hoje, trabalhando em praticamente todas as produtoras de animação, da Disney à Klaaski Csupo, da Dreamworks à Pixar, é imensa. Em segundo lugar, porque animação tem enorme facilidade de transpor fronteiras, reduzir grandes temas a uma experiencia comum a diferentes culturas, idiomas, idades. Uma grande parte da animação é como o cinema mudo – transmite ideias sem palavras. O cérebro humano adora isso: é assim que sonhamos, que nos recordamos, que construimos nosso repertório pessoal.

Disney sempre compreendeu isso. No passado, quando Walt era vivo, seus personagens visitaram a América Latina e deram a partida na “aproximação cultural” que se fazia necessária durante a Segunda Guerra Mundial. Em anos mais recentes, longas da Disney flertaram com a China (Mulan), o Oriente Medio (Aladim),  a África e o público de origem africana (Rei Leão, A Princesa e o Sapo), a América hispânica (A Nova Onda do Imperador).

Era uma questão de tempo até que a confluência dessas duas tendências – a presença de brasileiros no setor e a sua tradição internacionalista – chegasse ao Brasil.

Sergio Mendes, produtor da trilha, e Carlos Saldanha (dir) na premiere de Rio, domingo, em Los Angeles

Teria sido sensacional se a maturidade desse movimento se desse através de uma produção brasileira. Em teoria, temos todos os elementos para isso. Mas a prática é sempre muito mais complicada.

Mas vamos comemorar – Rio, produção norte-americana (Blue Sky Studios, braço de animação da Fox), é exatamente o tipo de filme que concretiza essa aproximação cinematográfica entre o Brasil e o mundo. A Fox  pagou as contas e, com certeza, exigiu a presença de talento local : Jesse Eisenberg, Anne Hathaway, Jamie Foxx, etc (o que é uma coisa boa – garante muito melhor o livre trãnsito internacional). Mas sua concepção, seu desenho de base e todo o controle de sua narrativa são de um brasileiro que faz parte dessa vasta migração de talento: Carlos Saldanha, que pensou, com carinho, em elementos de nossa cultura e paisagem.

É o perfeito produto de exportação: padrão de qualidade e astros de calibre internacional, marketing global com toda força de um grande estudio, e um coração integralmente brasileiro, sem aquela visão forçada, de fora para dentro, que estamos tão acostumados a ver.

E é lindo.

Voar é uma dessas experiencias impossíveis que o cinema reproduz bem e que o cinema de animação recria espetacularmente. Ao colocar pássaros brasileiros como protagonistas de sua história, Carlos Saldanha deu a seu filme uma ferramenta excepcional para envolver as plateias e mostrar o Rio de Janeiro de um dos melhores pontos de vista possíveis. Nada como a perspectiva do alto, em movimento, para captar em toda grandeza a espetacular paisagem de blocos gigantescos de granito, massas de verde, curvas de azul.

Aprecio sobretudo a honestidade de não ignorar os problemas – a pobreza, as favelas, o menino de rua, os contrabandistas de animais silvestres- combinada com a delicadeza de saber como mostra-los para plateias infantis .

É uma fantasia com raízes na realidade, um bilhete de amor com a generosidade para envolver quem não conhece o começo do romance.

E, estrategicamente, é importantíssimo. Rio é o campeão de bilheteria nos mercados internacionais, e estou muito curiosa para ver como se portará aqui (a premiere foi neste domingo, e o filme entra em cartaz nesta sexta nos Estados Unidos, em contra-programação a Scream 4). Antecipo enorme sucesso.

Mas mesmo sem isso, Rio já abre portas de par em par para temática e talento brasileiros que estejam dispostos a realmente dialogar com a indústria e com plateias do mundo todo.

E, sinceramente, acho que mais gente vai resolver visitar o Rio de Janeiro depois de ver este filme do que com todas as campanhas oficiais que foram feitas nos últimos anos…

 


Primavera de sangue: paixão, crime, ambição e poder na nova temporada da TV
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Ana Maria Bahiana

Nem só de Mildred Pierce vive a safra 2011 da TV. Alguns destaques do que está no ar nesta primavera norte-americana:

The Borgias (Showtime, no ar nos EUA desde 3 de abril) – O sucesso de The Tudors animou a Showtime a investir nas séries de época, e o canal pago parece ter um xodó especial por linhagens poderosíssimas, cruéis e sexy –  uma combinação irresistível.  Os Borgias, a família de origem espanhola que se apossou de Roma no final do século 15 e se tornou sinônimo tanto de desmedida ambição quando de especial cuidado com as artes, são  sucessores mais que dignos das tramóias de Henrique VIII. Crédito especial para Neil Jordan, que escreveu e dirigiu os dois primeiros episódios, dando o tom para série como um estudo sobre a ambição e a banalidade do mal. Michael Hirst, que se tornou uma espécie de faz-tudo do drama histórico na TV (Tudors, Camelot) e no cinema (Elizabeth, Elizabeth: A era de ouro), segue no mesmo tom, mas o grande, enorme prazer da série é ver Jeremy Irons como o Papa Alexandre, com suas amantes, filhos, altos esquemas políticos, seduções de confessionário e limitada paciência com a mediocridade alheia.

The Killing (AMC, no ar no EUA desde 3 de abril) – Chove o tempo todo. Há florestas silenciosas e enevoadas, e um carro suspenso em câmera lenta, ao entardecer, do fundo de um lago, lindo e terrível. O clima é totalmente Twin Peaks nesta adaptação da mini-série dinamarquesa Fobrydelsen ( 2007), filmada em Vancouver mas teoricamente situada na vizinha Seattle.  Mireille Enos, que vem de vários pequenos papéis em filmes e séries e um desempenho mais substancial em Big Love, é a detetive de homicídios Sarah Linden, que, no último dia de trabalho (ela vai se casar e se mudar para a ensolarada Sonoma, California) tem que resolver o desaparecimento de uma adolescente. Cada episodio é um dia da investigação, e o clima não tem a exposição desenfreada e a necessidade de arrumar e explicar tudo dos CSIs da vida. A AMC apanhou muito com uma outra série cerebral como esta, Rubicon, mas The Killing, embaixo de seu verniz gelado, pulsa de emoção e humanidade.

Camelot (Starz, no ar desde 25 de fevereiro). O mito do Rei Artur é uma especie de template onde cada década e realizador coloca sua marca, ideologia, ponto de vista. Acho que poucas histórias podem ser contadas de tantos modos diferentes e permanecer, essencialmente, a mesma história: a do garoto que não queria ser rei mas acaba criando um país. Na estreia da GK TV – braço televisivo da produtora de Graham King, o melhor amigo de Martin Scorsese – Arthur (Jamie Campbell Bower) é um adolescente meio bobão, um peão no jogo pelo poder articulado por Merlin (Joseph Fiennes) , que se parece menos mago e mais um consiglieri da Mafia se a Mafia existisse nas ilhas britânicas do começo da idade media. A narrativa é meio gaga,  os figurinos são metidos a modernosos, e há diálogos irritantemente contemporâneos, cheios de “ok” e “fantastic”, mas Eva Green como uma linda, poderosa e astuta Morgan compensa quase tudo.

Game of Thrones (HBO, estreia 17 de abril) A HBO entra no território da fantasia jogando alto com esta ambiciosa adaptação do primeiro volume da cultuada saga A Song of Ice and Fire , de George R.R. Martin. Martin, que foi roteirista de TV  (Além da Imaginação, entre outros) antes de se dedicar aos livros, fez basicamente uma variação da história européia dos séculos 13 a 14, quando linhagens e reinos se matavam pelo controle de terras que, muitas vezes, mal eram países. Colocando suas intermináveis disputas num continente ficticio, Westeros, onde invernos e verões podem durar décadas, Martin permitiu que a história, transformada em lenda, pudesse ressaltar não os feitos heróicos, mas as fraquezas e os dramas de ser humano. David Benioff e Dan Weiss, roteiristas e escritores de ficção, fazem um trabalho monumental e perfeito adaptando o texto de Martin, e um grupo sólido de atores britânicos, liderados por Sean Bean como Lord Ned Stark, dá completa credibilidade a esta história de paixões e traições. Algumas perucas podiam ser melhores, mas a trama é tão boa que a gente releva.


Em Mildred Pierce, todo o poder da vida de uma mulher
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Ana Maria Bahiana

Poucos dias atrás vi um filme que se parecia em tudo com a produção comercial norte-americana dos anos 1940 e 50, exceto no essencial – o toque de gênio que frequentemente estava escondido (mas não muito) debaixo dos clichês exigidos pelos estúdios.

Mildred Pierce, a mini-série da HBO que está no ar aqui e que vocês começaram a ver ontem, é o oposto disso. Baseia-se em um livro de 1941, referencia (e reverencia) o estilo de grandes da época, especialmente Douglas Sirk, grã mestre do melodrama. Mas é uma obra moderna, cuidadosamente pensada e dirigida por um diretor sem medo de ousar _ Todd Haynes, que já nos deu Não Estou Lá, Longe do Paraíso e Velvet Goldmine.

Fã do filme de Michael Curtiz, de 1945 (que rendeu um Oscar para Joan Crawford) Haynes escolheu voltar ao texto original do livro de James Cain e mergulhar, com ele, num estudo de personagem incomum na filmografia de hoje: a vida de uma mulher, em todas as suas facetas, não como acessório à narrativa de algum outro herói, mas inteira em si mesma.

Ao remover a principal alteração feita por Curtiz – o assassinato que transforma toda a narrativa num híbrido de melodrama e noir, dois gêneros  populares na época – Haynes recolocou o poder da história nas mãos de Mildred, a mulher que não se sabe tão forte, tão independente, tão dona de seu corpo e de sua alma até passar por sucessivas perdas e provações.

E ao escolher Kate Winslet para ser essa mulher. Haynes imediatamente acrescentou uma colherada de mel ao projeto , a impressionante mistura de extrema fragilidade e completo poder que Winslet sabe trazer a suas personagens, quando estimulada por um diretor que compreende seu enorme talento.

A mini-série da HBO-  desde já no topo da lista de melhores do ano na categoria- segue estritamente o texto de Cain, eliminando apenas os detalhes que poderiam tirar o foco do essencial. Aos 10 minutos do primeiro episódio Mildred (Winslet) despacha porta afora o marido adúltero, colocando-se a  na posição mais vulnerável possível na escala social dos Estados Unidos em plena Depressão: a mulher descasada, com duas filhas para criar.

Nos episódios subsequentes, Mildred descobrirá seu poder  enfrentando humilhação e mãos na bunda durante anos de trabalho como garçonete, explorando seu desejo primeiro com o desajeitado Waly (James LeGros), depois com o sedutor playboy Monte Beragon (Guy Pearce, ótimo) e, finalmente, criando coragem para abrir seu próprio negócio.

É uma estrutura que vocês vão reconhecer em várias novelas, tributárias do melodrama hollywoodiano em conteúdo e forma. Com a liberdade das cinco horas de uma minissérie e a certeza de estar falando com uma fatia específica do público (afinal, é HBO), Haynes pode se deter na intensidade da paixão, na devastadora dor da perda e, sobretudo, na complexa relação entre Mildred e sua filha mais velha, Veda (Morgan Turner e Evan Rachel Wood).  A filmografia mundial é repleta de títulos que exploram a relação entre o filho e o pai. Raros e bem vindos são os que se ocupam da rede complicada de amor, ressentimento, inveja e admiração que pode se formar entre mães e filhas.

A direção de arte , reproduzindo minuciosamente a ensolarada e ainda provinciana Los Angeles dos anos 1930 (em estudio e em locações nos arredores de Nova York), é um prazer à parte. Mas o grande espetáculo é a confluência dos talentos de Haynes e Winslet.  Em um momento, quando Mildred , já dona de sua vida, se reencontra com o ex-marido (Bryan O’Byrne), muitos anos depois , ambos mais velhos, solteiros, marcados por perdas e ganhos, uma rara luz ilumina a tela da TV – a luz da verdadeira, sincera humanidade que o bom cinema, em qualquer plataforma, é capaz de captar.


Uma conversa com Duncan Jones: “Sci Fi é um modo de abrir mentes”
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Ana Maria Bahiana

Michelle Monaghan e Jake Gyllenhaal em Contra o Tempo...

...e Duncan Jones no set.

Um homem acorda num trem e não sabe quem é. Sua derradeira lembrança é estar numa missão de combate sobre o Afeganistão, no comando de uma aeronave militar, seus companheiros de tropa a bordo, fogo inimigo cerrado a seu redor. E agora uma moça bonita conversa com ele sobre trivialidades de trabalho com um vago ar de intimidade e flerte, enquanto uma passageira derrama café no seu sapato e o condutor anuncia que o destino final é Chicago.

Estes são os emocionantes 10 minutos de abertura de Contra o Tempo (Source Code, estreando hoje nos EUA, dia 17 de junho no  Brasil), o primeiro filme de Duncan Jones desde o sucesso  de Moon e sua estreia no esquema grande produção hollywoodiana. Contra o Tempo é um roteiro original do estreante Ben Ripley, desenvolvido sob medida para ser estrelado por Jake Gyllenhaal no papel do piloto, Colter Stevens.

Poderia ter sido complicado e frustrante – para Duncan Jone e para a plateia – mas não é. É imensamente humano, intrigante – em grande parte porque, como Jones relata aqui, descobrimos juntamente com o protagonista o que está se passando, cada nova descoberta adicionando uma camada nova de mistério, de urgencia, de tragédia. Revisitando um território que já atravessou em Donnie Darko, Gyllenhaal mostra-se um excelente companheiro de aventuras para Jones, cúmplice em sua mistura bem calibrada de suspense, humor e drama.

De passagem por Los Angeles para promover o filme, Duncan Jones sentou-se no pátio  ensolarado de um hotel de luxo e contou um pouco sobre seu caminho de “filho de David Bowie” a “diretor cult”, suas crises de identidade, seu amor pelo cinema em geral e ficção cientifica em particular – e como fazer homenagens a Ray Harryhausen com Smurfs e uma câmera super 8 operada por… David Bowie…

Contra o Tempo não é um roteiro seu _ por que você aceitou dirigi-lo?

_ Porque eu vi que podia acrescentar alguma coisa. Quando Jake me deu o roteiro, eu imediatamente gostei do material, a temática se alinhava com meu ponto de vista. Mas era um pouco pesado, muito sério, todo mundo se levava a sério demais. Faltava leveza. Se injetarmos humor, pensei, isso vai ajudar a plateia a acreditar na tecnologia. Jake concordou imediatamente. Ben Ripley pesquisou a fundo para escrever o roteiro e por isso ele focalizou tanto nos detalhes científicos, explicando muito como o “source code” funciona. Isso é importate para ele, como roteirista, eu compreendo perfeitamente. Mas para meu trabalho como diretor o mais importante é que a plateia abrace inteiramente, sem restrições, o conceito. E para isso eu não precisava dar uma aula, tinha que engaja-los pelo lado humano, e o humor é muito eficiente para isso,

O que pelo contrário atraiu você, sem pedir modificação?

_ O ritmo. De cara eu amei o ritmo da narrativa. A quantidade de pistas possíveis e como elas brincam com nossos preconceitos e ideias. O modo como o espectador adivinha situações e aprende o que está se passando no mesmo ritmo que Colter. Isso é muito importante para qualquer filme que tenha um elemento de thriller, de mistério.

É interessante como, mesmo não sendo um roteiro seu, Contra o Tempo continua a discussão de identidade e auto-reconhecimento que você levantou em Moon

_ Acho que é um dos assuntos que mais me interessa: a ideia de identidade, a pessoa que você é e a pessoa que os outros vêem. Acho que todo mundo algum dia se preocupou com isso em algum momento de suas vidas. Eu passei por isso tremendamente no final da minha adolescencia e nos primeiros 20 anos, tentando descobrir quem eu era e qual era meu lugar no mundo. Eu parecia destinado a ser uma coisa e percebi que… não era verdade. Eu era outra pessoa.

Que pessoa era essa que você deveria ser?

_ Eu estava cursando universidade e, depois, pos-graduação com o objetivo de ser professor de filosofia. O que obviamente eu não sou. Demorou muito tempo para eu aprender que aquele não era meu camiho, e as vezes lamento o tempo perdido. Mas, ao mesmo tempo, esse aprendizado e essa experiencia me fizeram a pessoa que sou hoje, capaz de me ocupar de outras formas da questao da identidade.

O tema da identidade também é central na obra de seu pai, que a discutiu de muitos modos em sua obra. Ele ajudou você neste periodo de dúvida?

_ Ajudou tremendamente. Ao longo de sua carreira ele viu muitas pessoas decolarem e despencarem e esse exemplo marcou muito o modo como ele encara a carreira dele, e como ele pode dar apoio à minha. Acho que minha sorte também é que nunca fui do tipo ultra-social, super-popular. Sempre fui um geek estudioso e preocupado com o trabalho. Ser ultra-social pode ser um perigo quando se está desorientado na carreira. Aí seim você se perde, perde todo o seu tempo fazendo nada e, possivelmente, metendo-se em encrencas.

Seu pai influenciou sua carreira?

_ No sentido de pai para filho, sim.  O trabalho dele é algo que sempre admirei e sempre respeitei imensamemte, mas acima de tudo ele é meu pai, e sua influencia é naquilo que ele me mostrou, nas experiencias que me proporcionou. Eu fui apresentado  a Stanley Kubrick porque meu pai não parava de ver Laranja Mecânica quando eu tinha 8 anos… e era provavelmente jovem demais para isso… E minha paixão por ficção cientifica vem dos livros que meu pai me deu, George Orwell e John Wyndham..

Quando você descobriu que queria ser diretor?

_Uma coisa eu sabia: que não ia ser músico. Nunca fui nada musical… Meu pai e eu brincávamos de fazer filmes desde que eu era moleque. Ele é fã de Ray Harryhausen e me mostrava os filmes dele. Tentávamos fazer o mesmo com uma velha câmera super 8 e meus bonequinhos de Guerras nas Estrelas e  Smurfs, nossa versão de animação stop-motion… Isso rapidamente se tornou um hobby pra mim, o hobby que me ocupava mais na faculdade que meus próprios estudos…

Qual é o poder da ficção científica, para você?

_É a capacidade de colocar várias hipóteses na nossa frente de um modo que podemos aceitar aquilo que, de outra forma, nos pareceria impossível ou até mesmo ridículo. É o modo mais perfeito para desafiar a plateia a aceitar coisas muito diferentes de suas próprias vidas, a rever seus conceitos, a abraçar o estranho, o improvável. É um modo de abrir mentes.


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